terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A ciência e o medo: um texto de Sidarta Ribeiro

A ciência e o medo


                                                                                                                                       Sidarta Ribeiro
A maior dádiva da ciência para a humanidade é a libertação do medo. Imagine por um instante nosso passado neolítico. Todos os dias era preciso conviver com medos terríveis: predadores letais, conflitos tribais, frio e calor, fome e sede, seca e enchente, sem falar do mítico medo da noite eterna, tão bem documentado entre o povo maia: o temor de que o sol um dia partisse e nunca mais regressasse. A ciência nasceu como técnica de controle da realidade e de seus inúmeros perigos, muitas vezes transformando a dificuldade em ferramenta. Pense no fogo, na fermentação dos alimentos e no uso medicinal de substâncias. Com a ciência veio a esperança de um futuro cada vez melhor, com mais conforto e segurança, menos sofrimento e medo.

Há cerca de 30 anos, surgiu um temor novo que ceifou milhões de vidas e instalou pânico moral na sociedade, conspurcando a beleza do sexo com a fobia de uma contaminação fatal. É o vírus HIV, capaz de deflagrar a pane imunológica que chamamos de aids. Estima-se que existam no planeta mais de 33 milhões de portadores de HIV, chegando a 25% dos cidadãos de certos países africanos. Na ausência de cura, grande esforço foi feito para informar a população mundial sobre os modos de prevenir a infecção. Também houve avanço no desenvolvimento de drogas antivirais capazes de estancar o curso da doença. Infelizmente tais drogas podem causar sérios efeitos colaterais, precisam ser tomadas ininterruptamente por toda a vida, e apresentam custo proibitivo para a maior parte dos pacientes.

Por essa razão, causa muita esperança e orgulho a descoberta de que anticorpos monoclonais podem ser usados para debelar o HIV. Realizado pelo grupo do brasileiro Michel Nussenzweig na Universidade Rockefeller (EUA), o estudo publicado na revista Nature aponta o caminho para uma terapia de aids mais segura, barata e duradoura. Permite também vislumbrar o dia histórico em que será anunciada uma vacina anti-HIV.

Medo e desesperança, por outro lado, emanam do artigo de capa da revista Veja de 26 de outubro. Alegando refletir as mais recentes descobertas científicas sobre a maconha, o artigo esforça-se por insuflar ao máximo o receio em relação à planta. Cita seletivamente a bibliografia especializada, simplifica e omite resultados, distorce e exagera sem constrangimentos para afinal concluir, nas palavras do psiquiatra Valentim Gentil, que “se fosse para escolher uma única droga a ser banida, seria a maconha”.

Em tempos de crack na esquina e cachaça a 3 reais o litro, não é preciso ser médico para perceber o equívoco da afirmação. O destaque dado à matéria contrasta com seu parco embasamento empírico, que ignora fartas evidências sobre o uso medicinal da maconha, a segurança de seu consumo não abusivo, a existência de alternativas não tabagistas e as consequências nefastas do proibicionismo. O bom nome da ciência não pode ser usado ideologicamente para propagar preconceitos e fomentar pânico moral. A ciência deve sempre ser usada em prol do gênero humano, para arrefecer seus medos e não suscitá-los.


Publicado originalmente em: Revista Mente e Cérebro

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Como se produz um escândalo? Por Marcos Peixoto

 
Como se produz um escândalo?
 
 

 

 1) Comece do nada. Crie tudo do zero – estes são os melhores escândalos!

 2) Transforme o dedo-duro do momento (alguém com óbvios e diretos interesses na questão) em pessoa absolutamente isenta e confiável.

 3) Não existe outra versão para a estória. A única aceitável será a do dedo-duro.

4) Outras versões devem ser desprezadas, de preferência omitidas – no máximo, tratadas com ironia ou sarcasmo.

 5) Preferencialmente, conte com elementos simpáticos à versão dentro do Poder Judiciário. Se não for possível, pra começar, serve no Ministério Público.

 6) Desvista a questão de seu caráter político. Defenda até o fim que a questão é exclusivamente ética, e o dedo-duro é seu maior representante na terra.

 7) Trate a questão como essencial e urgente à salvação da pátria, o tema mais relevante do momento.

 8) Os apresentadores, quando ao tema se referirem na TV, devem fazer ar de tristonhos, de desagrado, de leve repreensão.

 9) Sempre que possível, estampe nos jornais fotos dos citados pelo dedo-duro com a boca torta, cabelos desgrenhados, de saia e com as pernas abertas, coçando o saco, etc.

 10) Mantenha o escândalo criado – ou ainda que embrionário – nas manchetes enquanto for possível.
 
 Isto fará com que, ao menos naquele período, os VERDADEIROS ESCÂNDALOS sejam esquecidos, seus crimes prescrevam, suas tramoias sejam completadas, suas provas bem escondidas.
 
Marcos Peixoto é juiz de direito do TJ/RJ e membro fundador do Instituto de Estudos de Direito Crítico (IECD).

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Drogas e Neurociências

DROGAS E NEUROCIÊNCIAS
 
 
Sidarta Ribeiro
 
Renato Malcher-Lopes
 
João R. L. Menezes
 
 

 


