terça-feira, 24 de abril de 2012

O papel do Sistema de Justiça na construção do Estado Penal

O papel do Sistema de Justiça na construção do Estado Penal

Rubens R R Casara[1]

Com a “era de ouro”[2] do capitalismo, que se seguiu ao fim da 2ª Guerra Mundial, diante do crescimento expressivo da riqueza produzida, criou-se a expectativa da redução das desigualdades. A derrota do nazismo e a reflexão sobre as conseqüências da Segunda Guerra Mundial pareciam apontar à condenação do pensamento autoritário, sobretudo o que se manifestava através do poder de castigar e exterminar. Havia relativo consenso de que a produção de dor pelo Estado havia chegado ao auge com o Nazismo e que o declínio dos modelos autoritários seria iminente. Instaurou-se um tempo de otimismo, no qual se apostava em uma sensível diminuição dos conflitos a tornar cada vez mais próximo o momento em que se daria a repartição, distribuição e retribuição do gozo[3].
 A terceira revolução tecnológica, com o avassalador domínio da técnica, ao produzir a promessa de submissão da natureza aos desejos do homem, gerou a crença no aumento da produção, com a diminuição das jornadas de trabalho e a valorização do homem. Anunciava-se uma sociedade inclusiva. Não por acaso, entre os teóricos do sistema penal festejava-se o declínio da prisão. O encarceramento, tanto como pena quanto como medida assecuratória da persecução penal, era vista “como uma instituição em declínio inevitável, destinada a ser substituída em médio prazo por instrumentos de controle social mais difusos, discretos e diversificados”.[4] Todavia, esse prognóstico revelou-se completamente equivocado.
O otimismo, gerado com a derrota das forças que encarnavam o ideal autoritário/fascista, durou pouco. Com o pós-guerra também se deu o alargamento da sociedade de consumo e o correlato processo de uniformização e negação das diferenças. Já nesse momento, ai diferente reservou-se o papel de inimigo.
A revolução tecnológica, longe de libertar, levou à submissão do homem, que perdeu importância na cadeia produtiva. Como percebeu Marildo Menegat, “com o emprego maciço de novas tecnologias, (...), o trabalho vai-se tornando um momento residual da produção”. [5] Desapareceu a ilusão do pleno emprego. Paradoxalmente, com a intensificação da produção (e das necessidades, artificialmente construídas, de consumo), formou-se uma multidão de desempregados, de indivíduos indesejáveis, pois não só deixaram de interessa à produção como também se tornaram despidos de poder de consumo.
Em pouco tempo, o projeto de uma sociedade inclusiva deu lugar à uma sociedade excludente.[6] Em substituição ao Estado Social, que se tentava construir a partir de pressões populares, percebe-se a erupção do Estado Penal,[7] forma de conter os indesejáveis e manter as estruturas sociais.  Diante desse quadro, a partir da década de sessenta, em especial na segunda metade da década de setenta, a prisão se revitaliza, mantendo-se como o principal instrumento de política criminal.
Fundada em uma tradição autoritária, que acredita no uso da força como resposta aos mais variados problemas sociais, fez-se uma clara opção pela prisão como principal forma de contenção da população indesejada. Vale lembrar que a privação da liberdade, como todas as formas de punição, é um dado histórico, uma construção ligada aos valores culturais do Estado que a emprega.[8]  
No Brasil, pais de capitalismo tardio e de tantas promessas de bem-estar descumpridas, o problema do encarceramento em massa da população assume ares ainda mais dramáticos (sem exagero, costuma-se apontar as prisões tupiniquins como novos gulags). Ao lado das políticas assistencialistas (Bolsa-Escola, Bolsa-Família, etc.), o encarceramento em massa da população pobre aparece como uma das principais estratégias de contenção da multidão de brasileiros que não detém poder de consumo.[9]
Nesse contexto, qual é o papel do sistema de justiça criminal?
Por sistema de justiça criminal entende-se o conjunto de instituições, agências (oficiais ou não), textos legais, atores e práticas que tratam do poder penal, do poder de punir pessoas criminalizadas. Percebe-se, pois, que esse sistema existe em razão da possibilidade do Estado impor sofrimento, ainda que legítimo. A partir de uma cultura democrática, o sistema de justiça criminal direciona-se à limitação do poder e à garantia contra a opressão tanto do Estado quanto do particular. A democraticidade, a atuar como princípio unificador do sistema, levaria ao controle do exercício do poder penal. [10]
Entretanto, não é isso que acontece. Diante da ausência de políticas públicas que assegurem o direito à vida digna, para além do discurso oficial de verniz democrático, a funcionalidade real do sistema de justiça criminal é a de potencializar o poder de punir e, dessa forma, alimentar o Estado Penal. Esse quadro leva à negação do Estado de Direito, uma vez que as leis e o Poder Judiciário deixam de atuar como limites/interdição ao arbítrio.
Note-se que a tradição autoritária, em que os diversos intérpretes (policiais, promotores, juízes, legisladores, administradores, etc.) estão inseridos, favorecem a produção de normas e a atuação voltada à ampliação do poder penal e o encarceramento em massa. Então, pode-se afirmar que o sistema de justiça criminal, em sua atuação concreta, no lugar de reafirmar direitos, sonega-os (só nega os direitos de parcela considerável da população).
E o que fazer diante desse quadro? Em princípio, só é possível superar uma tradição autoritária a partir da construção de uma cultura verdadeiramente democrática. Democracia, aqui entendida em sentido substancial, ou seja, como participação popular na tomada das decisões somada ao respeito aos direitos fundamentais. [11]
Por evidente, a formação de uma cultura democrática entre os agentes estatais que atuam no sistema de justiça passa pela necessária compreensão de que devem, em cada um de seus atos, estar atentos ao projeto constitucional de vida digna para todos. A esperança, portanto, reside no elemento humano do sistema. Para compreender a forma como atua, assumir a respectiva parcela de responsabilidade pela política de encarceramento e romper com esse estado de coisas, o agente estatal que integra o sistema de justiça criminal deve, antes de tudo, se interpretar, isto é, buscar desvelar preconceitos, pré-compreensões e pulsões que o levam a naturalizar o fato de colocar dentro de jaulas outros seres humanos.
          






