domingo, 29 de janeiro de 2012

O (des)caso Pinheirinho: manifesto para divulgar e assinar

Manifesto pela denúncia do caso Pinheirinho à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
No dia 22 de janeiro de 2012, às 5,30h. da manhã, a Polícia Militar de São Paulo iniciou o cumprimento de ordem judicial para desocupação do Pinheirinho, bairro situado em São José dos Campos e habitado por cerca de seis mil pessoas.

A operação interrompeu bruscamente negociações que se desenrolavam envolvendo as partes judiciais, parlamentares, governo do Estado de São Paulo e governo federal.

     O governo do Estado autorizou a operação de forma violenta e sem tomar qualquer providência para cumprir o seu dever constitucional de zelar pela integridade da população, inclusive crianças, idosos e doentes.

     O desabrigo e as condições em que se encontram neste momento as pessoas atingidas são atos de desumanidade e grave violação dos direitos humanos.

     A conduta das autoridades estaduais contrariou princípios básicos, consagrados pela Constituição e por inúmeros instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos, ao determinar a prevalência de um alegado direito patrimonial sobre as garantias de bem-estar e de sobrevivência digna de seis mil pessoas.

     Verificam-se, de plano, ofensas ao artigo 5º, nos. 1 e 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), que estabelecem que toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral, e que ninguém deve ser submetido a tratos cruéis, desumanos ou degradantes.

     Ainda que se admitisse a legitimidade da ordem executada pela Polícia Militar, o governo do Estado não poderia omitir-se diante da obrigação ética e constitucional de tomar, antecipadamente, medidas para que a população atingida tivesse preservado seu direito humano à moradia, garantia básica e pressuposto de outras garantias, como trabalho, educação e saúde.

     Há uma escalada de violência estatal em São Paulo que deve ser detida. Estudantes, dependentes químicos e agora uma população de seis mil pessoas já sentiram o peso de um Estado que se torna mais e mais um aparato repressivo voltado para esmagar qualquer conduta que não se enquadre nos limites estreitos, desumanos e mesquinhos daquilo que as autoridades estaduais pensam ser “lei e ordem”.

    É preciso pôr fim a esse estado de coisas.

   Os abaixo-assinados vêm a público expor indignação e inconformismo diante desses recentes acontecimentos e das cenas desumanas e degradantes do dia 22 de janeiro em São José dos Campos.

     Denunciam esses atos como imorais e inconstitucionais e exigem, em nome dos princípios republicanos, apuração e sanções.

     Conclamam pessoas e entidades comprometidas com a democracia, com os direitos da pessoa humana, com o progresso social e com a construção de um país solidário e fraterno a se mobilizarem para, entre outras medidas, levar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a conduta do governo do Estado de São Paulo.
     Isto é um imperativo ético e jurídico para que nunca mais brasileiros sejam submetidos a condições degradantes por ação do Estado.



Para assinar: http://www.peticoesonline.com/peticao/manifesto-pela-denuncia-do-caso-pinheirinho-a-comissao-interamericana-de-direitos-humanos/353

sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre Guantânamo: um texto de Siro Darlan



     Desde a queda do ditador Fulgêncio Batista  em 1959, muito já foi escrito sobre Cuba e Fidel Castro. Amado por uns, odiado por outros, Fidel protagnonizou momentos inesquecíveis da história mundial. Orador nato, seus discursos tornaram-se famosos, bem como suas  instigantes respostas aos jornalistas que o confrontavam sobre os mais variados temas. Uma vez, perguntado sobre a existência de universitárias que se prostituiam em Cuba, Fidel externou o orgulho da revolução ter conseguido que até as prostitutas tivessem nível universitário. 