O que é droga? Se tomarmos como referência as leis norte-americanas (Food, Drug, and Cosmetic Act) que regulam o uso de remédios e alimentos daquele país, droga é definida como: (i) substância reconhecida por farmacopeia oficial; (ii) substância utilizada no diagnóstico, cura, alívio, tratamento ou prevenção de uma doença; (iii) substância não alimentícia usada para afetar a estrutura ou a função do corpo; (iv) substância usada como componente de um remédio. Do ponto de vista das neurociências, embora não exista convenção formal para o uso do termo, pode-se dizer que toda substância capaz de alterar parâmetros biológicos é uma droga. Portanto, a despeito das circunstâncias legais, políticas e históricas, do ponto de vista biológico, o termo “droga” pode ser atribuído a todos os fármacos e substâncias psicoativas, além de muitos alimentos. Numa sociedade livre e esclarecida, o debate sobre a melhor forma de regular o consumo de drogas deve pautar-se exclusivamente pelo conjunto de efeitos que produz. O efeito de uma droga é produto da interação de três fatores:(1)-(2)
1) a substância em questão, com seu modo de ingestão, composição molecular e especificidades farmacológicas;
2) o corpo que recebe a droga, com sua história de vida, marcas biológicas e predisposições inatas;
3) o ambiente físico e social em que ocorre o uso.
O debate sobre legalização e regulamentação das drogas costuma centrar-se exclusivamente no primeiro item, esquecendo que os outros itens podem ser determinantes para seus efeitos. É fundamental considerar a especificidade da substância em questão com base no conhecimento científico atualizado e não na percepção política de turno. Como é ingerida a droga? Qual é seu modo de ação aos níveis molecular, celular e sistêmico? Quais são seus efeitos no organismo e em seu comportamento? É verdadeiro o lema de Paracelso (1493-1521) de que a diferença entre remédio e veneno é a dose. Dependendo da dose, as drogas podem causar benefícios ou danos fisiológicos variados. Uma regra geral quanto ao uso de drogas é evitar a superdosagem – as chaves para o uso seguro são a moderação e o conhecimento específico sobre a substância.
Também é preciso esclarecer que diferentes modos de uso acarretam danos distintos. A combustão de drogas de origem vegetal quando fumadas (tabaco, cânabis) acarreta a formação de derivados cancerígenos. Tais derivados nocivos não estão presentes quando as mesmas substâncias são vaporizadas, isto é, quando são aquecidas a ponto de evaporar substâncias psicoativas sem carbonizar a celulose que as compõe.
No caso das drogas psicoativas, importante efeito colateral a ser considerado é o risco de dependência química. A comparação de diferentes drogas legais e ilegais quanto ao dano físico e risco de adição demonstra a existência de três grupos distintos:(3) (i) substâncias de alto dano e com grande risco de adição compreendem cocaína e crack, a metadona e os barbitúricos, além da heroína como caso extremo; (ii) substâncias de médio dano e médio risco de adição incluem a anfetamina, os benzodiazepínicos, o álcool e o tabaco; (iii) substâncias de baixo dano físico e baixo risco de dependência incluem a cânabis, os esteroides e o ecstasy.
É gritante a discrepância entre a classificação biomédica e a regulamentação jurídica do tema. A cânabis, por exemplo, causa menos dano físico e dependência que álcool, tabaco e benzodiazepínicos utilizados para induzir o sono.(4) Esta irracionalidade no tratamento jurídico de substâncias com distintos potenciais de uso abusivo, sem levar em consideração os verdadeiros riscos à saúde, gera estigmas que prejudicam a credibilidade do processo de educação, sobretudo dos jovens, a respeito dos riscos do abuso de substâncias. Com o livre acesso a informações via Internet, tais discrepâncias revelam que a política que regula o uso de drogas é arbitrária e sustentada por falsas suposições. A consequência natural junto aos que mais necessitam formação adequada sobre o tema é o descrédito e ceticismo quanto à legitimidade do discurso protetor. Cientes de que drogas moderadamente perigosas, como o álcool e o tabaco, podem ser usadas com poucas restrições pelos adultos, os jovens tendem a ignorar as orientações para uso seguro de drogas menos perigosas como cânabis e ecstasy.
Por exemplo, está bem estabelecido que o consumo crônico do tabaco na forma fumada causa câncer,(5) enquanto o da cânabis não,(6) provavelmente porque esta contém substâncias antitumorais que contrabalanceiam os derivados carcinogênicos produzidos na combustão.(7)-(8) Além disso, a quantidade de cigarros de cânabis fumados, mesmo por um usuário contumaz, é muito menor do que a quantidade cigarros de tabaco fumada por tabagistas. Os efeitos irritantes da cânabis, que podem evoluir para bronquite, não justificam sua proibição em face da legalização do uso do tabaco, que pode evoluir para câncer e problemas cardíacos ausentes na cânabis. Enquanto esse debate se perpetua sem clareza científica, permanece oculto para a sociedade o fato de que existem dispositivos vaporizadores capazes de extrair os princípios ativos tanto do tabaco quanto da cânabis sem a produção de combustão, praticamente eliminando os efeitos tóxicos da fumaça. Uma legislação racional e legitimamente preocupada com a saúde pública deveria viabilizar e encorajar o uso de vaporizadores nesses casos.
Outro exemplo trata dos efeitos psicológicos da cânabis. É verdade que seu uso, especialmente em usuários inexperientes, pode levar a estados de ansiedade e paranoia, sem que ocorram as alucinações que caracterizam um surto psicótico. Apenas no caso de pessoas dentro do grupo de risco, que corresponde a menos de 1% da população, tais estados paranoides causados pela cânabis podem evoluir para surtos psicóticos. Sabe-se que tanto num caso como no outro, estados de sofrimento psíquico são desencadeados por linhagens de cânabis que contêm proporção excessiva de tetrahidrocanabinol (THC) e baixos níveis de canabidiol (CBD), que é um canabinoide ansiolítico e antipsicótico. Não é casual o equilíbrio na cânabis entre essas duas moléculas, pois é uma planta cultivada e artificialmente selecionada por milênios para servir de remédio. O uso seguro da droga, nesse caso, é a mistura farmacológica de moléculas que se equilibram para gerar benefícios. Quando desequilibrados, podem causar malefícios. Aqui, pode-se novamente afirmar que uma política racional e legitimamente preocupada com o bem-estar público deve priorizar a regulamentação dos teores de THC e CBD na cânabis.
No tangente ao corpo que recebe a droga, com suas tendências inatas e história de vida, é preciso considerar que cada indivíduo apresenta predisposições genéticas e culturais próprias. Quando consideramos a população de um país, verificamos um espectro muito amplo de diferenças hormonais e bioquímicas que correspondem à variação igualmente ampla de reações a uma mesma substância. Assim, o conceito de grupo de risco é crucial para o debate sobre drogas numa sociedade livre e esclarecida. Toda droga pressupõe um subconjunto de indivíduos cuja condição fisiológica e/ou psicológica contraindica o consumo da substância. Isto se aplica a alimentos (intolerância à lactose ou ao glúten, reações alérgicas a crustáceos), remédios (sensibilidade excessiva à dipirona) e substâncias psicoativas (intolerância ao álcool em asiáticos).
Alguns grupos de risco são comuns a muitas drogas distintas: gestantes, lactantes, crianças e jovens. Isso ocorre porque é preciso proteger organismos em formação de alterações químicas que porventura possam desorganizar seu curso saudável. Além desses grupos, para cada substância tipicamente existem outros grupos de risco que são especificamente relacionados a seus efeitos. Substâncias como o álcool e a cânabis, por exemplo, são potencialmente danosas para pessoas com tendência à psicose (ou seja, pessoas com histórico familiar ou que exibam na adolescência os sintomas da fase pré-drômica da doença), enquanto o tabaco não é. Para regulamentar o uso seguro de uma droga, é preciso identificar com clareza os seus grupos de risco.
Dos três eixos determinantes do efeito das drogas, o aspecto mais neglicenciado é o ambiente físico e social em que ocorre o seu uso. Por exacerbarem sensações e emoções, substâncias psicoativas podem magnificar de forma poderosa a influência de agentes externos ao usuário. Uma mesma substância ingerida de uma única forma por uma mesma pessoa pode ter efeitos completamente distintos dependendo do contexto em que o usuário se encontra. Se o ambiente é confortável, seguro e inclui a presença de pessoas em quem o usuário confia, os efeitos de diversas drogas psicoativas são muito mais benignos do que se o ambiente é desconfortável e socialmente aversivo. Assim, tratar o uso de drogas como questão de polícia contribui para que as experiências dos usuários sejam negativas.
Outra consequência deletéria da proibição de certas drogas, em especial da cânabis, é a dificuldade de realizar pesquisas para caracterizar seus efeitos biológicos e investigar seus potenciais usos medicinais em regime de proibição e estigmatização que sabota este importante ramo da ciência biomédica. O estudo dos endocanabinoides, substâncias análogas aos constituintes da cânabis produzidas em grandes quantidades pelo cérebro, constitui uma das fronteiras mais ativas das neurociências.(9)-(10) Mesmo sob as restrições impostas pelo regime de proibição, diversas pesquisas apontam para um vasto potencial terapêutico da cânabis(11) e seus diversos componentes conhecidos como canabinoides.(12) Nos 16 estados dos EUA em que a cânabis medicinal foi regulamentada, muitos pacientes optam por seu uso para tratamento de diversas enfermidades.(13) Devido ao regime de proibição, ainda são poucos os trabalhos realizados com rigor necessário para avaliar a eficiência destes tratamentos.(14) Nesses poucos casos, a efetividade da cânabis medicinal vem sendo confirmada.(15)-(16) A criminalização da cânabis causa, portanto, um fenômeno paradoxal nos EUA, pois pacientes que escolhem este método de tratamento sob indicação médica, permitido por leis estaduais, correm o risco de serem perseguidos judicialmente pelo governo federal.
O ponto de vista das neurociências coloca em xeque não apenas o senso comum sobre as drogas, mas o alarmismo e a intolerância consonantes com as políticas públicas adotadas atualmente, as quais prescrevem punição e intolerância àqueles que necessitam respeito, acolhimento e eventualmente ajuda médica. A esfera adequada para o debate sobre regulamentação do uso de drogas deve ser biomédica e cultural, jamais criminal. Pelo prisma das ciências do cérebro, nenhuma droga deveria ter seu uso criminalizado e todas deveriam ser reguladas, caso a caso, de acordo com suas especificidades, e em parâmetros científicos isentos de moralismos e tendências políticas. A objetividade científica exige tratamento isonômico para drogas com potencial danoso semelhante. O proibicionismo é uma política irracional que exacerba os malefícios das drogas nos três eixos determinantes para seus efeitos. No que diz respeito aos efeitos específicos das substâncias, o proibicionismo produz um mercado negro que não é fiscalizado quanto à composição química das drogas que negocia (exemplo: composição de THC versus CBD na cânabis) e que favorece enormemente a adulteração das drogas com substâncias desconhecidas pelo usuário. No que diz respeito aos cérebros que recebem a ação das drogas, o proibicionismo inviabiliza uma política educacional de drogas baseada em evidências científicas, descredenciando o discurso protetor justamente entre os mais suscetíveis ao uso abusivo de drogas, isto é, os jovens. No que diz respeito ao contexto social do uso de drogas, o proibicionismo induz estados de temor e paranoia que potencializam efeitos psicologicamente danosos.
Por todas essas razões, a proibição absoluta do consumo de certas drogas é uma alternativa radical, ineficiente e perversa para proteger a população dos potenciais efeitos negativos do abuso dessas substâncias. Enquanto o mercado de drogas for monopolizado por agentes econômicos marginais, nenhum controle de qualidade pode ser exercido, nem é possível uma política racional de redução dos danos causados pelo uso de drogas.
Notas:
(1) Shewan, D.; Dalgarno, P.; Reith, G. Perceived risk and risk reduction among ecstasy users:the role of drug, set, and setting. International Journal of Drug Policy, 2000. 10: p. 431-453.
(2) Zinberg, N. E. Drug, Set, and Setting. New Haven: Yale University Press, 1984.
(3) Nutt, D. J.; King, L. A.; Phillips, L. D. Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. Lancet, 2010. 376: p. 1558-65.
(4) Idem, ibidem.
(5) IARC, IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Tobacco smoke and involuntary smoking., I. P. Editors., Editor 2004, WHO: Lyon.
(6) Hashibe, M. et al. Epidemiologic review of marijuana use and cancer risk. Alcohol, 2005. 35: p. 265-275.
(7) Blazquez, C. et al. Cannabinoids inhibit the vascular endothelial growth factor pathway in gliomas. Cancer Research, 2004. 64: p. 5617-23.
(8) Melamede, R. Cannabis and tobacco smoke are not equally carcinogenic. Harm Reduct J, 2005. 2: p. 21.
(9) Wilson, R. I.; Nicoll, R.A. Endocannabinoid signaling in the brain. Science, 2002. 296(5568): p. 678-82.
(10) Guindon, J.; Hohmann, A. G. The endocannabinoid system and cancer: therapeutic implication. Br J Pharmacol, 2011. 163(7): p. 1447-63.
(11) Bostwick, J. M. Blurred Boundaries: The Therapeutics and Politics of Medical Marijuana. Mayo Clin Proc, 2012. 87(2): p. 172-186.
(12) Izzo, A. et al. Non-psychotropic plant cannabinoids: new therapeutic opportunities from an ancient herb. Trends in Pharmacological Sciences, 2010. 30: p. 515-527.
(13) Reinarman, C., et al. Who Are Medical Marijuana Patients? Population Characteristics from Nine California Assessment Clinics. Journal of Psychoactive Drugs, 2011. 43(2): p. 128-135.
(14) Bostwick, J. M. Op. et loc. cits.
(15) Grant, I. et al. Medical Marijuana: Clearing Away the Smoke. The Open Neurology Journal, 2012. 6: p. 18-25.
(16) Lucas, P. Cannabis as an adjunct to or substitute for opiates in the treatment of chronic pain. J Psychoactive Drugs, 2012. 44(2): p. 125-33.
Sidarta Ribeiro
Professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Malcher-Lopes
Professor adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).
João R. L. Menezes
Professor adjunto do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Publicado originalmente em: RIBEIRO, Sidarta; MALCHER-LOPES, Renato; MENEZES, João R. L. Drogas e neurociências. Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, Ed. Especial, p. 15-17, out., 2012.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A criminalização como obstáculo aos controles sociais do consumo de substâncias psicoativas: um texto de Mauricio Fiore






O consumo de substâncias psicoativas – aquelas que têm a propriedade de alterar a consciência ou a percepção – é fenômeno presente em praticamente todas as civilizações. A relação das sociedades com essas substâncias, hoje chamadas drogas, gozou de diversos sentidos e objetivos: da devoção religiosa à prática terapêutica, do aperfeiçoamento da performance à promoção da diversão e das relações afetivas. A longa relação humana com essas substâncias é frequentemente esquecida no debate público contemporâneo sobre o tema. Esse “manto escuro” é resultado direto de quase um século de hegemonia do paradigma proibicionista, um regime estatal que se construiu a partir de uma classificação dicotômica e simplista dessas substâncias: proibidas e permitidas.

     Antes de tudo, deve-se lembrar que as substâncias psicoativas nunca existiram fora das relações sociais humanas e, portanto, seu consumo sempre correspondeu aos valores e saberes de cada época. A alteração da consciência pela ingestão de substâncias é um fenômeno fascinante e amedrontador, e para ele foram estabelecidos controles formais e informais que, de alguma forma, indicavam quem, quando, como e em que doses as diferentes drogas poderiam (e deveriam) ser consumidas. Evidentemente, esses controles só fizeram sentido devido à existência de algum nível de desvio, de diferentes níveis de desobediência.

     A partir do século XX, um conjunto de plantas e substâncias foi, por diferentes motivações (religiosas, econômicas, morais etc.), considerado danoso a ponto de gerarem proibições sob a forma de lei penal, regime ao qual se convencionou chamar proibicionismo. Por escapar dos objetivos desse texto, ignorarei o processo histórico que o sustentou e o tornou hegemônico internacionalmente, com decisivo empenho norte-americano. Ressalto, no entanto, que o paradigma proibicionista ancora sua legitimidade social em duas premissas.(1) A primeira e mais fundamental é a de que determinadas substâncias são tão destrutivas social e individualmente que o Estado deve ter a prerrogativa de impedir sua produção, circulação e consumo em nome do bem comum. A segunda, legitimada pela grande potência da primeira, é a de que a melhor forma de combater os malefícios intrínsecos a essas substâncias é persegui-las, buscando eliminá-las por meio de controles penais e aplicação de força policial e/ou militar e encarcerando desobedientes. As três substâncias que, em diferentes momentos, por diferentes processos históricos, tornaram-se o tipo exemplar dessas “drogas” – já aí em sua conotação negativa e não farmacológica – foram a heroína, a cocaína e a maconha.

     Há argumentos de diversas ordens que denunciam o equívoco autoritário e danoso de ambas as premissas. O principal deles é que se trata de uma intrusão indevida do Estado sobre os corpos de indivíduos adultos, perseguindo-os por praticar ação cujo dano maior, quando ocorre, é autolesivo. Deter-me-ei, no entanto, nas consequências negativas da segunda premissa, aquela que deposita no combate penal às drogas a atuação do Estado na questão.