[1] Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutor em Direito pela UNESA, Mestre em Ciências Penais pela UCAM, Professor de Processo Penal do IBMEC-RJ e Membro da Associação Juízes para a Democracia, do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia e do Corpo Freudiano – Seção Rio de Janeiro.
[2] Cf. HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX; trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[3] Segundo Lacan, a essência do direito está em “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (LACAN, Jaques. O seminário, livro 20: mais, ainda; trad. MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 11).
[4] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos; trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 171.
[5] MENEGAT, Marildo. O Olho da barbárie. São Paulo: Expressão popular, 2006, p. 89-90.
[6] Nesse sentido: YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
[7] Sobre o Estado Penal, por todos: WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos; trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[8] As concepções de “disciplina” e “tempo”, imprescindíveis à ideia de privação de liberdade como pena proporcional ao delito, são construções burguesas. Não por acaso, costuma-se apontar que a prisão, como principal resposta às condutas etiquetadas como criminosas, nasce no período mercantilista e universaliza-se com o iluminismo (nesse sentido: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004).
[9] Nilo Batista faz coro com Loïc Wacquant para apontar as prisões como “verdadeiros planos habitacionais para a miséria” (http://www.anovademocracia.com.br/no-27/570-penitenciarias-e-estado-criminoso).
[10] Nesse sentido: MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2010.
[11] Nesse sentido: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do garantismo jurídico. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