   
     Em que pesem os avanços na área de saúde e educação da população cubana, pesa sobre Fidel e os demais dirigentes revolucionários o estigma de promover a violação aos direitos humanos (conceito que, não raro, é relativizado pelas grandes potências que defendem a queda do regime cubano). A questão não é simples, uma vez que, ao longo dos anos, Cuba sofreu vários atentados à sua soberania (Fidel Castro, por exemplo, foi vítima de inúmeras tentativas de assassinato. Nem mesmo o setor hoteleiro - principal aposta do regime para sair da crise originada pelo desmantelamento da URSS - escapou de bombas plantadas por opositores "democráticos" da revolução cubana) e, atualmente, sobrevive a um criminoso embargo econômico promovido pelos EUA. Para muitos, esse contexto de constante ameaça, por si só, justificaria as medidas de exceção adotadas pelo governo cubano (medidas, como a pena de morte, comum também em países que se afirmam defensores da democracia). Outros, porém, não encontram justificação para os fatos que a mídia burguesa divulga sobre a Ilha. Não há, porém, dúvida de que nesse pequeno pedaço do Caribe existem contradições e paradoxos no que se refere a esse tema. 
   

          Todavia, ame-o (como símbolo de uma revolução que fez toda a esquerda latinoamericana sonhar) ou odeie-o, não se pode negar que Fidel estava correto quando, ao ser indagado por um jornalista norte-americano sobre a existência de graves violações aos direitos humanos em Cuba, não teve dúvidas em afirmar: com certeza, existem violações e são graves....ocorrem em Guantânamo. Sobre o tema, vale conferir o artigo de Siro Darlan.







GUANTÂNAMO, DESRESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS.

                                                                                    Siro Darlan, desembargador do Tribunal de
                                                                                          Justiça  do  Rio de Janeiro e  da Associação
                                                                                          Juízes para a Democracia (AJD).



          A prisão estadunidense de Guantánamo completou dez anos de total desrespeito aos direitos humanos dos 171 prisioneiros que ali se encontram. Uma das promessas de campanha do Presidente Barack Obama foi fechar essa casa de torturas, e isso é um sinal do reconhecimento que é manter em funcionamento essa prisão. Contudo já encerra seu mandato e embora em campanha eleitoral ainda não cumpriu sua promessa.

          Em todas grandes cidades ocorreram protestos veementes contra essa violação dos direitos humanos. Testemunhei alguns em Londres, Lisboa e Buenos Aires, mas não vi qualquer reação no Brasil, onde parece que já nos acostumamos com esse tipo de violação. Haja vista que nossas prisões não estão muito distantes daquela realidade.

          Esses dez anos de funcionamento de uma prisão que viola os direitos humanos simboliza o fracasso da mais poderosa Nação e arranha a sua imagem no exterior descredenciando-os para o papel que gostam de protagonizar de polícia do mundo. Não se está com isso protegendo o terrorismo, mas o que não se pode tolerar é que os EUA usem o mesmo credo dos terroristas para derrotar um dos principais valores da civilização ocidental.

         Dentre os 171 presos só um foi julgado, enquanto os demais sequer sabem de que estão sendo acusados em flagrante desrespeito ao princípio universal do devido processo legal.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Leis memoriais, difamação: a insegurança jurídica dos historiadores (análise da condenação de Elisabeth Roudinesco)