     Primeiramente, quando traz para o campo do Direito Penal uma lista de substâncias, criminalizando-as, o paradigma proibicionista pressupõe impor seu desaparecimento. Logrou-se solucionar o problema em vez de enfrentá-lo, produzindo, assim, fértil campo de atuação para um mercado ilícito espetacularmente lucrativo e poderoso. Em países desiguais e violentos como o Brasil, a atuação do tráfico de drogas é um dos dinamizadores principais de redes criminosas organizadas com grande capacidade corruptiva de agentes públicos. Além da violência inerente à regulação desse mercado e de seus confrontos permanentes com a polícia – o encarceramento por tráfico de drogas é o que mais cresce no país, proporção ainda mais dramática com relação às mulheres, crianças e adolescentes. Tanto os encarcerados como as vítimas preferenciais dos crimes violentos relacionados às drogas são majoritariamente as populações mais vulneráveis (jovens, pobres, não brancos), mas as repercussões sociais negativas são generalizadas.

     Se o objetivo da criminalização é evitar os danos e o abuso das drogas tornadas ilícitas, é possível encontrar impactos positivos nesse sentido? Antes de tudo, há grande acúmulo de trabalhos produzidos no âmbito das ciências sociais que, desde a metade final do século XX, demonstram a inexistência de um “mundo das drogas” que reuniria, de forma homogênea, os consumidores dessas substâncias. Não há razão objetiva para separar as substâncias psicoativas lícitas das ilícitas a não ser pelo próprio estatuto jurídico a elas atribuído. Classificar sob a pecha de “mundo das drogas” substâncias e padrões de consumo tão diversos é tão impreciso sociologicamente como tratar todos os fenômenos referentes à sexualidade como “mundo do sexo”.

     Sob essa plataforma homogeneizadora, os controles formais tomaram a forma principal de lei penal e enfraqueceram controles sociais informais. Para se compreender mais profundamente esses controles, deve-se ter em conta que o fenômeno do consumo de drogas é construído a partir da intersecção de três esferas simultâneas: a especificidade da(s) substância(s) consumida(s), o contexto sociocultural no qual o consumo ocorre e as peculiaridades biográficas e comportamentais do consumidor. Trata-se de um esquema exclusivamente analítico, posto que todas essas esferas não podem ser apartadas em seu registro empírico.

     Independentemente de seu contexto, o consumo de substâncias psicoativas é uma ação com diferentes níveis potenciais de dano aos indivíduos. Esses danos podem ser de natureza estritamente fisiológica de curto, médio e longo prazo; podem ser resultado de intoxicação acidental – overdose – ou de acidentes indiretos, como os que ocorrem na condução de veículos ou máquinas, ou na potencialização de práticas violentas. Ou, ainda, no mais característico dos males associados às substâncias psicoativas, pode engendrar relação de dependência severa. Mas, não devemos esquecer, não são apenas danos e dependências que caracterizam o consumo de substâncias psicoativas. Pelo contrário, na maioria das vezes ele se apresenta de forma socialmente integrada – porque ajustada aos controles informais – e associada ao prazer, ao alívio, à terapia, à suspensão da vida ordinária, enfim, a um conjunto de atributos que são considerados positivos para os indivíduos e grupos que o praticam.

     O paradigma proibicionista delegou ao Estado o controle formal mais violento, o de tipo penal, para que esse se sobrepusesse aos controles de tipo informal, moldando-os a sua imagem e semelhança. Em outras palavras, os controles informais emularam, ao longo de um século de criminalização, os equívocos do controle formal, potencializando os danos na intricada relação sujeitos-substâncias-contextos.

     Quando elege um conjunto de substâncias a serem proscritas, o paradigma proibicionista localiza os danos de todas elas a partir de uma lógica dicotômica: pode ou não pode, essa substância faz bem ou faz mal, tal droga encadeia ou não riscos e assim sucessivamente.  Dessa maneira, a divisão das substâncias psicoativas sob dois rótulos – proibidas e permitidas – ignora características e padrões de uso e de riscos muito diversos. Por exemplo, substâncias cuja toxicidade implicam risco considerável de acidentes fatais, como a heroína e a cocaína, compartilham o mesmo estatuto jurídico com a maconha e o LSD, drogas cujo risco de overdose praticamente inexiste. Ao mesmo tempo, substâncias psicoativas legais de uso livre, como o álcool, ou prescritas como medicamentos, como calmantes e estimulantes, têm seu consumo naturalizado e, em muitos casos, excessivamente estimulado.

     Há outras consequências da ilegalidade de substâncias. Sem controle algum sobre níveis de concentração e a de qualidade, potencializam-se riscos e padrões abusivos de consumo. Boa parte dos acidentes envolvendo o consumo de drogas como cocaína, ecstasy e heroína são resultado do descontrole sobre seu mercado. A criminalização também constitui obstáculo importante para que se opte por um consumo mais parcimonioso, já que dificulta a valorização de outros aspectos relevantes dessas substâncias – cheiro, gosto, aparência, raridade etc. – como ocorre com o tabaco e o álcool.(2) Além disso, mercados à margem de qualquer regulamentação seguem a regra do lucro e da sobrevivência, distanciados de qualquer regulação de interesse social mais amplo. O caso da coca é um exemplo interessante: na forma de folhas secas, são milenarmente mascadas com baixo potencial de abuso ou danos. Refinada, a cocaína para aspirar ou injetar assume um formato mais intenso e potencialmente arriscado. Mas, para baixar o custo e maximizar vendas, foi transformada em produto fumável, o crack, uma droga de efeitos efêmeros e intensos que estimulam um padrão de consumo desmensurado e abusivo.

     Outro impacto negativo do proibicionismo nos controles informais foi alocar nas características bioquímicas das substâncias o protagonismo quase exclusivo na geração de problemas decorrentes do seu consumo. Dessa forma, os indivíduos e a sociedade se postam como incapazes de construir relações positivas e menos danosas com as substâncias, enfraquecendo sua autonomia diante dos controles heteronômicos de tipo formal (“isso o Estado permite que você use, isso não”). Evidentemente, os controles sociais informais não deixam de existir sob a criminalização. Ao contrário, dado que a proibição é um fracasso no seu objetivo de tornar as drogas menos disponíveis(3) e se limita a criminalizar o seu consumo, são os controles formais de diversas ordens os que, de fato, são efetivos. Trata-se de conjunto amplo de práticas, valores e regras, cujos limites transcendem a esfera pontual do consumo de substâncias psicoativas. Incluem-se nesses controles saberes que são aprendidos e compartilhados, por exemplo, entre usuários de maconha, desde mecanismos para potencializar e reconhecer efeitos positivos, até esquemas mais seguros para obtenção da erva,(4) bem como valorações de fundo moral que normatizam comportamentos esperados ou evitados socialmente. Pode-se buscar emprego aparentando estar sob efeito de substância psicoativa? Existe compatibilidade entre determinadas moralidades religiosas e a busca por recreação por meio da alteração química da consciência? Ou, ainda, num contexto em que o gozo imediato e o aproveitamento prazeroso da vida são valores fundamentais, o consumo de drogas não estaria predisposto assumir um caráter compulsivo? Questões como essas indicam que há amplo feixe de valores e regras que atuam na construção que os indivíduos, singulares em suas motivações e escolhas, estabelecem com as substâncias. A lei penal é incapaz de acompanhar tal complexidade. A maconha, droga ilícita de uso disseminado, é pouco associada a padrões de dependência severa, inexistindo a possibilidade de overdoses. No entanto, os danos potenciais de seu consumo recreativo, que não são poucos, ou os seus já demonstrados benefícios terapêuticos ficam em segundo plano com a criminalização, pois, objetivamente, o dano mais grave que acomete seus consumidores é ser surpreendido por autoridades policiais ou estar em contato com circuitos criminosos. Mas isso não significa que o Estado deva abrir mão dos controles formais. Quando alicerçadas numa perspectiva realista que não subestima o papel das escolhas e dos controles informais, o Estado pode, por meio dos controles formais, ter um papel efetivo na prevenção e minimização de danos, como o bem sucedido caso do tabaco sinaliza. Quando intenta prevenir e minimizar danos e não impedir sua existência, os controles formais do Estado tem muito mais chance alcançarem seus objetivos.

     Na medida em que busquei apontar neste artigo como a criminalização imposta pelo paradigma proibicionista oblitera controles informais que são historicamente os mais efetivos para prevenção do abuso e dos danos potenciais das substâncias psicoativas, encerro-o com duas ressalvas importantes. A primeira é que os controles informais são sustentados por valores diversos, por vezes contraditórios. Num exemplo palpável, são controles sociais informais tanto técnicas compartilhadas por consumidores entusiastas da alteração de consciência para minimizar danos quanto a propagação de dogmas religiosos que pregam a abstinência como única opção correta. Não necessariamente, elas reproduzem valores que nos agradam, mas, sociologicamente, não podemos ignorar seus papéis. A chave, aqui, é que elas convivam democraticamente sem colonizar o Estado e, assim, impor, por meio das sanções penais, que haja uma forma possível de se relacionar com as substâncias psicoativas. A segunda consideração diz respeito ao alcance da eficácia de controles informais. Evidentemente, eles não foram e não serão capazes de impedir que pessoas tenham problemas e sofram danos pelo consumo de drogas, pelo fato de que não há algum controle capaz de fazê-lo numa sociedade não totalitária. Ao debater seriamente as alternativas ao paradigma proibicionista, nos distanciamos da inalcançável e autoritária promessa de “resolver” a questão das drogas, promessa cuja adoção, pela maioria dos países, resultou em danos muito mais graves do que as drogas podem produzir.

Notas:

(1) Para discussão aprofundada das duas premissas do paradigma proibicionista, ver: Fiore, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Revista Novos Estudos Cebrap, n. 92, mar. 2012.

(2) A valorização das substâncias psicoativas para além de seus efeitos psicoativos, como ocorre com algumas bebidas alcoólicas é um potencializador de padrões menos nocivos de consumo.

(3) De acordo com levantamento do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), de 2005, cerca de 2/3 da população brasileira considera fácil obter drogas ilícitas. 

(4) Há inúmeros trabalhos sobre o tema, mas, para um estudo clássico, ver: Becker, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Publicado originalmente em: FIORE, Maurício. A criminalização como obstáculo aos controles sociais do consumo de substâncias psicoativas. Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, Ed. Especial, p. 20-22, out., 2012.


Maurício Fiore é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip).
Antropólogo.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: A DISTORÇÃO PRODUZIDA NO BRASIL

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
 
 
Por Fernanda Lara Tórtima
 
 
 


 
Podem ser indicados como precursores da utilização do conceito de domínio do fato no tratamento da autoria e da participação em Direito Penal diversos autores alemães, que, a exemplo de H. Bruns, Hellmuth v. Weber, Eb. Schmidt, Lobe e, finalmente Welzel — este último já inserindo o conceito na teoria da ação — escreveram sobre o tema na década de 1930.