PODER JUDICIÁRIO: entre a esperança e o descrédito

PODER JUDICIÁRIO: entre a esperança e o descrédito

RUBENS R R CASARA


I - Apresentação do Problema
No imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque. Diante dos conflitos intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista que cria obstáculos ao diálogo, de sujeitos que se demitem de sua posição de sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o comanda e não se autorizam a pensar e solucionar seus problemas[1]), da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos individuais, coletivos e difusos, o Poder Judiciário apresenta-se como o ente estatal capaz de atender às promessas descumpridas tanto pelo demais agentes estatais quanto por particulares e de exercer a função de guardião da democracia e dos direitos.[2]
 A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça[3] em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas (ainda que meramente formais)às crescentes demandas, o Poder Judiciário recorre a uma concepção política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio[4] gestado nos períodos autoritários da história do Brasil para manutenção da ordem.
Assim, na media em que cresce a atuação do Poder Judiciário e diminui a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial[5], o que está a indicar um aumento de influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, aumenta a crise de legitimidade desses órgãos, cresce o sentimento de desconfiança em relação à Justiça.
Procurar-se-á, neste pequeno texto, apontar algumas das causas desse descrédito e problematizar, a luz do ideal democrático, as contradições e ideologias que constituem e condicionam a atuação do Poder Judiciário no Brasil.
II – Da tradição autoritária à burocratização: um caminho marcado por bacharelismos, comodismos e neuroses.
            Não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário desassociada da tradição em que os magistrados[6] estão inseridos. Adere-se, portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira[7]. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade[8], sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo.[9]
            De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário tornou-se uma máquina de burocratizar.[10] Esse processo, que se inicia na seleção e treinamento dos magistrados, pode ser explicado: em parte, porque assim os juízes dispensam a tarefa de pensar e, ao mesmo tempo, ao não contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam a colisão com a opinião daqueles que podem definir sua ascensão e promoção na carreira (“comodismo crônico”);[11] em parte, porque há uma normalização produzida pelo senso comum e internalizada pelo juiz (“neurose conservadora”),[12]através da qual esse ator jurídico passa a acreditar no papel de autoridade diferenciada, capaz de julgar despido de ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que o processo de produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba por condicioná-lo a adotar posturas conservadoras no exercício de suas funções com o intuito de preservar a tradição.
            Para além dessa tendência à conservação da tradição que acompanha o Poder Judiciário desde sua origem, há também o caráter ideológico do direito burguês, a serviço do velamento da facticidade, em especial das contradições existentes na sociedade. Conforme a crítica marxista ajuda a compreender[13], os textos legais, com suas abstrações generalizantes, são capazes de produzir uma alienação mundana que favorece a manutenção do status quo. Assim, se o texto legal, potencialmente conservador, é um evento que não pode ser ignorado pelo juiz, intérprete privilegiado que irá criar a norma para o caso concreto[14], reforça-se, ainda mais, o caráter conservador da atuação do Poder Judiciário.
III – A tentação populista.
            A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento da população fazem com que o Judiciário seja visto como uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Diante desse quadro, não pode causar surpresa a falta de credibilidade que pesa sobre as ações que se desenvolvem no Sistema de Justiça, uma vez que a sociedade brasileira é incapaz de identificar no Poder Judiciário um instrumento de construção da democracia.
            A constatação desse distanciamento em relação à população gerou em diversos setores do Poder Judiciário uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados através dos meios de comunicação de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais, como forma de democratizar a Justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento.[15]
            Na democracia, porém, os direitos fundamentais de todos devem ser respeitados. A atuação dos magistrados não pode ser pautada pelo desejo das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das minorias. O Poder Judiciário atua como garante contra a opressão, inclusive contra abusos promovidos pela maioria, e é, portanto, contramajoritário.  Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de todos os demais[16]. Dito de outra forma: os direitos fundamentais funcionam como trunfos contra as maiorias de ocasião e cabe ao Poder Judiciário assegurar não só esses direitos como também a própria democracia em sentido substancial. [17] 
             