            Uma das características do pensamento autoritário é a negação da alteridade. O sujeito autoritário não compreende e rejeita as idéias com as quais não concorda. Pior do que isso: reage com agressividade sempre que suas convicções, ou mesmo sua visão de mundo, são submetidas à crítica. Por estar fundamentado em argumentos pouco sofisticados, o autoritarismo demoniza e ataca aqueles que pensam de maneira diferente. O debate, diante desse quadro, passa a ser visto como uma ameaça.
            Curioso notar que, nos regimes autoritários, sempre que se tentou elaborar teorias capazes de justificar as práticas autoritárias empregadas, se optou por abandonar elaborações mais sofisticadas, tais como as de Schmitt e Heidegger, em favor de formulações grosseiras cunhadas a partir do senso comum. Como se sabe, os argumentos grosseiros se impõem porque há uma relação inversa entre o grau de irracionalidade e brutalidade dos atos e o nível de elaboração do discurso que procura legitimá-los, e também porque visões complexas dificultam as demandas publicitárias.
            Atualmente, tornou-se comum o recurso ao Estado como forma de negar a alteridade e inviabilizar o debate. O Judiciário, nesse particular, assume papel fundamental.
             Em importante artigo de Thierry Savatier, alerta-se para os danos que o recurso ao Judiciário, como forma de impedir que o pensamento diverso apareça, pode causar não só à pesquisa historiográfica como também ao desenvolvimento da sociedade. Como percebeu Lucia Valladares, responsável pela tradução do texto para o português, Savatier analisa com acuidade o processo por difamação movido por Judith Miller e que levou à condenação de Elisabeth Roudinesco e da editora Seuil, certo que “ao apontar os elementos em jogo nesse lamentável processo, ele faz uma bela defesa da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que mostra a proximidade de ações dessa natureza  com as práticas sectárias de organizações totalitárias, onde o chefe manda e os súditos obedecem”.
            Aproveito para agradecer a Lucia Valladares e Marco Antônio Coutinho Jorge por terem viabilizado a autorização para esta publicação.   
            Boa leitura!
           
Leis memoriais, difamação: a insegurança jurídica dos historiadores (tradução livre de Lucia Valladares).
Thierry Savatier        