Posteriormente, a teoria do domínio do fato encontrou sofisticado e quiçá pleno desenvolvimento com os trabalhos oferecidos à comunidade jurídica pelo renomado professor emérito da Universidade de Munique Claus Roxin, a partir dos anos 1960. Segundo suas contribuições, pode o fato ser dominado de três diferentes formas:

I — Pelo domínio da ação, que se dá quando o agente realiza o fato típico pelas próprias mãos, portanto como autor e não instigador ou cúmplice (mero partícipe);

II — Pelo domínio da vontade, que se dá quando o autor imediato realiza o tipo atuando em erro ou sob coação, tendo sua vontade dominada pelo autor mediato, que, assim, deixa de ser mero partícipe instigador ou cúmplice, não se podendo olvidar aqui a formulação relativa ao domínio da vontade no âmbito de estruturas organizadas de poder; e, finalmente,

III — Pelo domínio funcional do fato, que fundamenta a coautoria, baseada na divisão de tarefas entre os autores.

O que nunca imaginaram os referidos autores tedescos é que a teoria por eles cuidadosamente estudada e desenvolvida viria a ser um dia desvirtuada e utilizada para flexibilizar a análise rigorosa que deve ser feita em um processo penal acerca da prova dos autos, a partir da presunção de que alguém tenha participado da prática de determinado crime em razão de sua posição hierárquica dentro de determinada estrutura de poder, como ocorreu recentemente em determinadas passagens do julgamento da Ação Penal 470.

Com base no que ouviram dos votos ali proferidos, não faltaram manifestações na imprensa no sentido de que a “nova” teoria do domínio do fato — que, como visto, de nova nada tem — possibilitaria condenações com base em prova indiciária.

Não se quer aqui questionar a existência de provas para a condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em questão, menos ainda afirmar ser inadmissível a condenação em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi desenvolvida.

Como visto, a teoria do domínio do fato, notadamente em suas formulações mais modernas, serve simplesmente à distinção entre autor e partícipe (instigador ou cúmplice). É autor, e não partícipe, quem tem o domínio final sobre os fatos típicos, seja pelo domínio da ação, pelo domínio da vontade ou pelo domínio funcional dos fatos. A distinção é de fundamental importância, notadamente para fins de dosimetria da pena a ser aplicada em caso de condenação. Mas, querer vincular a análise da prova dos autos acerca da participação de acusados nos crimes que lhes foram imputados à teoria do domínio do fato é demonstração de supremo desconhecimento sobre sua origem e finalidade.

O concurso de acusados em determinada empreitada criminosa, seja na qualidade de meros partícipes (instigadores ou cúmplices) ou na qualidade de autores, deve ser comprovado independentemente da interferência da teoria em questão. E, uma vez comprovado, aí sim se poderá lançar mão do conceito de domínio do fato para que se conclua terem os acusados atuado como autores ou simples partícipes.

No Peru foi a teoria do domínio do fato utilizada corretamente por sua Corte Suprema, possibilitando-se a condenação do ex-presidente Fujimori como autor mediato dos crimes cometidos durante o seu governo por autores plenamente responsáveis, integrantes dos órgãos de repressão então existentes. No julgamento de Fujimori, ao contrário do que se fez aqui, a teoria em nada dizia respeito à análise da prova dos autos. Lá o que se fez foi condenar Fujimori como autor, e não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). E isso por ter sido verificada a presença de quatro requisitos: o poder de Fujimori para emitir ordens, o afastamento da ordem jurídica da estrutura de poder, a fungibilidade do autor imediato — consistente no fato de que qualquer outra pessoa poderia substituir o autor originariamente designado — e a sua alta disposição para a realização do fato criminoso. Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como partícipe.

Como se vê, ali teve a teoria, adotando-se formulação criada pelo professor Claus Roxin, aproveitamento adequado. Já no julgamento em andamento em nossa Corte Suprema, além de se lançar, de forma absolutamente descontextualizada, que determinados acusados tinham domínio “final” ou “funcional” do fato, nem se chegou a indicar de que forma se pretendeu utilizar a teoria em questão. De resto, no caso brasileiro, a teoria dos aparelhos organizados de poder sequer seria adequada, pois um aparato organizado de poder é, ao menos segundo a formulação original da teoria, uma organização alheia ao direito, isto é, algo como um grupo terrorista, um estado dentro do Estado, e não um partido político legalmente reconhecido.

A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal 470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser da “nova” teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.

Fernanda Lara Tórtima é advogada criminal e presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O JULGAMENTO DO CHAMADO “MENSALÃO”: UM ALERTA AOS ESTUDANTES DE DIREITO: um texto de Maria Lucia Karam





O JULGAMENTO DO CHAMADO “MENSALÃO”: UM ALERTA AOS ESTUDANTES DE DIREITO
 
 
                                                                                                               Por: Maria Lucia Karam



A euforia midiática com o televisivo julgamento do caso chamado de “mensalão”, contando inclusive com comentaristas apresentados como professores e juristas, tem escondido sérios danos ao Direito perpetrados nas longuíssimas sessões que fazem pensar se o notável saber jurídico que se supõe existisse quando da indicação dos magistrados que integram o STF não teria se perdido com o passar do tempo.
O julgamento padece de um vício original: a violação do basilar princípio do juiz natural. Cidadãos comuns processados perante o STF, quando a Constituição Federal estabelece a competência originária de tal órgão judiciário para atuar tão somente em processos em que figurem como réus integrantes de determinadas funções públicas de especial relevância, assim ao mesmo tempo estabelecendo a competência residual dos juízes de primeiro grau para atuar em processos em que figurem como réus cidadãos comuns, a mera conexão entre causas não sendo contemplada na Lei Maior como razão para alteração dessa competência. A violação ao basilar princípio do juiz natural se revela também em relação aos réus integrantes daquelas funções públicas de especial relevância, na medida em que provas foram produzidas perante juízes de primeiro grau, quando provas válidas são somente aquelas produzidas perante o juiz natural, a norma constitucional claramente estabelecendo que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, não contemplando qualquer autorização para delegações na instrução do processo.
Mas, não é apenas a desconsideração do basilar princípio do juiz natural, já revelada em anteriores atuações do STF, que motiva as considerações aqui expostas. São sim algumas “pérolas” vindas no decorrer do contaminado julgamento.
Ouviu-se douto integrante do STF afirmar que manifestação do réu em torno da negativa de autoria do crime a ele atribuído – apresentando, por exemplo, um álibi – constituiriam alegação de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito alegado pelo autor (!!!!).
Ouviu-se douto integrante do STF afirmar que a antiga Visanet Brasil (hoje Cielo) seria uma subsidiária do Banco do Brasil (!!!!).
Ouviram-se doutos integrantes do STF se referirem à concepção do domínio do fato, plenamente desenvolvida há pelo menos uns cinquenta anos, como se fosse uma grande novidade, e, pior, confundindo seu conteúdo que, de instrumento para a correta diferenciação entre autoria e participação viu-se transportado para o campo da análise probatória (!!!!).
Agora, chegando ao momento de fixação das penas (inusitadamente distante do momento do pronunciamento sobre a procedência do pedido condenatório – aliás, em tal momento, doutos integrantes do STF não falavam em procedência ou improcedência do pedido, falando em procedência ou improcedência da ação (!!!!) –, ouviu-se acirrada discussão entre os doutos julgadores acerca da regra aplicável na imposição da pena referente a crime previsto no art.333 CP, dada alteração legislativa na medida das penas cominadas – regra vigente a partir de 21/11/2003 estabelecendo pena de reclusão de 2 a 12 anos, enquanto regra anterior cominava a pena de reclusão de 1 a 8 anos. Na acirrada discussão, verificou-se então que não se sabia exatamente se tal crime se dera antes ou depois da lei nova, não se sabendo a data (ao menos aproximada) do oferecimento ou da promessa da vantagem. O réu fora condenado sem que se soubesse quando o fato ocorrera (!!!!). Diante da dúvida tardia, douto integrante do STF que aplicava pena de 4 anos e alguns meses utilizando como parâmetro a lei que elevara a pena cominada para reclusão de 2 a 12 anos relutantemente acabou por se convencer que a lei aplicável seria a que cominava a pena de reclusão de 1 a 8 anos, mantendo, no entanto, a mesma pena concretizada em 4 anos e alguns meses (!!!!).
Talvez fosse recomendável fazer um alerta aos estudantes de Direito: desliguem a TV!

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A Imprensa Entorpecida. Por Luis Fernando Tófoli



A IMPRENSA ENTORPECIDA
Luis Fernando Tófoli
 
 
 
 

Na edição do Jornal Nacional de 24 de fevereiro de 2012 – um momento marcado pelas ainda recentes ações higienistas de retirada dos chamados “noias” das ruas de São Paulo e Rio de Janeiro –, após uma longa reportagem de sete minutos sobre o crack para discutir a internação compulsória de seus usuários, o âncora William Bonner arrematou, diante das sobrancelhas graves de sua colega Patrícia Poeta: “Todo mundo diz que crack basta experimentar uma vez só e a pessoa fica viciada”.
Infelizmente, Bonner não citou fontes nem apresentou referências. Mesmo com as fantasias apocalíptico-epidêmicas associadas ao crack, ainda assim é necessário corrigir a informação do jornalista e alertar ao leitor que “todo mundo”, nesse caso específico, está errado. Não existe uso de droga sem usuário e sem contexto. Por mais que uma substância possa ter, por sua farmacologia, um maior ou menor potencial para induzir dependência, não existem drogas com propriedades “mágicas”. É a combinação entre a substância, o momento de vida da pessoa e o contexto de consumo que causam ou impedem a adição. Nenhuma droga vicia por si e nem instantemente, e isso vale tanto para o crack e a heroína quanto para uma das drogas de maior potencial de dependência, o tabaco.
A redução da criminalidade em Portugal
É uma tarefa árdua para o jornalista se mover dentro deste campo. Drogas, incluindo o álcool, são um assunto polêmico e complicado, que afeta as pessoas de formas diferentes e envolve campos distintos do conhecimento – Direito, Sociologia, Antropologia, Farmacologia, Neurociências, Psicologia, Religião, Saúde e Segurança Pública – áreas que usam termos mutuamente incongruentes e expressam visões frequentemente antagônicas entre si. Para complicar ainda mais, os jornalistas são uma categoria profissional cujo contato com as drogas legais e ilegais não é, definitivamente, menor do que na população em geral.
A segurança do profissional de imprensa, portanto, diante da dificuldade deste tipo de pauta, do peso do prazo e da necessidade de que a notícia também venda o meio onde ela circula, acaba sendo o lugar onde a classe política viceja diante da questão das drogas: o senso comum. Não ofenda, não contorne, não surpreenda o senso comum: enquanto as pessoas acreditarem que as drogas são um mal em si, mantém-se a zona de segurança.
Em um painel organizado pela Organização Mundial da Saúde em Washington para marcar o Dia Internacional contra o Abuso de Drogas, na terça-feira (26/6), especialistas defenderam as estratégias de redução de danos e até a legalização de substâncias ilícitas como formas de reduzir o impacto social de seu uso. Até onde a imprensa nacional chegará sobre este assunto, além de reproduzir as notas de agências internacionais e mencionar as “campanhas” oficiais? É fato que Portugal tem uma história de já 10 anos de sucesso na redução da criminalidade e do abuso ao tornar o uso de drogas legal. O que ficamos sabendo disso em nosso país? O que ouvimos por aqui do impacto das narcossalas da Europa para usuários de drogas que têm o mesmo perfil de nossos dependentes de crack?
Estimulante cerebral
O que lemos, assistimos ou escutamos são, quase invariavelmente, visitas dramáticas às “cracolândias” reais ou imaginárias e incursões a um único tipo de tratamento – internações compulsórias nas ditas comunidades terapêuticas – cuja efetividade é questionável. Monocordicamente, a imprensa reforça o que todo mundo já pensa sobre o assunto e, colateralmente, além de não contribuir socialmente no debate, capitaliza política e financeiramente pessoas e modelos que estão atrelados a, no mínimo, violações aos direitos humanos, segundo demonstrou um recente relatório do Conselho Federal de Psicologia.
Quando assisti à manifestação de William Bonner em cadeia nacional e horário nobre, fiquei pensando se o âncora dispararia expressões de tamanho senso comum se o assunto fosse, por exemplo, a pena de morte (“todo mundo diz que bandido bom é bandido morto”) ou a conduta de algum político (“todo mundo diz que o deputado fulano é ladrão”). Claro que não – apesar de ser, neurologicamente, um estimulante cerebral, só o crack é capaz de entorpecer a imprensa a esse ponto.
Links para as matérias no JN:
>> http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/02/consumo-de-crack-ja-tem-registros-em-90-das-cidades-brasileiras.html
>> http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/02/sp-crack-e-responsavel-por-duas-internacoes-compulsorias-cada-dia.html
***
[Luís Fernando Tófoli é professor de Psiquiatria na Universidade Federal do Ceará]

