domingo, 7 de abril de 2013

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Reincidência: fracasso do Estado, punição do indivíduo.



     Em razão de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, vale lembrar de um velho artigo escrito com o Siro Darlan. 




Fracasso do Estado, punição do indivíduo, 

                                                                              por Rubens R R Casara e Siro Darlan





Reincidência, por definição, é a prática de um crime após seu autor já ter sido condenado definitivamente por outro. Trata-se de fenômeno previsto no ordenamento penal brasileiro com conseqüências graves: a reincidência obsta a aplicação de medidas penais alternativas à pena de prisão e influencia na fixação do regime de cumprimento da pena, mesmo que todas as demais circunstâncias do caso concreto indiquem que a prisão não é a melhor resposta estatal para o delito verificado. Ademais, o réu reincidente, se for novamente condenado, sofrerá um acréscimo de pena por essa circunstância, independentemente da gravidade social do fato que praticou.




A reincidência está presente na legislação brasileira desde o Código Criminal do Império de 1830, assim como no Código Penal de 1890 como circunstância agravante, em relação ao "novo" delito, desde que da mesma natureza do antecedente. Somente no Código de 1940, é que o legislador adotou simultaneamente a reincidência genérica e específica em caráter perpétuo.

O tratamento legal dado pelo legislador à reincidência acaba por confirmar que o direito positivo não pode ser apresentado como um conjunto de normas racionais e coerentes. As regras jurídicas, por vezes, e em especial nos regimes totalitários, se baseiam em crenças, em premissas despidas de comprovação, coerência ou mesmo de razoabilidade; podem ser adotadas e repetidas, sempre acriticamente, porém, não se tornam racionais: continuam crenças e, no mais das vezes, incompatíveis com o projeto de construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Talvez em razão dos sentimentos e pulsões que o crime desperta (medo, morte, insegurança, impotência, etc.), a justiça penal revelou-se um campo propício ao surgimento e manutenção das mais variadas crenças, que acabam por condicionar os julgamentos.

A crença que procura legitimar o tratamento legal dado à questão da reincidência é a de que a pessoa que não aprendeu com a condenação (e correlata pena destinada à ressocialização) merece ser punido mais severamente por insistir na vida criminosa. Dito de outra forma: a idéia de punição mais rigorosa baseia-se na premissa de que o criminoso reincidente seria mais perigoso, uma vez que, apesar de ingressar no sistema penitenciário brasileiro, não aproveitou essa "chance" para se ressocializar. Há, em relação à reincidência, um elemento comum a todas as crenças: trata-se de um exercício de fé desassociado da reflexão.

Nas diferentes classes sociais a visão maniqueísta que divide a sociedade entre "homens de bem" e "homens maus", entre o cidadão e o inimigo da sociedade, ganhou adeptos. O reincidente, ainda de acordo com essa perspectiva, é o protótipo do "homem mau"; o reincidente seria aquele, que por ser mal/perigoso, praticou um crime após já ter sido condenado por outro delito. Desconsidera-se, por completo, a natureza humana e toda a sua complexidade; esquece-se que os sentimentos de bondade e maldade convivem em cada um.

Não é difícil perceber que essa visão sobre a reincidência pode ser facilmente desconstruída. Poder-se-ia evocar diversos argumentos capazes de apontar que o tratamento legal da reincidência não tem espaço em um sistema penal que se quer racional. Bastaria lembrar, por exemplo, da falência do sistema penitenciário, incapaz de atender aos fins a que se destina (o caos penitenciário, aliás, acaba potencializado por encarceramentos desnecessários em razão da reincidência). Também não se pode esquecer que, por vezes, não raras, a diferença entre o indivíduo primário e o reincidente é de que o primeiro teve sucesso na empreitada criminosa. Em resumo, nada assegura que o réu reincidente, apenas pelo fato de ser reincidente, é mais perigoso ou danoso à sociedade. Por outro lado, o valor dado à reincidência pelo ordenamento jurídico, sem apoio em estudos sérios ou constatações empíricas, continua a produzir efeitos reais e perversos, dentre o quais o de colocar o Estado brasileiro na condição de violador de tratados internacionais que vedam a dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem). Salta aos olhos que, uma vez apenado por um crime, o aumento de pena por este mesmo fato em outro processo constitui afronta à normatividade internacional.

Hoje, vinte anos após a promulgação da Constituição da República, a questão merece novo tratamento.

A análise dos direitos e garantias agregados ao ordenamento jurídico na caminhada histórica da humanidade faz ver que a agravante da reincidência é insustentável. Os princípios da secularização (a moral não se confunde com o direito; o pecado não se identifica com o crime, nem o pecador com o criminoso) e da dignidade da pessoa humana enunciam que ninguém pode ser punido pelo que é (ser criminoso), como ocorria nos regimes nazi-fascistas, mas tão somente pelo que faz (ato criminoso).

O conceito de reincidência é autoritário, uma espécie de estigma, sem razão de ser e mostra-se em oposição às diretrizes constitucionais (liberdade, dignidade humana, presunção de inocência, etc.). Além do mais, diante das desigualdades sociais e do preconceito contra os egressos do sistema penitenciário verificados no Brasil, facilmente percebe-se que a agravante não produz qualquer desestímulo ao desvio social etiquetado de crime.

O conceito de reincidência como está em nossa legislação contraria tratados internacionais segundo os quais um acusado não pode ser submetido a um novo julgamento pelos mesmos fatos. Assim, sempre que houver identidade fática, de ilícito penal já submetido ao crivo do judiciário a duplicidade de penas importará em resultado constitucionalmente reprovado.

A promessa estatal é de que, com a pena aplicada ao delito, alcançar-se-á a regeneração individual. Trata-se de uma obrigação que o Estado declara pretender cumprir. Por evidente, o fracasso estatal na atuação regeneradora não pode ser imputado ao indivíduo, réu-objeto da política carcerária brasileira. Punir mais severamente o réu reincidente equivale a fechar os olhos para as ilegalidades do Estado no momento da execução das penas. Não se pode punir o indivíduo para ocultar o fracasso do Estado.

A reincidência, portanto é incompatível com os princípios do direito penal democrático e humanitário consagrado na Carta de 1988, uma vez que ao ser utilizada para agravar a pena configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado. Desse modo ao agravar a pena do delito posterior, o juiz está na verdade dando um novo tratamento penal ao delito anterior, e não apenas elevando a pena do segundo crime. Trata-se de um tratamento penal inaceitável para um Estado Democrático de Direito.