           
           Nos dias de hoje, não é muito bom exercer a profissão de historiador. A adoção pela Assembleia Nacional [na França], em 22 de dezembro p.p., da proposição de lei “visando reprimir a contestação da existência de genocídios reconhecidos pela lei”, caso seja aprovada pelo Senado e promulgada como as leis memorias que a precederam, enquadrará, e até mesmo dificultará os trabalhos de pesquisa de pesquisadores de boa fé. Estes, de fato, poderão ser acusados, não de negar, mas simplesmente de “minimizar de forma ultrajante” os genocídios já reconhecidos e os que no futuro assim o serão. Essa terminologia voluntariamente difusa, da qual a lei se serve geralmente com a finalidade não confessa de deixar aos grupos de pressão uma grande margem para constituir-se em parte civil, se assemelha a uma espada de Dâmocles que intimidará muitos universitários. Porque a ameaça que pesa sobre as pesquisas não é da ordem do fantasma; em 2005, um historiador incontestavelmente sério, Olivier Pétré-Grenouilleau, foi o primeiro a pagar o preço. Uma associação memorial que o havia acusado de violar as disposições da lei Taubira [lei memorial francesa de 2001 que reconhece o trafico negreiro e a escravidão como crime contra a humanidade. N.t.] após a publicação de seu ensaio sobre o tráfico negreiro, não retirou sua queixa mesmo diante da legitima indignação que tal ato despertou no mundo acadêmico. Como assinalou o jurista Denis Touret, “a controvérsia revelou como é instável o campo enfrentado pela logica da história, envolta na procura de uma objetividade científica sobre o passado, e na das memórias das comunidades mortificadas, que buscam em suas heranças subsídios para reivindicar identidades vitimarias.”
            No outro campo, o da difamação, o panorama também não é melhor. A condenação em primeira instancia, no ultimo 11 de janeiro, de Elisabeth Roudinesco pela 17ª Câmara do Tribunal de Grande Instancia (TGI) de Paris fornece o exemplo do confronto inevitável entre os pesquisadores e os herdeiros quando estes se mostram melindrosos da mesma maneira que os guardiães do templo. Eis os fatos: em seu interessante ensaio, Lacan a despeito de tudo e de todos [Rio de Janeiro: Zahar, 2011], a historiadora havia escrito (p.175) [do livro em francês], a seguinte frase: “embora tenha emitido o desejo de terminar seus dias na Itália, em Roma ou Veneza, e desejado funerais católicos, foi enterrado em uma cerimonia intima no cemitério de Guitrancourt”. Ora Judith Miller, filha de Jacques Lacan e de Sylvia Bataille, que confessa não ter lido o livro, mas ter tomado conhecimento dessa frase por telefone, se sentiu diretamente visada, embora seu nome não tenha sido citado. Um direito de resposta através da imprensa teria sido suficiente para tornar público o seu ponto de vista – por sinal uma prática usual.
             Ela preferiu optar pelo Tribunal de Justiça, como a lei lhe permite, argumentando que Elisabeth Roudinesco sugeria em sua obra que ela (e apenas ela, a despeito do fato de que na morte de Lacan, Sylvia Bataille, seu meio-irmão Thibaut e sua meia-irmã Sibylle estavam presentes) não teria respeitado as ultimas vontades de seu pai. Essa interpretação é totalmente respeitável, ainda que significativa de uma abordagem particularmente processual e de um ponto de vista muito direcionado; contudo, essa mesma interpretação parece involuntariamente confirmar, ao menos em parte, outra proposição sobre os funerais do psicanalista – esta, porém, totalmente explícita – sustentada por Sibylle Lacan, autora de um emocionante relato, Um pai (Gallimard, Folio, 120 p. 4, 10 Euros) [Um Pai: puzzle. R.J., Bertrand Brasil,1996, 106 p.]; “O enterro de meu pai foi duplamente sinistro. Aproveitando meu estado de choque [...] Judith tomou sozinha a decisão do enterro “na intimidade” desse enterro-sequestro anunciado na imprensa après coup [...] Começava a apropriação post-mortem de Lacan nosso pai.” [tradução livre]. Ao escolher ocupar o lugar de vitima, Judith Miller, corria um risco, o de se ver confrontada ao texto de sua meia-irmã, o que corresponde mais ou menos a “se dar um tiro no pé”. Mas, curiosamente e para sua sorte, ainda que em diversas ocasiões o livro de Sibylle Lacan tenha sido citado pela defesa, o Tribunal, contra qualquer lógica, não reteve esse argumento. Presente na sala de audiências no dia da audiencia, Sibylle Lacan, particularmente emocionada, tentou se expressar, mas, por não ter sido arrolada como testemunha, não pôde intervir.
            Condenar dessa maneira uma historiadora, cujos trabalhos são de reconhecida notoriedade, por difamação, sobre a interpretação única de uma frase de quatro linhas (em uma obra de 176 paginas) e na qual o nome da parte que se sente difamada sequer é citado, pode de bom grado alertar os outros historiadores para o risco que correm em termos de liberdade de expressão.  Eis porque o julgamento da 17ª Câmara do Tribunal de Grande Instancia (TGI) Paris merece nossa atenção. É verdade que a lei de 29 de julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa se mostra particularmente vigilante, até mesmo extensiva, na sua definição de difamação. Seu artigo 29 diz: “Qualquer alegação ou imputação de um fato que compromete a honra ou a reputação da pessoa ou organismo ao qual é atribuído o ato é uma difamação. A publicação direta ou através de reprodução da alegação ou dessa imputação é punível, mesmo se ela é feita de forma dubitativa ou se ela visa uma pessoa ou organismo não expressamente nomeado, mas cuja identificação é possível pelos termos dos discursos, gritos, ameaças, escritos ou impressos, cartazes ou pôsteres incriminados. [...]”.
            Os juízes, portanto adotaram a mesma interpretação da frase litigiosa que a demandante ao considerar que a identificação da pessoa visada havia sido “possível pelos termos do discurso”, o que, no entanto não é tão evidente assim, posto que Judith Miller não era o único membro da família do defunto no momento dos obséquios, alias, da mesma forma que continua não sendo. Sem dúvida, consciente da fragilidade desse argumento, os juízes em seguida se apoiaram em um documento, uma “carta de apoio” endereçada em 12 de setembro de 2011 à demandante pelos membros da redação da revista Le Diable probablement, acompanhada de 1398 assinaturas, na qual os cossignatários manifestavam sua “indignação” em relação à frase incriminada. Independentemente da qualidade desses consignatários, isso parece um pouco limitado, sobretudo na medida em que nem estes, nem Judith Miller, tampouco o Tribunal a priori consideraram o livro no seu conjunto limitando o seu julgamento apenas ao fragmento litigioso. Mais ainda, cabe notar que o TGI parece não ter levado em conta a recepção da obra (em particular pela imprensa), como é frequentemente no caso de julgamento contra um livro, e que esta, assinada por autores renomados, foi majoritariamente favorável.
            Mais surpreendente ainda, os juízes do Tribunal não reconheceram o beneficio da boa fé, ao motivar sua decisão de maneira singularmente dura: “Ao se expressar da maneira como o fez, sem dispor de nenhum elemento serio vindo apoiar seus propósitos, tal qual está formulado na frase litigiosa, Elisabeth Roudinesco, profissional da escrita, autora de diversas obras sobre a vida e obra de Jacques Lacan, igualmente faltou com a prudência e o rigor na expressão e não poderia ser mais creditada legitimidade ao objetivo perseguido, que é apreciado, não em termos da obra litigiosa na sua totalidade, mas em relação aos propósitos perseguidos, que não eram de forma alguma legítimos, neste caso, levar ao conhecimento do publico na expressão, tão lapidar quanto carregada de significado, que é a dela e sem nenhum elemento que justifique tal formulação.”