 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Carta Aberta ao Congresso Nacional


Carta aberta ao Congresso Nacional sobre a Reforma Penal

(PLS 236)

 

 

            Reunidos no Seminário Crítico da Reforma Penal organizado pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro e Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça entre os dias 11 e 13 de setembro de 2012, juristas de todo o Brasil dedicaram-se à análise crítica do Projeto de Lei do Senado n. 236, que propõe um novo Código Penal para o país.

 

Os trabalhos apresentados e discutidos no Seminário demonstraram, sem exceção, inúmeras deficiências teóricas no Projeto, em boa medida resultado da equivocada e acrítica incorporação de critérios jurisprudenciais de imputação em detrimento à dogmática penal mais avançada, tanto em termos técnicos quanto democráticos.

 

A notável pobreza teórica do Projeto, constatada por unanimidade, precisa ser destacada porque implica maior dificuldade na tentativa de controle democrático da competência punitiva do Estado. Assim é que, por suas falhas, o Projeto afasta o Direito Penal simultaneamente da Ciência e da Cidadania, isto é, não só se opõe ao saber jurídico, mas também ao soberano poder popular.

 

A proposta revela, contudo, problemas ainda mais graves. Longe de inaugurar um marco no Direito Penal brasileiro, o Projeto é profundamente anacrônico, como revela uma análise sistêmica. É evidente seu compromisso ideológico com a ultrapassada política de defesa social, própria do Estado de Polícia e, portanto, absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito.

 

A aposta na pena privativa de liberdade para repressão e prevenção da criminalidade que propõe é, provavelmente, o reflexo mais claro desta natureza punitivista do Projeto que, para piorar, abre mão de alternativas desencarceradoras em favor da prisão, cujo fracasso para fins de ressocialização foi exaustiva e reiteradamente demonstrado pela teoria – a mesma teoria que a Comissão responsável pela elaboração do texto decidiu, convenientemente, ignorar.

 

Diante de um sistema de justiça criminal sobrecarregado, seletivo e desumano – sobretudo no que se refere à execução penal, em toda sua miséria real – esta contraditória reafirmação da pena é radicalmente antidemocrática, porque agrava o já terrível drama carcerário.  Mas se a grave violação dos direitos fundamentais decorrente da eventual aprovação do Projeto de Código não for argumento suficiente para rejeitá-lo, importaria notar ainda o substancial aumento do custo social, político e econômico do sistema de justiça criminal – notadamente, do sistema penitenciário – que determinaria.

 

Em síntese, o Projeto de Lei do Senado n. 236 é incompatível com a promoção do ideal republicano de uma sociedade mais livre, justa e solidária. E seja pela quantidade de defeitos que apresenta ou por seu pernóstico compromisso ideológico com a repressão, o fato é que o Projeto não pode – nem deve – ser reparado mediante supressão, modificação ou acréscimos.

 

Somente a radical negação da proposta, como um todo, é admissível. Esta é a conclusão dos juristas que abaixo subscrevem.

 

Rio de janeiro, 13 de setembro de 2012,

 

 

 

 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

“Não quero ser como todo mundo, quero ser eu": um texto de Clara Maria Roman Borges


“Não quero ser como todo mundo, quero ser eu!”
 

 

Clara Maria Roman Borges*

 

 

Todos os dias, sofremos com a autoritária imposição da tecnologia para mediar nossa relação com o mundo. É certo que muitas vezes tal mediação nos traz conforto, permite-nos ter informações rápidas e conecta-nos com outras culturas.

 

Entretanto, se por um lado essas facilidades proporcionadas pela tecnologia seduzem muitos, igualmente provocam repulsa em tantos outros. Já dizia Michel Foucault, onde há dominação, também há resistência.[1]

 

Carros, celulares, computadores, tablets e redes sociais são intermediários entre nós e o mundo real ou muitas vezes substituem este por um mundo virtual. Assim, as sensações passam a ser cuidadosamente produzidas e manipuladas por todo este aparato na medida em que somos direcionados por filtros, ícones e gadgets, no momento do nosso contato com a realidade ou na maior parte do tempo com a imagem dela projetada no mundo virtual. Noutras palavras, somente sentimos aquilo que pode ser encontrado pelos filtros, traduzido no universo pictórico dos ícones e simplificado pelo instrumental dos gadgets.  

 

Alguns não se importam, até porque se encontram hipnotizados pelo entretenimento proporcionado pela tecnologia, que mascara inclusive a solidão causada pela totalitária mediação de nossas relações com pessoas reais, realizada pela mesma tecnologia. Como constatou Baumann, as fronteiras entre o real e o imaginário já não existem mais, a diferença entre o falso e o verdadeiro não tem mais significado algum[2], e neste contexto somos consolados pela sensação de comunidade feliz que nos traz o mundo virtual. Em suma, muitos foram absorvidos por um ciclo vicioso em que a tecnologia os afasta das pessoas de verdade e oferece como remédio para a consequente solidão, a companhia de pessoas virtuais criadas pela própria tecnologia, as quais são sempre felizes e belas.

 

Nesta sociedade pós-moderna, em que o homem se descobre não apenas social, mas digitalmente social, a maioria dos indivíduos tem uma vida dependente das redes sociais, passa horas conversando com pessoas que sequer tem certeza da existência real. Todos parecem sempre bem-sucedidos, lindos e felizes em seus perfis, a exposição da intimidade é uma forma de vender-se como indivíduo atraente e boa parte das relações travadas neste ambiente são de uma artificialidade evidente, o que indica que jamais subsistiriam as agruras do dia-a-dia. Ora, todos somos em certa medida feios, acordamos descabelados, temos momentos tristes, introspectivos e somos interessantes justamente porque não revelamos alguns detalhes de nossa intimidade. As relações amorosas e de amizade que nos marcam intensamente são exatamente aquelas em que o outro conhece também o nosso lado B, numa saudosa referência aos charmosos discos de vinil. Além disso, aqueles que pensam ser a rede social um ambiente propício para o debate sério de temas importantes, estão enganados, a maioria utiliza o espaço virtual para diversão, para travar contatos descompromissados, para desabafar ou bisbilhotar a intimidade dos outros. Pouco conheço desses lugares, mas jamais tive notícia de ou fui apresentada a uma discussão interessante que tivesse sido travada no perfil de alguém, sempre tomo conhecimento de frivolidades desfiladas neste espaço.

 

O grande problema é que as redes sociais se impõem a todos e recusar um convite para entrar neste mundo virtual significa uma ofensa à evolução humana. Como disse Bauman, quem não participa de redes sociais nos dias atuais encontra-se fora da comunidade e a morte social é certa[3]. A exclusão para aqueles que resistem a esta mediação tecnológica com o mundo real é inevitável, pois todo mundo à sua volta oferece a internet como única via de comunicação.

 

Entretanto existem alguns que insistem em não utilizar constantemente o aparato tecnológico, burlam o trânsito que impõe horas de contato com o mundo através do vidro do carro escurecido pela película, mantêm-se o máximo que podem distantes de um celular (cuja função se restringe normalmente a realizar ligações), não possuem tablets, preferem os livros ao invés do google search e não sabem, nem querem saber, para que servem os gadgets.

 

A reivindicação desses heróis da resistência, porque viver longe da tecnologia e resistir aos apelos do mundo virtual são atitudes heroicas em nossa sociedade, é de que precisam ter contato com o real, precisam sentir, precisam tocar, precisam ver e estabelecer relações marcadas por emoções que ganham resposta no corpo, no tom de voz, nas expressões do outro. Para essas pessoas, a sensação de passar os dedos sobre as paredes arabescas do palácio de Alhambra e sentir a ranhura do trabalho do escultor, jamais se comparará a foto digitalmente disponibilizada deste local na rede; ver a luz de uma pintura de El Greco pessoalmente, o brilho no rosto dos amados, nunca terá o mesmo encanto quando mediado pelo aparato tecnológico.

 

Além disso, aqueles que desesperadamente tentam escapar das imposições da mediação tecnológica protestam por manter sua identidade, por preservar sua intimidade, por se relacionar com amigos de carne e osso. Em nome desse fugidio contato com o real é que resistem, para proteger aquilo que os faz únicos, para garantir seu espaço de privacidade (querem ficar tristes, felizes, solteiros, casados, amargos, feios, sem que todos saibam disso), para ter amores, amigos, inimigos a quem possam encarar. Não querem seguidores, mas questionadores; não querem ser curtidos ou descurtidos, querem ser amados ou odiados.

 

Enfim, como respondeu uma dessas pessoas que resistem ao totalistarismo tecnológico, redutor de nossas formas de comunicação com o outro, ao ser censurada por não ter um perfil no facebook: - Não quero ser como todo mundo, quero ser eu!

 

A prova da sufocante ditadura da tecnologia é o fato de que a divulgação deste texto exige a sua submissão aos procedimentos daquela e a sujeição da sua autora à respectiva mediação.

 



* Mestre e Doutora em Direito pela UFPR. Professora de Direito Processual Penal no Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Advogada.
[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
[2] BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

NEOLIBERALISMO E EMPOBRECIMENTO SUBJETIVO: texto de Antonio Pedro Melchior


NEOLIBERALISMO E EMPOBRECIMENTO SUBJETIVO
                                                                 Psicanálise e Crítica do Antilaço Social.



                                                                        Antonio Pedro Melchior







Sumário: Introdução; 1. Interação estrutural: subjetividade e a ordem política e social. 1.1. Subjetividade e a estrutura da formação social brasileira 2. Neoliberalismo e a fragilização da mediação simbólica: crise de referencialidades, crise de significantização, crise da alteridade ; 2. A “Coisa existe!?” – empuxo ao gozo e o discurso do capitalista. Conclusão.



Introdução:



Este ensaio pretende conduzir a teoria psicanalítica ao encontro de uma crítica política e social que coloque em questão algumas das implicações do neoliberalismo na sociedade brasileira e no mundo, especialmente no campo da subjetividade.

