quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O JULGAMENTO DO CHAMADO “MENSALÃO”: UM ALERTA AOS ESTUDANTES DE DIREITO: um texto de Maria Lucia Karam





O JULGAMENTO DO CHAMADO “MENSALÃO”: UM ALERTA AOS ESTUDANTES DE DIREITO
 
 
                                                                                                               Por: Maria Lucia Karam



A euforia midiática com o televisivo julgamento do caso chamado de “mensalão”, contando inclusive com comentaristas apresentados como professores e juristas, tem escondido sérios danos ao Direito perpetrados nas longuíssimas sessões que fazem pensar se o notável saber jurídico que se supõe existisse quando da indicação dos magistrados que integram o STF não teria se perdido com o passar do tempo.
O julgamento padece de um vício original: a violação do basilar princípio do juiz natural. Cidadãos comuns processados perante o STF, quando a Constituição Federal estabelece a competência originária de tal órgão judiciário para atuar tão somente em processos em que figurem como réus integrantes de determinadas funções públicas de especial relevância, assim ao mesmo tempo estabelecendo a competência residual dos juízes de primeiro grau para atuar em processos em que figurem como réus cidadãos comuns, a mera conexão entre causas não sendo contemplada na Lei Maior como razão para alteração dessa competência. A violação ao basilar princípio do juiz natural se revela também em relação aos réus integrantes daquelas funções públicas de especial relevância, na medida em que provas foram produzidas perante juízes de primeiro grau, quando provas válidas são somente aquelas produzidas perante o juiz natural, a norma constitucional claramente estabelecendo que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, não contemplando qualquer autorização para delegações na instrução do processo.
Mas, não é apenas a desconsideração do basilar princípio do juiz natural, já revelada em anteriores atuações do STF, que motiva as considerações aqui expostas. São sim algumas “pérolas” vindas no decorrer do contaminado julgamento.
Ouviu-se douto integrante do STF afirmar que manifestação do réu em torno da negativa de autoria do crime a ele atribuído – apresentando, por exemplo, um álibi – constituiriam alegação de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito alegado pelo autor (!!!!).
Ouviu-se douto integrante do STF afirmar que a antiga Visanet Brasil (hoje Cielo) seria uma subsidiária do Banco do Brasil (!!!!).
Ouviram-se doutos integrantes do STF se referirem à concepção do domínio do fato, plenamente desenvolvida há pelo menos uns cinquenta anos, como se fosse uma grande novidade, e, pior, confundindo seu conteúdo que, de instrumento para a correta diferenciação entre autoria e participação viu-se transportado para o campo da análise probatória (!!!!).
Agora, chegando ao momento de fixação das penas (inusitadamente distante do momento do pronunciamento sobre a procedência do pedido condenatório – aliás, em tal momento, doutos integrantes do STF não falavam em procedência ou improcedência do pedido, falando em procedência ou improcedência da ação (!!!!) –, ouviu-se acirrada discussão entre os doutos julgadores acerca da regra aplicável na imposição da pena referente a crime previsto no art.333 CP, dada alteração legislativa na medida das penas cominadas – regra vigente a partir de 21/11/2003 estabelecendo pena de reclusão de 2 a 12 anos, enquanto regra anterior cominava a pena de reclusão de 1 a 8 anos. Na acirrada discussão, verificou-se então que não se sabia exatamente se tal crime se dera antes ou depois da lei nova, não se sabendo a data (ao menos aproximada) do oferecimento ou da promessa da vantagem. O réu fora condenado sem que se soubesse quando o fato ocorrera (!!!!). Diante da dúvida tardia, douto integrante do STF que aplicava pena de 4 anos e alguns meses utilizando como parâmetro a lei que elevara a pena cominada para reclusão de 2 a 12 anos relutantemente acabou por se convencer que a lei aplicável seria a que cominava a pena de reclusão de 1 a 8 anos, mantendo, no entanto, a mesma pena concretizada em 4 anos e alguns meses (!!!!).
Talvez fosse recomendável fazer um alerta aos estudantes de Direito: desliguem a TV!

