quinta-feira, 23 de agosto de 2012

“Não quero ser como todo mundo, quero ser eu": um texto de Clara Maria Roman Borges


“Não quero ser como todo mundo, quero ser eu!”
 

 

Clara Maria Roman Borges*

 

 

Todos os dias, sofremos com a autoritária imposição da tecnologia para mediar nossa relação com o mundo. É certo que muitas vezes tal mediação nos traz conforto, permite-nos ter informações rápidas e conecta-nos com outras culturas.

 

Entretanto, se por um lado essas facilidades proporcionadas pela tecnologia seduzem muitos, igualmente provocam repulsa em tantos outros. Já dizia Michel Foucault, onde há dominação, também há resistência.[1]

 

Carros, celulares, computadores, tablets e redes sociais são intermediários entre nós e o mundo real ou muitas vezes substituem este por um mundo virtual. Assim, as sensações passam a ser cuidadosamente produzidas e manipuladas por todo este aparato na medida em que somos direcionados por filtros, ícones e gadgets, no momento do nosso contato com a realidade ou na maior parte do tempo com a imagem dela projetada no mundo virtual. Noutras palavras, somente sentimos aquilo que pode ser encontrado pelos filtros, traduzido no universo pictórico dos ícones e simplificado pelo instrumental dos gadgets.  

 

Alguns não se importam, até porque se encontram hipnotizados pelo entretenimento proporcionado pela tecnologia, que mascara inclusive a solidão causada pela totalitária mediação de nossas relações com pessoas reais, realizada pela mesma tecnologia. Como constatou Baumann, as fronteiras entre o real e o imaginário já não existem mais, a diferença entre o falso e o verdadeiro não tem mais significado algum[2], e neste contexto somos consolados pela sensação de comunidade feliz que nos traz o mundo virtual. Em suma, muitos foram absorvidos por um ciclo vicioso em que a tecnologia os afasta das pessoas de verdade e oferece como remédio para a consequente solidão, a companhia de pessoas virtuais criadas pela própria tecnologia, as quais são sempre felizes e belas.

 

Nesta sociedade pós-moderna, em que o homem se descobre não apenas social, mas digitalmente social, a maioria dos indivíduos tem uma vida dependente das redes sociais, passa horas conversando com pessoas que sequer tem certeza da existência real. Todos parecem sempre bem-sucedidos, lindos e felizes em seus perfis, a exposição da intimidade é uma forma de vender-se como indivíduo atraente e boa parte das relações travadas neste ambiente são de uma artificialidade evidente, o que indica que jamais subsistiriam as agruras do dia-a-dia. Ora, todos somos em certa medida feios, acordamos descabelados, temos momentos tristes, introspectivos e somos interessantes justamente porque não revelamos alguns detalhes de nossa intimidade. As relações amorosas e de amizade que nos marcam intensamente são exatamente aquelas em que o outro conhece também o nosso lado B, numa saudosa referência aos charmosos discos de vinil. Além disso, aqueles que pensam ser a rede social um ambiente propício para o debate sério de temas importantes, estão enganados, a maioria utiliza o espaço virtual para diversão, para travar contatos descompromissados, para desabafar ou bisbilhotar a intimidade dos outros. Pouco conheço desses lugares, mas jamais tive notícia de ou fui apresentada a uma discussão interessante que tivesse sido travada no perfil de alguém, sempre tomo conhecimento de frivolidades desfiladas neste espaço.

 

O grande problema é que as redes sociais se impõem a todos e recusar um convite para entrar neste mundo virtual significa uma ofensa à evolução humana. Como disse Bauman, quem não participa de redes sociais nos dias atuais encontra-se fora da comunidade e a morte social é certa[3]. A exclusão para aqueles que resistem a esta mediação tecnológica com o mundo real é inevitável, pois todo mundo à sua volta oferece a internet como única via de comunicação.

 

Entretanto existem alguns que insistem em não utilizar constantemente o aparato tecnológico, burlam o trânsito que impõe horas de contato com o mundo através do vidro do carro escurecido pela película, mantêm-se o máximo que podem distantes de um celular (cuja função se restringe normalmente a realizar ligações), não possuem tablets, preferem os livros ao invés do google search e não sabem, nem querem saber, para que servem os gadgets.

 

A reivindicação desses heróis da resistência, porque viver longe da tecnologia e resistir aos apelos do mundo virtual são atitudes heroicas em nossa sociedade, é de que precisam ter contato com o real, precisam sentir, precisam tocar, precisam ver e estabelecer relações marcadas por emoções que ganham resposta no corpo, no tom de voz, nas expressões do outro. Para essas pessoas, a sensação de passar os dedos sobre as paredes arabescas do palácio de Alhambra e sentir a ranhura do trabalho do escultor, jamais se comparará a foto digitalmente disponibilizada deste local na rede; ver a luz de uma pintura de El Greco pessoalmente, o brilho no rosto dos amados, nunca terá o mesmo encanto quando mediado pelo aparato tecnológico.

 

Além disso, aqueles que desesperadamente tentam escapar das imposições da mediação tecnológica protestam por manter sua identidade, por preservar sua intimidade, por se relacionar com amigos de carne e osso. Em nome desse fugidio contato com o real é que resistem, para proteger aquilo que os faz únicos, para garantir seu espaço de privacidade (querem ficar tristes, felizes, solteiros, casados, amargos, feios, sem que todos saibam disso), para ter amores, amigos, inimigos a quem possam encarar. Não querem seguidores, mas questionadores; não querem ser curtidos ou descurtidos, querem ser amados ou odiados.

 

Enfim, como respondeu uma dessas pessoas que resistem ao totalistarismo tecnológico, redutor de nossas formas de comunicação com o outro, ao ser censurada por não ter um perfil no facebook: - Não quero ser como todo mundo, quero ser eu!

 

A prova da sufocante ditadura da tecnologia é o fato de que a divulgação deste texto exige a sua submissão aos procedimentos daquela e a sujeição da sua autora à respectiva mediação.

 



* Mestre e Doutora em Direito pela UFPR. Professora de Direito Processual Penal no Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Advogada.
[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
[2] BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.