Uma vez fundado sob a lógica do empuxo ao gozo, o discurso do capitalista próprio ao neoliberalismo, reforça a ilusão de que a ‘Coisa existe!’, fragilizando o assujeitamento à Lei enquanto mediação simbólica que organiza o sujeito frente ao Outro e ao outro.

Pretende-se demonstrar que a ordem neoliberal, sociedade de hiper consumo e assentada sob o tripé da desigualdade, competição e eficiência, reforçou a produção de três ordens de crise na contemporaneidade: crise de referencialidades, crise de significantização, crise da alteridade. Isto gera consequências de todas as dimensões: do sujeito às próprias relações públicas, aí envolvendo das questões ambientais à violência social ou institucionalizada.

Esta breve intervenção, portanto, visa problematizar os desdobramentos oriundos da hegemonia do neoliberalismo e do discurso do capitalista, cuja dominante é responsável por excluir o outro, produzindo um verdadeiro antilaço social.



1. Interação Estrutural: subjetividade e a ordem política e social.



“As coisas não vão bem quando a humanidade fatiga excessivamente sua inteligência e procura ordenar com auxílio da razão as coisas inacessíveis à razão. Então surgem ideais, tais como os dos americanos ou dos bolchevistas; ambos são extraordinariamente racionais, mas desejando ingenuamente simplificar a vida acabam por violentá-la de maneira terrível. A igualdade do homem, um ato ideal das épocas pretéritas, está a ponto de se tornar um clichê. Talvez nós, os loucos, consigamos enobrecê-lo um pouco."

                                                        Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe.









Enquanto pensamento racionalmente organizado, toda estrutura política e social reproduz uma determinada concepção de mundo, coordenada por princípios e ideias.Mas ainda que se apresente como conhecimento consciente, quem promove esta luta é o sujeito, por seu meio e através de si. Isto significa dizer que as ideias e valores que gravitam no ambiente social interagem “também com produtos de pensamento cujo processo de elaboração nos permanece oculto”.[1][1]



Ideias e doutrinas que, ao cabo, desencandearão na formação de regras e instituições, são incorporadas por gente, pessoas, indivíduos que, juntos, constituem fatores de poder no espaço social. Aqui entra a psicanálise em sua relação com a filosofia política, a sociologia e o direito.



Enquanto comunidade de interesses, disputa-se um projeto próprio de condução da vida em sociedade. Este projeto é operado “mediante o instrumento da linguagem” e, como discurso,“instaura relações fundamentais e estáveis no campo do gozo, a partir de uma série de enunciados primordiais que determinam aquele laço social específico”[2][2].



Em seu projeto de vida social, todas as doutrinas ou ideologias, como o capitalismo/neoliberalismo ou o socialismo, por exemplo, expressam “diferentes níveis da realidade, desde o ético, até o social, o econômico e o político”.[3][3] Como discurso, infiltram-se no tecido subjetivo, determinando distintas formas de governar, educar, psicanalisar e fazer desejar.[4][4]

“É um discurso que não precisa, portanto, da fala para estar atuando. Esses enunciados nem sempre são evidentes ou explícitos. Eles precisam ser detectados, ou seja, interpretados para se saber o tipo de laço social e a forma como ele se apresenta. (...) O discurso é da ordem do dizer. Um dizer é aquilo que, são sendo propriamente da ordem da fala, funda um fato. Os discursos fundam fatos, que são os laços entre as pessoas”.[5][5]

Em termos de interação estrutural entre subjetividade e a ordem política e social constituída, não se trata, portanto, de analisar a fala de um sujeito identificado, ainda que em classes.

Não há atualmente, por assim dizer, alguém pregando em praças os valores preconizados pela doutrina global do neoliberalismo, para ficarmos na hegemônica. O neoliberalismo, enquanto veiculado pelo discurso do capitalista, não se apresenta necessariamente em um discurso com palavras. Trata-se, de outro modo, um pensamento político e social que, impulsionado por determinadas forças da sociedade, elegem a dominante do discurso que irá reger o agir do sujeito.



1.1. Subjetividade e a estrutura da formação social brasileira:



“A vontade mais veemente daqueles heróis d’além mar era exercer-se sobre aquela gente vivente como seus duros senhores. Sua vocação era a de autoridades de mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas imensidades de terras de que iam se apropriando em nome de Deus e da Lei”. Darcy Ribeiro, in O povo brasileiro.

O liberalismo clássico, que remonta ao século XVII, foi um projeto cultivado por segmentos da burguesia contra o centralismo monárquico próprio do absolutismo. Diante das novas relações oriundas do mercado em ascensão, o caso europeu expressou uma ideologia articulada contra os privilégios da nobreza, denotando, em sua“dimensão ‘ético-filosófica’, a afirmação de valores e direitos básicos atribuíveis à natureza moral e racional do ser humano.Suas diretrizes assentam nos princípios da liberdade pessoal, do individualismo, da tolerância, da dignidade e da crença na vida”.[6][6]

No ambiente social brasileiro foi difente. Por essas terras, o liberalismo foi “canalizado e adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários de terra e do clientilismo vinculado ao monarquismo imperial”[7][7]. O liberalismo à brasileira encontrou no escravismo institucionalizado a sua face mais paradoxal. Um território esvaziado de trocas intersubjetivas, estruturado em um modelo de relação verticalizada sob um poder de mando, uma espécie de “subordinação formal ao mandatário supremo, seja ele qual for”.[8][8] Um Estado patrimonialista e de formação estamental[9][9], era a própria negação das liberdades públicas preconizadas pelo liberalismo.

A formação da estrutura social brasileira, ao disponibilizar um patrimônio cultural específico, permite contextualizar a interlocução já conhecida entre cultura e psicanálise.[10][10]Pois é deste caldo cultural encrustrado na estrutura social que incide, ainda hoje no Brasil, os discursos de dominação que “se utilizam da propriedade do poder de comando do significante em seu caráter impositivo e até mesmo ditatorial, seja ele sob a forma do poder (S¹) ou de saber (S²)”. [11][11]

A natureza estrutural da sociedade brasileira, pela própria condição histórica, marcada por uma “instância politicamente dominante, que se apropria das condições de mando e gera mecanismos para reservá-los para si”[12][12], torna-se um ambiente propício aos discursos de dominação. No contexto político e social brasileiro, do “conteúdo conservador sob a aparência de formas democráticas”[13][13], o discurso do mestre, “o discurso da instituição, o discurso que institui”[14][14]encontra um espaço perfeito para se reproduzir continuamente.

A fraternidade, enquanto referência aos “laços sociais de solidariedade necessários à própria manutenção da ordem social”[15][15] não foi exatamente o mote da formação social brasileira, como visto sumariamente, pautada sob o patrimonialismo, o estamento burocrático e um liberalismo conservador.

Especialmente na realidade periférica , aí inclusa a sociedade brasileira, o que se consolidou foi um regime liberal-paternalista[16][16], em que “a “mão invisível” do mercado de trabalho precarizado encontrou o seu complemento institucional no punho de ferro do Estado, preferencialmente direcionado às camadas pobres da população. [17][17]

O chamado neoliberalismo, surgido na metade da década de 1940 como uma crítica a “toda política de bem-estar social sob o ângulo exclusivo dos custos”[18][18]emerge, portanto, em um ambiente desarticulado socialmente, em que a maioria da população se vê numa exclusão formal dos mecanismos de produção. No caso brasileiro, como em todos os países periféricos, o imperativo do empuxo ao gozo, efeito próprio do discurso do capitalista, gerará efeitos ainda mais nefastos[19][19].



2. Neoliberalismo e a fragilização da mediação simbólica: crise de referencialidades, crise de significantização, crise da alteridade.



Em qualquer lugar em que se impôs como doutrina, o neoliberalismo resultou na afirmação de um triplíce pilar: a desigualdade, a eficiência e a competição[20][20].



A desigualdade consistente numa situação de dissimetria, teoricamente favorável ao desenvolvimento do mercado; a eficiência, atuando como mecanismo de esvaziamento de qualquer avaliação crítica (os fins sob os meios); a competição, ocupando o lugar da Lei, fomentando o incremento de uma ideologia de êxito.[21][21]

Explica Agostinho Ramalho Marques Neto[22][22]:

“Uma coisa é a competição limitada pela Lei (nos sentidos ético e jurídico do termo) e outra bem diferente é a competição no lugar da Lei. É na medida em que a competição é a própria Lei, em que não há limite para a competição, que a Lei do Pai (o ‘ Não’ do Pai), no seu sentido simbólico a que se refere Lacan, revela seu caráter mais vacilante e evanescente nas sociedades contemporâneas”.

A dificuldade de reconhecimento da força simbólica da Lei, no contexto contemporâneo, tem sido identificada por alguns autores como consequência da crise de autoridade no mundo atual e, por conseguinte, à exacerbação da liberdade.[23][23]O neoliberalismo teria produzido um homem sem gravidade, estruturado primariamente em sua relação com o objeto, numa busca livre, contínua e infinita da plena satisfação.[24][24]

“Atualmente, tem ganhado força essa exarcebação da liberdade, em decorrência do próprio processo de desencoramentopor que passa o ser humano, pela falta de balizas que tornem mais claras tanto as tomadas de decisões quanto a análise das situações com as quais se defronta”.[25][25]

Especialmente no caso das sociedades periféricas como o Brasil parece problemático identificar em um suposto “excesso de liberdade” a causa da fragilização da Lei, enquanto possibilidade de reconhecimento do Outro e do outro. Dada a estrutura da formação social brasileira, a liberdade – mesmo em sua mera dimensão de livre agir do sujeito – não foi até hoje materialmente consolidada para a maioria da população, submetida desde sempre à uma “tendência conservadora, praticada por minorias hegemônicas, antidemocráticas, apegadas às práticas do ‘favor, do clientelismo e da patronagem”.[26][26]

Parece, portanto, que para a maioria da população brasileira, com todas as suas limitações politicas, econômicas e sociais, existem limites bastantes claros à vontade, não se aplicando àquela genuína fórmula do “faça o que tu queres pois é tudo da lei”.

O que parece existir, isto sim, como decorrência do capitalismo enquanto discurso global, é uma tentativa de abolição do sujeito desejante, pela proposição de uma relação pura e simples com um gadget,“um objeto de consumo curto e rápido”, diria Antonio Quinet.[27][27]No caso periférico brasileiro, como veremos, as consequências disso são bem sentidas (de um lado a violência social, do outro a depressão).

O neoliberalismo parece ter aprofundado três tipos de crise na contemporaneidade, todas em relação direta com o simbólico: crise de referencialidades, crise de significantização e crise da alteridade.

A crise de referencialidades é apontada no contexto contemporâneo do neoliberalismo como um dos fatores ocasionados pela fragilização da Lei.

“Temos constatado profundas transformações no social que, associadas ao intenso desenvolvimento do discurso tecnocientífico e ao progresso do liberalismo econômico desenfreado, tem promovido uma crise de referencialidades. Tem-se registrado inúmeros acontecimentos que apontam para o declínio da figura do pai – do pai em sua dimensão simbólica – e para a queda do Grande Outro, como Outro simbólico, instância na qual o sujeito possa dirigir sua demanda ou uma pergunta. Em resumo, o que parece ter desaparecido é a ideia de um Terceiro organizador do sujeito”.[28][28]

Em poucas palavras, o problema da ‘crise de referencialidades’ passaria pela dificuldade operada pelo social de ratificar, sustentar o lugar do pai, enquanto função[29][29]. Este processo de deterioração do Nome do Pai, cuja metáfora explica a inscrição do simbólico enquanto mediador do sujeito, tem várias dimensões.