            O propósito surpreende mais ainda porque a acusada havia reunido diversos textos e testemunhos que, não podendo ser interpretados como elementos de prova irrefutável pelo Tribunal, não deixavam, contudo, de constituir uma gama de argumentos em seu favor. Mas os juízes não levaram em conta a sua relevância da mesma forma que não levaram em conta a citação de Sibylle Lacan reproduzida acima...
E uma pena que o conceito de opinião dissidente – texto através do qual um juiz manifesta seu desacordo em relação à decisão dos outros membros da sua jurisdição – não exista no direito francês; poderíamos ter uma dimensão do debate sem duvida ocorrido quando da deliberação. Porque essa decisão do TGI de Paris surpreende o leitor. Se ele condena sem ambiguidade a autora do livro e seu editor, ele na realidade rejeita a seguinte demanda de inserção na obra de Judith Miller: “Mme Elisabeth Roudinesco, M. Olivier Bétourné e as Editions du Seuil foram condenados por difamação publica contra Mme Judith Miller nos termos do paragrafo da página 175, onde alega-se que a vontade ultima de Jacques Lacan para os seus obséquios não teria sido respeitada.” Que o Tribunal tenha julgado irrealizável, materialmente, tal inserção nos exemplares atualmente dispersados pelas livrarias é possível conceber; mas que em contrapartida, não tenha decidido que esse texto devesse figurar na edições e reedições eventuais semeia a confusão. Uma confusão ainda mais legitima quando se percebe que em sua intimação a demandante havia omitido a solicitação de retirada da frase incriminada nas futuras impressões!
            Aqui há manifestadamente contraste entre a severidade dos motivos que levou à condenação, a ausência de obrigação de publicação do encarte e a não demanda de retirada do fragmento incriminado. Esse julgamento deixa, portanto uma impressão curiosa, ilógica, até mesmo grotesca. Quão grotesca é a importância atribuída a essa frase, onde alias está em questão, posto que cada palavra tem a sua importância, o verbo “souhaiter (desejar) (“desejar para si”, nos diz Littré) e não o “vouloir” (querer) (“ter vontade disso”, de acordo com a mesma fonte) cujo sentido, mais forte, se encontra na expressão “últimas vontades”. Quão é grotesco o fato de ter afastado a ideia do paradoxo em um que não tinha religião, mas que atribuía importância ao ritual. Quão é grotesco a linchagem midiática da qual a autora de Lacan a despeito de tudo e de todos foi vitima (difamação, contestação de seus diplomas, acusação de plágio, etc.) desde que a intimação foi publicada no site La Règle du jeu. A rubrica “discussão” da página Wikipédia que lhe é destinada ainda porta os estigmas. Esse método detestável lembra singularmente as práticas que outrora vigoraram nos Estados totalitários, cujo objetivo era descreditar os oponentes, os que incomodam. Quão é grotesco e inabitual enfim a publicação da intimação na revista dirigida por Bernard-Henri Lévy de 16 de setembro de 2011, ou seja antes mesmo que esta tenha sido entregue aos réus.
          Contrariamente ao que a impressa amplamente indicou, nem Elisabeth Roudinesco, nem seu editor, até o momento recorreram da decisão de 11 de janeiro. Do ponto de vista jurídico, levando em conta, o que foi mencionado, eles teriam interesse nisso. E, com eles, a comunidade de historiadores que, hoje em dia, nesse mundo cada vez mais judicializado, se pergunta se suas obras, no futuro, serão submetidas ao nihil obstat das famílias e imprimatur dos herdeiros antes da publicação, como outrora eles deviam submetê-las aos censores episcopais, evitando ser entregues ao açougueiro judiciário e midiático.