IV – Conclusão.
            A tradição em que os atores jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, e a burocratização são fatores que fazem com que o Poder Judiciário não conte com a confiança da sociedade brasileira. Percebido como uma agência estatal seletiva, voltada somente aos interesses da elite, incapaz de concretizar os direitos da grande maioria da população, o Judiciário passa por séria crise de legitimidade.
As tentativas de satisfazer a opinião pública, com a adoção de medidas judiciais que contam com o apoio dos meios de comunicação de massa, tem resultado em violações aos direitos fundamentais, que deixam de funcionar como limites à opressão do Estado e das maiorias, colocando em risco a própria democracia.
Diante desse quadro, para evitar frustrações, é importante reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de substituir a luta política. Os membros desse poder, na condição de agentes políticos, devem aderir e incentivar essa luta. Para tanto, precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam, seus preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em que estão inseridos e reconquistar a  legitimidade perdida (quiçá construir uma legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar pelo resgate da política como meio de satisfação das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo, atuar sempre voltados à concretização do projeto constitucional. Isso, por sua vez, significa assumir a função do Poder Judiciário no jogo democrático, de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e acomodar os conflitos, e zelar pela divisão das responsabilidades nesse processo de construção da democracia brasileira.





[1] Cf. LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p. 73.
[2] Nesse sentido: GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro. Revan, 1999.
[3] Por Sistema de Justiça entende-se o conjunto de estruturas, leis, regulamentos e agentes que repercutem/atuam na função jurisdicional (na declaração e/ou realização de um direito através do Poder Judiciário). Ou seja, esseo conceito abrange, não só os membros do Poder Judiciário (juízes, desembargadores, serventuários, juízos, tribunais, etc.), como também o Ministério Público, a Defensoria Pública, os diversos ramos da advocacia e os respectivos regulamentos, leis, órgãos e agentes.
[4] Com Rui Cunha Martins, entende-se que quer no eixo autoritário, quer o eixo democrático, há “um sistema complexo, intrinsecamente plural, de referências doutrinárias, mecanismos de acção, funções ideológicas e experiências históricas concretas, interagindo e agregando-se de forma dinâmica. Cada um desses conjuntos, à medida que vai sendo requisitado e em que vai incorporando novas formas históricas, devém patrimônio – patrimônio ditatorial e patrimônio democrático -e é nessa condição patrimonial que ele é recebido, encarado e utilizado em cada momento histórico. (...) só entendendo a democracia e a ditadura como patrimônio se pode compreender que elas fiquem em cada época, como valor que são, disponíveis para uso” (MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the brazilian lessons.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 106.
[5] Para os fins deste texto, o ativismo judicial identifica-se com a substituição das ações do Executivo e do Legislativo, bem como das reivindicações populares, por medidas e decisões judiciais. 
[6] No Brasil, adota-se o modelo do juiz profissional, em que os magistrados assumem as suas funções a partir da aprovação em concursos públicos ou por indicações políticas (os tribunais são compostos por juízes de carreira, que são promovidos, e por pessoas escolhidas sem a necessidade de concurso público; nos Tribunais Superiores, ou seja, naqueles com jurisdição em todo o território nacional, essa escolha cabe ao Presidente da República).
[7] Segundo Gizlene Neder, tanto a colonização quanto a escravidão ainda condicionam o padrão de estrutura social e de poder, se manifestando sob a forma de permanências simbólicas que atravessaram várias conjunturas do processo histórico brasileiro (Nesse sentido: NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995).
[8] Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Sociedade liberal e tradição no bacharelismo jurídico. In Direito, Estado, Política e sociedade em transformação (Org. BORGES FILHO, Nilson). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 10.
[9]GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro. Revan, 1999, p. 61.
[10] Nesse sentido: ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Pedrosa e Amir da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 141.
[11]Cf. MEDEIROS, Osmar Fernando de. Devido processo legal e indevido processo penal. Curitiba: Juruá, p. 239.
[12]MEDEIROS, Osmar Fernando de. Devido processo legal e indevido processo penal. Curitiba: Juruá, p. 239.
[13] BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2012.
[14] Adere-se aqui à tese que pugna pela diferença ontológica entre texto e norma, esta sempre o produto da criação do intérprete. Por todos: STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[15] Na esfera penal, o populismo tem gerado a admissão de provas ilícitas e o afastamento de direitos e garantias fundamentais dos investigados e acusados com o objetivo de satisfazer os anseios punitivos da mídia.
[16] Em se tratando de direitos indisponíveis, na salvaguarda desses, o Poder Judiciário deve julgar inclusive contra a vontade do próprio titular do direito.
[17] Para além da democracia formal, em sentido material a democracia exige a concretização dos direitos fundamentais. Nesse sentido: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razon. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et alli. Madrid: Trotta, 1998.