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A Imprensa Entorpecida. Por Luis Fernando Tófoli



A IMPRENSA ENTORPECIDA
Luis Fernando Tófoli
 
 
 
 

Na edição do Jornal Nacional de 24 de fevereiro de 2012 – um momento marcado pelas ainda recentes ações higienistas de retirada dos chamados “noias” das ruas de São Paulo e Rio de Janeiro –, após uma longa reportagem de sete minutos sobre o crack para discutir a internação compulsória de seus usuários, o âncora William Bonner arrematou, diante das sobrancelhas graves de sua colega Patrícia Poeta: “Todo mundo diz que crack basta experimentar uma vez só e a pessoa fica viciada”.
Infelizmente, Bonner não citou fontes nem apresentou referências. Mesmo com as fantasias apocalíptico-epidêmicas associadas ao crack, ainda assim é necessário corrigir a informação do jornalista e alertar ao leitor que “todo mundo”, nesse caso específico, está errado. Não existe uso de droga sem usuário e sem contexto. Por mais que uma substância possa ter, por sua farmacologia, um maior ou menor potencial para induzir dependência, não existem drogas com propriedades “mágicas”. É a combinação entre a substância, o momento de vida da pessoa e o contexto de consumo que causam ou impedem a adição. Nenhuma droga vicia por si e nem instantemente, e isso vale tanto para o crack e a heroína quanto para uma das drogas de maior potencial de dependência, o tabaco.
A redução da criminalidade em Portugal
É uma tarefa árdua para o jornalista se mover dentro deste campo. Drogas, incluindo o álcool, são um assunto polêmico e complicado, que afeta as pessoas de formas diferentes e envolve campos distintos do conhecimento – Direito, Sociologia, Antropologia, Farmacologia, Neurociências, Psicologia, Religião, Saúde e Segurança Pública – áreas que usam termos mutuamente incongruentes e expressam visões frequentemente antagônicas entre si. Para complicar ainda mais, os jornalistas são uma categoria profissional cujo contato com as drogas legais e ilegais não é, definitivamente, menor do que na população em geral.
A segurança do profissional de imprensa, portanto, diante da dificuldade deste tipo de pauta, do peso do prazo e da necessidade de que a notícia também venda o meio onde ela circula, acaba sendo o lugar onde a classe política viceja diante da questão das drogas: o senso comum. Não ofenda, não contorne, não surpreenda o senso comum: enquanto as pessoas acreditarem que as drogas são um mal em si, mantém-se a zona de segurança.
Em um painel organizado pela Organização Mundial da Saúde em Washington para marcar o Dia Internacional contra o Abuso de Drogas, na terça-feira (26/6), especialistas defenderam as estratégias de redução de danos e até a legalização de substâncias ilícitas como formas de reduzir o impacto social de seu uso. Até onde a imprensa nacional chegará sobre este assunto, além de reproduzir as notas de agências internacionais e mencionar as “campanhas” oficiais? É fato que Portugal tem uma história de já 10 anos de sucesso na redução da criminalidade e do abuso ao tornar o uso de drogas legal. O que ficamos sabendo disso em nosso país? O que ouvimos por aqui do impacto das narcossalas da Europa para usuários de drogas que têm o mesmo perfil de nossos dependentes de crack?
Estimulante cerebral
O que lemos, assistimos ou escutamos são, quase invariavelmente, visitas dramáticas às “cracolândias” reais ou imaginárias e incursões a um único tipo de tratamento – internações compulsórias nas ditas comunidades terapêuticas – cuja efetividade é questionável. Monocordicamente, a imprensa reforça o que todo mundo já pensa sobre o assunto e, colateralmente, além de não contribuir socialmente no debate, capitaliza política e financeiramente pessoas e modelos que estão atrelados a, no mínimo, violações aos direitos humanos, segundo demonstrou um recente relatório do Conselho Federal de Psicologia.
Quando assisti à manifestação de William Bonner em cadeia nacional e horário nobre, fiquei pensando se o âncora dispararia expressões de tamanho senso comum se o assunto fosse, por exemplo, a pena de morte (“todo mundo diz que bandido bom é bandido morto”) ou a conduta de algum político (“todo mundo diz que o deputado fulano é ladrão”). Claro que não – apesar de ser, neurologicamente, um estimulante cerebral, só o crack é capaz de entorpecer a imprensa a esse ponto.
Links para as matérias no JN:
>> http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/02/consumo-de-crack-ja-tem-registros-em-90-das-cidades-brasileiras.html
>> http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/02/sp-crack-e-responsavel-por-duas-internacoes-compulsorias-cada-dia.html
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[Luís Fernando Tófoli é professor de Psiquiatria na Universidade Federal do Ceará]