Publicado originalmente em: http://savatier.blog.lemonde.fr/

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Arrogância de Classe: um texto de Miguel Baldez



          Para o pensamento crítico do Rio de Janeiro, o nome de Miguel Baldez é uma referência. Procurador do Estado, fundador do Núcleo de Terras da Procuradoria, professor universitário, advogado do MST e militante dos direitos humanos, esse jovem de formação marxista, que completou mais de oito décadas de uma vida intensa, se faz presente nas mais variadas lutas, sempre ao lado dos oprimidos pelo sistema capitalista.
          Vale conferir seu novo texto...  


Arrogância de Classe
Miguel Lanzellotti Baldez
                Arrogância sim, de cunho cruel e intolerância reacionária, eu diria até racista, manifestada por festejado intelectual do ramo das matemáticas no jornal O Globo do dia 10 de janeiro. Pois sem preocupar-se com sua própria história, de merecido reconhecimento como homem de números e contas, meteu-se ele a criticar e desqualificar o programa de regularização da comunidade do Horto Florestal, esbanjando equívocos quanto à formação da comunidade, erros graves no campo do direito e, ainda, lamentavelmente, com inadmissível desprezo pela ética.
                Não fosse ele o homem respeitável e de fina imagem que é, bastaria como resposta um simples e banal desaforo: vá cuidar da sua vida, professor, ou o vulgar – vá procurar sua turma, cara. Mas, tratando-se de respeitável intelectual, cientista de peso no campo das ciências exatas, algumas ponderações Sua Senhoria merece ouvi-las, consultar-se lá com seus botões e – quem sabe? – assumir o mal feito e desmentir-se publicamente. Seria um gesto de grandeza moral que O Globo não publicaria...
                Mas ouça ele as necessárias ponderações. Antes, algumas preliminares: por que o ilustre e inesperado articulista não se manifestou contra a instalação do Espaço Tom Jobim no Jardim Botânico, bem como contra a depredação que o uso da área e seu emporcalhamento com garrafas e restos de comida largados pelos refinados freqüentadores de shows e aculturados programas? Nenhum protesto, repita-se. Por quê?
                Outra preliminar. Há tempos, segundo se diz entre os moradores, houve uma queimada lá no Horto Florestal para acomodação do Instituto Superior de Matemática, de inquestionável importância para pesquisadores e formação científica dos jovens brasileiros. Tudo bem, mas quanto à sobrante terra inaproveitada, aberta e vazia a espalhar-se por este nosso Rio de Janeiro... Precisava ser no Horto?
                O artigo veiculado pelo O Globo não passa, portanto, de mera arrogância de classe, e que se inscreve na torpe campanha que o dito jornal tenta retomar, usando, sem pudor, um distinto e culto senhor, distraído ou desavisado, cuja leitura alienada da realidade não lhe permite perceber o povo, seus interesses, suas necessidades e seus direitos na história do Horto.
                Resolveu, então, o inconformado e desinformado professor, sem perceber o triste papel que representava, criticar a União por ter optado pela demarcação da área e consolidação das moradias compatíveis com o projeto. Trata-se de ato administrativo e típico do poder discricionário que, nos termos da Constituição Federal, somente a ela cabe. É tolice supor que o nome da UERJ vem sendo usado indevidamente. Inspirou-se ele na própria prática, a auto-suficiência de uma classe que se considera dona e senhora do universo, autorizada em si e por si mesma a afirmar qualquer bobagem.
                A intervenção da UFRJ pelo Instituto de Arquitetura da Universidade Federal de Arquitetura, representada por um de seus mais qualificados professores – fiquem certos tanto o que escreveu como os parvos e contumazes detratores que o estimularam – é fruto de legítima e legal parceria com o Serviço de Patrimônio da União, obedecidas todas as normas administrativas aplicáveis à complexidade do fato.
                Enfim, o processo de regularização das comunidades do Horto Florestal está entrando em sua fase final, depois de ultrapassadas algumas dificuldades e etapas técnicas, com absoluto respeito ao meio ambiente, às efetivas necessidades do Jardim Botânico e rigor no trato jurídico da ordem constitucional.
                Aceite, pois, senhor articulista, em respeito de sua história e sem o rancor de sua envelhecida classe, estas singelas e éticas ponderações.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Internação para tratamento da drogadição