Publicado originalmente em: NUevamerica: justicia y democracia, nº 133, jan-mar 2012.


segunda-feira, 9 de abril de 2012

A aposentadoria de um Geraldino...



Por ocasião da morte de Tom Jobim, Chico Buarque declarou que não tinha mais para quem mostrar as suas canções. Segundo Chico, era a opinião do genial Jobim que ele buscava escutar sempre que fazia uma música. Há algo desse sentimento, dessa tomada de consciência de um vazio, em todos os juízes fluminenses (aqui eu me incluo) que torciam para que suas sentenças fossem apreciadas em grau recursal pelo professor Geraldo Prado.
                    Um juiz que... gosta de samba e futebol. Um legítimo carioca que é motivo de orgulho, não só para os amigos (e aqui me incluo, novamente), como também para todos aqueles que compreendem o que é a democracia. Um juiz que gosta e sofre com o povo: um juiz como todos deveriam ser...
Geraldo aposentou-se (ou, segundo o próprio, trocou de trincheira) na última semana.  Para homenageá-lo, segue parte do texto escrito para a apresentação do livro lançado em sua homenagem:



"Nas crônicas de Nelson Rodrigues que retratavam o mundo do futebol (uma das paixões de nosso homenageado, habilidoso atacante) nasceu a expressão “geraldinos e arquibaldos”. Em oposição aos “arquibaldos”, os bem comportados ocupantes das arquibancadas dos estádios de futebol, espaço da burguesia e dos torcedores mais conservadores, aparecem os “geraldinos”, representantes das classes subalternas, o povo que só comprava ingresso para assistir aos jogos em pé “na geral”, locus dos personagens mais irreverentes, criativos e combativos. Também inspirado no clima dos estádios de futebol, e do Maracanã em particular, Luís Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, compôs “Geraldinos e Arquibaldos”, letra e música com forte conotação política, que através da metáfora do futebol retrata o  comportamento do brasileiro em meio ao jogo da vida (“E esse jogo tá um osso/ É um angu que tem caroço”), que se desenvolve “no campo do adversário”. Por evidente, o paralelo entre “geraldinos” e “arquibaldos” remete ao confronto entre grupos políticos nascidos da Revolução Francesa, os Jacobinos e os Girondinos, a esquerda e a direita, aqueles que lutam para mudar e os que se conformam com o status quo.
 Na arena jurídica, Geraldo Prado nunca deixou dúvidas: sempre foi um inconformado com a injustiça social, com o processo de exclusão/extermínio de parcela da sociedade. Com a coerência daqueles que sabem que, sob certo aspecto, a divisão entre teoria e prática é artificial, Geraldo forjou sua produção, tanto na academia quanto nos órgãos judiciais em que atuou, a partir de um compromisso com o “outro”, com a diferença, com “os de baixo”, com aqueles que, criativos, combativos e, por vezes, até irreverentes, lutam em meio às adversidades para (sobre)viver. Em suma, Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, em suas sentenças, acórdãos e livros, produziu textos geraldinos.
Sem ignorar que o direito burguês surgiu como obstáculo à transformação social, ciente de que o sistema penal brasileiro foi historicamente utilizado como forma de controle da população indesejada, Geraldo assumiu a posição que se espera de um intelectual que não se perde em abstrações metafísicas: tomou conceitos do âmbito do direito, da filosofia, da antropologia, da sociologia, da política e da história e colocou-os a serviço do projeto constitucional de vida digna para todos; fez da teoria que produz um instrumental da guerrilha – da luta por posições emancipadoras - que trava tanto nas salas de aula em que leciona e nos livros que escreve quanto no tribunal em que exerce como poucos a jurisdição. Impossível, em se tratando de pessoas coerentes como ele, imaginá-lo atuar burocraticamente, insensível aos dramas humanos potencializados pelo abandono do Estado Social e sua progressiva substituição pelo Estado Penal.
Nascido em 05 de abril, graduado em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre (1998) e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (2003), com estudos de pós-doutoramento na Universidade de Coimbra, Geraldo Prado lecionou em diversas universidades fluminenses (UCAM, UGF, UVA, UNIG, FDC, UNESA, dentre outras), tanto na graduação quanto em programas de pós-graduação, e atualmente é professor da histórica Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Mais do que alunos e colegas de cátedra, Geraldo colecionou ao longo dos anos dedicados ao ensino do direito um enorme rol de amigos, admiradores e seguidores.
Fundador do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Geraldo Prado lutou, conquistou vitórias e sofreu derrotas (que confirmam sua posição de vanguarda) na busca da radical democratização da sociedade brasileira (...)".