A passagem do poder soberano para o poder disciplinar, por exemplo. Segundo Maria Rita Kehl[30][30], o rearranjamento dos mecanismos de poder (poder soberano/poder disciplinar) teria promovido “a alienação progressiva dos homens em relação a todas as ramificações das manifestações (secundárias) do desejo e, mais que isso, a submissão ao Outro, um Outro tornado cada vez mais abstrato, à medida que se tornam mais complexos e sofisticados os mecanismos de controle do Estado moderno”[31][31].

Por outro lado, esta crise de referencialidades é também sentida na dificuldade de “sustentar o Pai (como figura de autoridade) sem o apoio de Deus” [32][32]. “Diante da perda de um referente transcendental é inútil buscar, para sustentar a Lei, um fundamento natural. Nada funda a Lei a não ser sua própria enunciação”[33][33].

Há ainda uma crise de significantização: a precariedade do estabelecimento de significações pela linguagem” - “expressão de quem fala” - lembrando ao sujeito que é “preciso tomar cuidado com o que diz”[34][34].

A função do Pai é articular o sujeito ao simbólico[35][35]. Por isso, o “desamparo na própria linguagem”, no contexto do neoliberalismo, é o que gera repercussões mais negativas. Quando a força operada pela palavra, falta, enquanto mediação simbólica, todas as esferas são atingidas.

“A palavra é aquilo que reinterpreta, para o humano, o fato inelutável de que existe o outro. A Lei, como condição e consequência da palavra – é impossível estabelecer uma cronologia de origem -, é o que impede que o humano tome o outro, sem mais rodeios, como objeto de gozo. Entre o sujeito e o outro, a palavra é o que impõe o rodeio. Mas, a partir desse ponto, a Lei já não garante nada:tudo deve ser negociado”.[36][36]

No espaço público de convivência neoliberal, para satisfazer a vociferação consumista, as mensagens são continuamente produzidas de forma fechada, numa espécie de primazia do signo. Há, na verdade, um bombardeio de signos. Isto fragiliza e expõe o sujeito, a considerar que é através da palavra significantizada que se relaciona com o Outro e, portanto, com o seu desejo singular, não fabricado.







“é preciso retormar pela via da linguagem e, explicitamente, aquilo que deveria ser presentificado. O significante está embutido na, mas está além da palavra. A palavra, per si, estaria mais para o signo. É preciso, portanto significantizar a palavra”. [37][37]



Como consequência da fragilização do simbólico, enquanto terceiro mediador, opera-se um enfraquecimento do diálogo (veículo à troca de falas). Na política externa, proliferam-se guerras e conflitos armados em todos os continentes. Os fóruns mundiais de meio ambiente e sustentabilidade, de que foi exemplo a “Rio + 20”, também demonstram a fragilização da mediação entre as nações, sujeitas – como os indivíduos - às falsas necessidades da economia de mercado.

Ainda no seio neoliberal, a cultura individualista parece apontar para uma espécie de fragilidade no reconhecimento do interesse alheio. Isso debilita as condições de diálogo, quase sempre sujeito ao poder de barganha do mais forte.

Surgem modelos de pureza que, como diria Zygmunt Bauman[38][38], identificam aqueles que “sãooutros seres humanos, concebidos como obstáculo, para a apropriada “organização do ambiente”. Como consequência, odespojamento do valor do outro forma um “horizonte intersubjetivo desinvestido das trocas inter-humanas”, explodindo a violência que marca a atualidade[39][39].

A perda do valor da linguagem, enquanto função de mediação, impede que o sujeito seja retirado do impasse imaginário, ficando preso na dificuldade própria da dimensão narcísica. Também por isso vivemos, no contexto individualista neoliberal, uma crise da alteridade.

“A relação imaginária – isto é, a relação que o sujeito mantém com sua imagem no espelho e com seu semelhante – conduz a uma dificuldade própria da dimensão narcísica. Essa captura leva a uma situação mortífera do tipo: ou um ou outro. Para que o liame social seja simplesmente possível, é preciso conceber outro termo que não deixe numa relação estritamente especular com um semelhante. (...) Esse elemento mediador, essa dimensão terceira que tira o sujeito do impasse imaginário é a fala e a linguagem”.[40][40]



O que está em jogo nas condições atuais é o auto-centramento demasiado do sujeito[41][41], acompanhando que vem do desaparecimento da alteridade como valor.[42][42]A “auto-exaltação desmesurada da individualidade”[43][43] vai assim promovendo um cenário em que“saquear o outro, naquilo que este tem de essencial e inalienável, se transforma quase no credo nosso de cada dia”[44][44].

Estas três ordens de crise na contemporaneidade (referencialidades, significantização e alteridade) afetam diretamente a constituição do simbólico, enquanto instância que media a relação do sujeito com o Grande Outro e com o outro. Mas não é tudo.[45][45]

2.1.A “Coisa Existe!?” - empuxo ao gozo e o discurso do capitalista.

“Now you get what you want,

Do you want more? (Want more).

Now you get what you want,

Do you want more? (Want more).”

Bob Marley.



Uma das características mais proeminentes do perfil neoliberal pode ser identificada na “conversão da chamada sociedade civil numa sociedade de mercado (a sociedade de consumo) e a transformação em consumidor como o correspondente, no nível micropolítico, da migração da soberania do Estado para o Mercado, ocorrida no nível macropolítico”.[46][46]

A lógica consumista impregna as relações inter-humanas, conferindo o mesmo caráter de descartabilidade dispensado aos pequenos objetos produzidos pelo mercado. Ao mercantilizar as relações sociais de convívio, desvaloriza-se a idéia de sujeito moral, solidificando o primado da “coisificação” em massa das pessoas[47][47]. A “coisificação” corresponde à abstrativização de toda e qualquer referência de vida, onde a própria pessoa passa a ser avaliada “como encarnações de um valor de câmbio quantitativo”. [48][48]

No contexto social da vida líquida, diria Bauman[49][49],“outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis – como os bens de consumo são ou deveriam ser”.

O discurso do capitalista, como produto e produtor do ambiente neoliberal, é “efeito de uma determinada estrutura colocada como dominante, o que faz caminhar a sociedade em uma determinada direção”[50][50].

“Quando se toma um laço social, pode-se avaliar em qual discurso se está através da dominante ou daquilo que esse discurso confessa querer dominar. (...) Quando alguém trata o outro como um escravo ou como um saber a produzir, estamos no discurso do mestre. O discurso do analista é o único laço social que trata o outro como um sujeito. Quando não é assim, estamos tratando o outro ou como objeto, ou como um mestre, ou como escravo”.[51][51]

Enquanto estilo apresentado pelo discurso do mestre, o discurso do capitalista apresenta determinada forma de governar, a partir de “leis, projetos de sociedade, programas, etc. representados no matema (sua fórmula) pelo S¹. Mas, na verdade, o que é escamoteado é que há sempre sujeitos (S barrado) sustentando esse governar, essa dominação que é imposta ou aplicada aos outros sujeitos que devem cumprir ordens; eles devem saber fazer, saber obedecer e saber produzir”.[52][52]

A dominante do discurso do capitalista se relaciona com um determinado outro que o laço social deve produzir, no caso, os objetos de gozo para o mestre, a sociedade, a fábrica.[53][53]“Segundo a lógica fálica que rege a circulação das mercadorias na sociedade de consumo, o gozo de um bem, o desfrute de um prazer, não significaria nada se não representasse o gozo de um poder: poder de privar o outro desse bem, desse desfrute”. [54][54]

Ao fim, todas as complicações orientadas pelo neoliberalismo, passando pelas três crises apontadas, pode se resumir no seguinte: o discurso do capitalista não promove o laço social.

Trata-se de um discurso que exclui o outro, transformado em mercadoria, na lógica comandada pelo significante-mestrecapital.[55][55]Como genuína manifestação do antilaço social, aparece como um “discurso sem lei, que obedece à lógica da foraclusão”, indicando que o próprio “ ‘laço’ é louco, pois seu discurso é psicotizante”[56][56].

“O discurso do capitalista não é regulador, ele é segregador. A única via de tratar as diferenças em nossa sociedade científica capitalista é a segregação determinada pelo mercado; os que tem ou não acesso aos produtos da ciência. Trata-se, portanto, de um discurso que não forma propriamente laço social, mas segrega. Daí a proliferação dos sem: terra, teto, emprego, comida, etc.”[57][57]

A lógica do empuxo ao gozo desnatura o desejo do Outro, tentando fazê-lo substituir pelo consumo curto e rápido dos gadjets fabricados.[58][58] O mercado sobrepondo o sujeito.

O neoliberalismo e o discurso do capitalista (sustentado por fatores de poder bastante determináveis) nos propõe orientar a vida para materializar aquele significante-mestre chamado dinheiro.“O sujeito como falta-a-ser aparece como falta-a-ser-rico e a falta-de-gozo se inscreve como a falta-a-ter-dinheiro” [59][59], como resultado, produz um paradoxo: o desejo capitalista produz sempre, independente do “êxito”, um sujeito empobrecido subjetivamente.

O discurso capitalista introduz o imperativo de gozar, na tentativa de substituir a Lei, o “Não do Pai”, “que colocando um limite à vigência do gozo, funda o campo da ética”.[60][60] O empuxo insasiável ao gozo é realimentado pela lógica do consumo fundada sob o mito de que “a Coisa existe!”[61][61]. Parece evidente que não poderia dar certo.

O assujeitamento à Lei, explica Agostinho Ramalho, “supõe precisamente o reconhecimento de que a Coisa não existe!”. A Coisa “é o objeto (vazio) de satisfação da pulsão para o qual aponta radicalmente o princípio do prazer”,ela não pode “ocupar o lugar do bem supremo”, sua proximidade é simplesmente ameaçadora.[62][62]

Especialmente em países como o Brasil, onde os meios são escassos para muitos, o empuxo ao gozo não se dá a qualquer preço. A profusão da violência nas ruas para-ter (bens, dinheiro, drogas) é acompanhada da violência institucional, sinônimo de altas taxas encarceramento. A ideologia consumista, própria ao modelo neoliberal, se alimenta pela fabricação da falta de gozo e com isso produz sujeitos ávidos por lucro fácil. Depois organizam-se “marchas contra a corrupção”.

Conclusão.

A Psicanálise deve ser reconduzida continuamente à análise crítica das estruturas políticas e sociais. Ela nos apresenta à ética do falta-a-ter, do respeito ao desejo de reconhecimento, desejo singular de submissão ao Grande Outro. Em sua vocação democrática, a Psicanálise propõe o aprofundamento da Lei simbólica, enquanto mediadora das trocas sociais efetuadas pela linguagem. Ao contrário da competitividade neoliberal, o reforço da alteridade, o retorno à importância do diálogo, da palavra, significantizada.

Acreditar que é possível suprir tudo, significa recalcar a própria condição do desejo, fundada na falta. Satisfação integral ou seu dinheiro de volta: uma fantasia que coloca em jogo a possibilidade de recuperar o gozo perdido, o mais-gozar, gozando mais. "E é nisto que toda a sociedade está se transformando”, diria Charles Bukowsky: “em longas filas à espera de alguma coisa."