Valeu, meu amigo: novos desafios te esperam...

Carta aberta do juiz Marcos Peixoto ao jornal O Globo

Carta aberta do juiz Marcos Peixoto ao jornal O Globo em 09 de abril de 2012


         Hoje, 09 de abril  de 2012, o Globo – este grande jornal (melhor diríamos: este jornal grande) a serviço do desserviço – apresenta duas manchetes: “Quatro em dez jovens infratores reincidem” e “Violência faz outra vítima em Niterói”.
         O que estas duas notícias têm em comum? Numa única palavra: hipocrisia.
         Hipocrisia ligada a dois sistemas hipócritas: as UPPs e o Direito Penal e Infracional enquanto pretensas panaceias, incensadas por esta mesma grande mídia que, agora, por força das circunstâncias, aqui e ali começa mui timidamente – e, como sempre, superficialmente – a criticá-las – afinal, o que realmente importa é vender jornal, lucrar muito e, para tanto, de olho na classe média e seus reclamos!
         Até bem pouco tempo (e estamos longe do fim, é verdade...), em matéria de práticas ilícitas (dos pobres, que fique bem entendido...) a grita geral era no sentido de mais punição e punição maior. Não está funcionando? Aumentemos as penas. Não funcionou, diminuamos a idade penal. E por aí vai...
         Os institutos correcionais (este grade eufemismo para senzalas modernas) para maiores e menores de idade nunca estiveram tão inchados de almas lá atulhadas em condições indignas quiçá de animais irracionais (por muito menos, as sociedades protetoras de animais fazem um escândalo – e com razão!). São os nossos imensos tapetes, para baixo do qual se pretende varrer a “sujeira” deixada por aí pelo sistema neoliberal, ao melhor estilo “o que os olhos não veem... o capitalista não sente”.
         Mas nada disso funcionou...
         O grave problema é que este sistema nada resolve – como nada resolvem as UPPs. Os dois só mudam o problema de domicílio e identidade. Razão? Foco incorreto.
         Pacificaram-se comunidades? Quais? Aquelas em que foram (ou estão a ser) instaladas as UPPs e nas quais os índices de homicídio aumentaram – Rocinha, por exemplo? Ou aquelas que receberam os criminosos fugitivos das UPPs e nas quais os índices de homicídio aumentaram – Niterói, por exemplo?
         Cidadãos imersos na criminalidade não são resgatados com polícia, nem prisão. A prisão os deteriora, enquanto a polícia não lhes confere o que necessitam efetivamente para mudar de vida: educação, saúde, esporte, emprego, programas concretos e amplos de reinserção social para egressos – são meros exemplos.
         Mas este não é o foco. Prefere-se investir no desfoco. E aqui estamos.