Rio de Janeiro, 06 de Julho de 2012.

Antonio Pedro Melchior.



[1][1] FREUD, Sigmund. O Inconsciente (1915). Escritos sobre a psicologia do inconsciente, Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p.29. Na vida anímica individual aparece integrado sempre, efetivamente, ‘ o outro’, como modelo, objeto, auxiliar ou adversário, e, deste modo, a psicologia individual é ao mesmo tempo e desde o início, psicologia social, num sentido amplo, mas plenamento justificado”. FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu.P. 7.
[2][2] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 30.
[3][3] WOLKMER, Antonio Carlos.História do Direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 74.
[4][4] Cf. LACAN, o avesso da psicanálise
[5][5] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 30.
[6][6] WOLKMER, Antonio Carlos.História do Direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 74. Sabe-se que, mesmo no caso europeu, o liberalismo, embora tenha sido a “doutrina política libertadora que representou a ascensão da burguesia contra o absolutismo”, tornou-se conservador “à medida em que a burguesia se instala no pdoer e sente-se ameaçada pelo proletariado”.WOLKMER, Antonio Carlos. Op. cit. p. 75.
[7][7] WOLKMER, Antonio Carlos.História do Direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 75.
[8][8] FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Ediçã comemorativa de 50 anos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2008,p.05.
[9][9] “Esta corporação de poder se estrutura numa comunidade: o estamento. Para compreender o fenômeno, observe-se, desde logo, que a ordem social, ao se afirmar nas classes, estamentos e castas, compreende uma distribuição de poder, em sentido amplo – a imposição de uma vontade sobre a conduta alheia. (...) A situação estamental, a marca do indivíduo que aspira aos privilégios do grupo, se fixa no prestígio da camada, na honra social que ela infunde sobre toda a sociedade. Esta consideração social apura, filtra e sublima um modo ou estilo de vida.” FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Ediçã comemorativa de 50 anos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2008,p.61.
[10][10] Esta relação é demais conhecida pelo menos desde FREUD, Sigmund. In Mal Estar na Civilização,____.
[11][11] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 37.
[12][12]COHN, Grabriel. Prefácio in: FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Ediçã comemorativa de 50 anos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2008,p.05.
[13][13] WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 108. Faoro diria que “a abolição do trabalho escravo o estamento se empenha em ‘restaurar o poder sem renová-lo; ou então, na República, ainda na hora derradeira ele tenta ‘salvar a monarquia nos moldes tradicionais’ e, se não o consegue, logra frustrar as reformas liberais mais consequentes”. COHN, Grabriel. Prefácio in: FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Ediçã comemorativa de 50 anos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2008,p.05.
[14][14] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 37.
[15][15] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios.____ p. 53.
[16][16] Wacquant, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Revan, 2003. p 148
[17][17] Idem, Ibid. p. 147
[18][18] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. Rio de Janeiro: Cia. de Freud; Vitoria: ELPV, 2009, p. 54.
[19][19] Especialmente nestes lugares, diria Jacinto Coutinho, “o discurso do direito é, por excelência, imaginário (Lacan) e, portanto, passível de desmanchar a partir de um outro lugar, produtor da desilusão, do qual o maior exemplo é a fome”. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do pensamento economicista no Direito Criminal de hoje. op. cit. p. 243.
[20][20] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op. cit. p. 56.
[21][21] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op. cit. p. 56.
[22][22] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op.cit. p. 55.
[23][23] PAULA, Rodrigo Fernandes de. A crise da autoridade do mundo atual: uma crítica ao modelo estabelecido pela Política e pelo Direito para equilibrar autoridade e liberdade nos dias de hoje. In: A Lei em tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Cia. de Freud; Vitoria: ELPV, 2009, p.156,
[24][24] MELMAN, Charles. O Homem sem gravidade: gozar a qualquer preço – entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. Não parece, porém, que o neoliberalismo tenha o condão de produzir determinado homem ou economia psíquica. O que há é uma interação entre este modelo político e social e a própria estrutura do sujeito, pronta para agir de determinada maneira, em sua relação com o dominante do discurso hegemônico no meio social.
[25][25] PAULA, Rodrigo Fernandes de. A crise da autoridade do mundo atual, op. cit. p. 159. Com base nas colocações feitas por Hanna Arendt, o autor assevera“a liberdade não deve ser concebida apenas como uma das expressões possíveis do livre-arbítrio, de outro, não deve, igualmente, converter-se em sinônimo puro e simples do livre-arbítrio, como se as pessoas, no espaço público de convivência, pudessem ser guiadas exclusivamente levando em conta a sua própria vontade”. Idem, ibid. p. 158.
[26][26] WOLKMER, Antonio Carlos.História do Direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 78.
[27][27] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 37.
[28][28] CAVALCANTE, Christiany Maria Basseti, A Constituição da Subjetividade na Pós-Modernidade. In: A Lei em tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Cia. de Freud; Vitoria: ELPV, 2009, p.166.
[29][29] Em clara explicação, Kehl: “O pai simbólico, representante da Lei, não é necessariamente o pai biológico de cada um. Ele é significante do pacto constituído pelos irmãos, livres e desamparados – e livres porque desamparados– depois do assassinato do tirano, o pai real da horda primitiva. Para a psicanálise, o pai pode ser entendido como lugar, portanto, da Lei (simbólica) que protege os irmãos ao evitar que se destruam mutuamente, entregues à violência pulsional”. KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 45.
[30][30] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 50.
[31][31] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 63.
[32][32] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 68.
[33][33] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 68.
[34][34] “O homem moderno padece da falta de referentes estáveis para a liguagem; ainda que tetemos negá-lo, aderindo a crenças e dogmas, o próprio fato de nos ser permitido escolher nossa filiação a um corpo dogmático já torna evidente sua arbitrariedade. Essa negação, que nos ajuda a suportar no dia-a-dia a precariedade da linguagem na constituição da relação com real e com o outro, não pode impedir o sentimento de desamparo de um sujeito que sabe que nada funda a verdade da linguagem além de seu uso” (...) “Não existe um signficante último, fora da linguagem, que garanta uma ancoragem para as significações. Esta é a função proposta por Lacan para o Nome do Pai, que, como significante UM (S¹) da cadeia, organiza a relação entre todos os outros”. (KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 67).
[35][35] COUTINHO JORGE, Marco Antonio Coutinho Jorge, Seminário sobre a Lei, dia 19 de junho de 2012, no Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Rio de Janeiro.
[36][36] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 103.
[37][37] Considerações de COUTINHO JORGE, Marco Antonio Coutinho Jorge, Seminário sobre a Lei, dia 05 de junho de 2012, no Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Rio de Janeiro. No mesmo Seminário, mas do dia 22 de abril de 2012, Coutinho Jorge já havia sublinhado que a tendência hegemônico do discurso é fechar e que o signo conduz a isto, uma mensagem fechada. “O signo representa alguma coisa para alguém que sabe lê-lo. O significante representa o sujeito para outro significante. Nossa vida cotidiana, se é opressora, é porque carimba muitos signos. É preciso significantizar”.
[38][38] BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 17.
[39][39] BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade, op. cit., p. 24. Com o seu “modelo de pureza”, que vai da internação compulsória à “limpeza”de camelôs e prostitutas das ruas da zona sul, a chamada “operação choque de ordem” levada a cabo na cidade do Rio de Janeiro é um exemplo sintomático destas afirmações.
[40][40] VANIER, Alain. Lacan. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, p. 24.
[41][41] As psicopatologias da pós-modernidade proviriam justamente do“fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência”. O fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo, aponta Birman, constitui um destaque nos quadros clínicos atuais. Em bela passagem, assim se manifesta: “Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência, sendo considerado, pois, um fracassado segundo os valores axiais dessa visão de mundo. Pelo uso sistemático de drogas o indivíduo procura desesperadamente ter acesso à majestade da cultura do espetáculo e ao mundo da performance. É necessário glorificar o eu, mesmo que por meios bioquímicos e psicofarmacológicos, isto é, pelos artefatos tecnológicos”.BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade. op. cit., p. 168-169.
[42][42] BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade: a Psicanálise e as novas formas de subjetivação. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 166. “As então denominadas sociedades primitivas mostravam-se assim ser bem mais civilizadas que as do Ocidente, não obstante serem por essas consideradas como não evoluídas e até mesmo próximas da barbárie. Isso porque revelavam um respeito ético pela vida e pela morte, no qual a alteridade, como valor fundamental, estaria sempre no centro de suas práticas sociais, mesmo na experiência-limite da guerra. A alteridade como valor fundante do discurso ético, teria sido silenciada e entrado em franco eclipse na modernidade ocidental”. BIRMAN, Joel.Arquivos do Mal-Estar e da Resistência. op. cit., p.64
[43][43] BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade. op. cit., p. 24.
[44][44] BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade. op. cit., p. 25.
[45][45] Embora não seja objeto da presente investigação é importante consignar que o neoliberalismo promove ainda uma quantidade enorme de implicações negativas, especialmente no campo do direito e do controle social punitivo. Recuo das redes de proteção social e ascensão de um Estado Penal, enfraquecimento da função garantidora da lei e, ao mesmo tempo, hipertrofia no papel do judiciário (jurisdicionalização da vida); além do incremento da ideologia da segurança, com a consequente afirmação de um estado de exceção em permanente violação aos direitos humanos fundamentais.
[46][46] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op.cit. p. 60.
[47][47] DORNELLES, João Ricardo. Ofensiva neoliberal, globalização da violência e controle social In: Discursos sediciosos, Rio de Janeiro:Revan, 2002. p.125.
[48][48]FROMM, Erich, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, . 7ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 120
[49][49] BAUMAN, Zygmunt. Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, 11 de março de 2007, caderno Mais!, p.4-5.
[50][50] COUTINHO JORGE, Marco Antonio Coutinho Jorge, Seminário sobre a Lei, dia 05 de junho de 2012, no Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Rio de Janeiro.
[51][51] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 35.
[52][52] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 32.
[53][53] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahaar, 2009, p. 35. “A barra da segunda fração dos matemas dos discursos refere-se ao que o outro de cada laço social deve produzir”.
[54][54] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 102.
[55][55] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 39. “No lugar da verdade encontra-se o capital (S¹) como significante-mestre deste discurso; o sujeito é reduzido a consumidor ($) de objetos, os gadjets (a) produzidos pela ciência e tecnologia (S²)”.
[56][56] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 40.
[57][57] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 41.
[58][58] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 37.
[59][59] QUINET, Antonio. Psicose e Laço Social. Esquisofrenia, Paranoía e Melancolia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 40. “Assim, o discurso do capitalista produz o sujeito inadimplente, o sujeito da dívida que se eterniza. Cria a dívida que só aumenta. (...) A moratória é, pela lógica do discurso do capitalista, ex-dívida. Ela constitui uma figura da castração, na medida em que coloca uma barreira à insaciabilidade do capital que se manifesta na perenização da dívida”
[60][60] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op.cit. p. 65.
[61][61] MARQUES NETO, Agostinho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em tempo sombrios. op.cit. p. 67.
[62][62] KEHL, Maria Rita.Sobre ética e Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 98.