Em tempos pós-modernos, no qual o "ideal de pureza/limpeza faz do 'estranho' um elemento a ser excluído/escondido" (Bauman), vale ficar atento para a maneira como o Poder Judiciário se posiciona diante da questão da internação compulsória de pessoas apontadas como dependentes de drogas ilícitas. Nesse sentido,  recomenda-se a leitura de importante decisão do magistrado paulista Roberto Luiz Corcioli Filho, publicada em seu blog (http://www.justicaemais.blogspot.com/).

Justiça e Mais: Internação para tratamento da drogadição: CONCLUSÃO Em 19 de janeiro de 2012, faço estes autos conclusos ao MM. Juiz da vara em epígrafe. O(a) esc. Vistos. Hélio Schwartsman, em ...

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

JUÍZES E SEGURANÇA PÚBLICA: uma pesquisa e um mito.



De todos os mitos que interagem no universo processual penal, há um sempre presente em regimes autoritários que se apresentam travestidos de Estados de Direito: o de que o processo penal é um instrumento de segurança pública/pacificação social. Esse mito faz com que o processo penal passe a ser visto como mero meio de atingir indivíduos que violam a norma penal e, em conseqüência, os atores jurídicos (juízes, promotores, defensores, advogados, etc.) atuem preocupados com critérios de eficiência tão ao gosto de visões economicistas, isto é, passem a acreditar que as formas (meios) processuais só se justificam e devem ser respeitadas se necessárias à eficiência punitiva.
Tem-se, então, uma visão de mundo que compreende o processo penal como mero instrumento de repressão e controle social, enquanto o juiz criminal passa a figurar como órgão de segurança pública ao lado das instituições policiais e do Ministério Público. Há, também, uma tendência à administrativização do juízo criminal, que passa a atuar de maneira parcial no combate aos “criminosos” (o juiz como “inimigo” do criminoso). Ao mesmo tempo, essa perspectiva gera uma epistemologia autoritária, avessa a imposição de limites ao poder de punir, bem como o enfraquecimento das garantias processuais, que passam a ser vistas como entrave à eficiência repressiva.
Entretanto, a crença na utilidade do processo penal na pacificação social não encontra suporte em pesquisas empíricas acerca dos efeitos da persecução penal no acusado/punido e na coletividade. Registre-se que, no Brasil, poucas são as pesquisas sobre o tema e, por vezes, duvidosa a metodologia aplicada. Das pesquisas empíricas que focaram nos efeitos produzidos àqueles que figuraram como réus no processo penal e foram condenados, pode-se, em regra, afirmar que “é de se supor, no melhor dos casos, um não efeito e, no pior dor dos casos, um efeito contraprodutivo”.[1] De igual sorte, dados empíricos também permitem concluir que a ameaça do processo penal, ou melhor, o risco de descobrimento da autoria do crime e de persecução “pouco influencia a disposição para o comportamento delituoso”.[2]
Tanto pela ausência de pesquisas sobre o tema no Brasil quanto pelos resultados alcançados no exterior[3], percebe-se que não há qualquer comprovação de que tanto o direito penal quanto o processo penal sejam capazes de atender ao ideal de pacificação social. Ademais, mesmo que se confirmasse a utilidade do processo penal à chamada “segurança pública”, ter-se-ia que indagar se, ao menos no Estado Democrático de Direito, o fim visado justificaria o afastamento dos diretos e garantias previstos na Constituição Federal.
Aliás, em relação à realidade do sistema penal, com Vera Andrade, pode-se afirmar que enquanto suas funções declaradas ou promessas (ressocialização dos condenados, intimidação dos infratores potenciais, etc.) “apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema) porque não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, latentemente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos indivíduos e da sociedade, e contribuem para reproduzir as relações desiguais de propriedade e poder”[4].
A crença na pacificação social através da atividade dos magistrados encontra-se em consonância com um discurso que insiste em sustentar que o sistema penal existe para a defesa de bens jurídicos considerados indispensáveis à vida em sociedade. Porém, a funcionalidade real do sistema penal revela (e sempre revelou) uma estratégia de controle social seletiva, direcionada à manutenção do status quo, do modelo de produção capitalista e da sociedade de consumo.
O mito de que o processo penal é um instrumento de pacificação social enuncia uma finalidade inalcançável, poder-se-ia dizer lacanianamente que se trata de um enunciado do impossível,[5] com o objetivo de produzir o efeito de tornar razoável, através da fabricação de um consenso na comunidade, o afastamento das inviolabilidades previstas na Constituição Federal.
Recorre-se, para tanto, a conceitos abertos e indeterminados (como, v.g., “razões de Estado”, “personalidade voltada para o crime”, “credibilidade do Poder Judiciário”, etc.), prenhes de crenças indemonstráveis empiricamente, aptos a justificar o afastamento das formas processuais, que, então, deixam de ser preservadas como garantias[6] para se tornarem óbices à realização dos fins perseguidos. 
Em pesquisa[7] realizada através de questionário apresentado a todos os juízes criminais em atuação no mês de maio de 2011 no fórum central da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, foi possível observar indícios de que os magistrados fluminenses, em sua maioria, acreditam atuar como agentes garantidores da segurança pública. Na ocasião, foram apresentadas três questões objetivas e fechadas (1ª – Nas decisões criminais leva-se em conta a questão da segurança pública? 2ª – As decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade? 3ª O bem jurídico “segurança pública” é levado em consideração no momento da fixação da pena?). Não obstante a proposta de que as respostas fossem escolhidas dentre duas opções predefinidas (sim ou não), alguns sujeitos pesquisados fizeram questão de fundamentar suas posições por escrito, mesmo diante da informação de que os respectivos nomes não seriam divulgados.
Dos vinte e sete juízes criminais em atuação na Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro durante o mês de maio de 2011, dois não quiseram responder ao questionário. Assim, do universo de vinte e cinco sujeitos pesquisados que apresentaram respostas ao questionário, vinte e um responderam “sim” à primeira questão (ou seja, que levam em consideração a “segurança pública” ao decidirem casos criminais) e quatro responderam que não. Um dos magistrados entrevistados, embora tenha respondido “não” à questão, apresentou justificativa por escrito, na qual constou que “nas decisões relativas às medidas cautelares” a segurança pública “pode ser levada em conta, mormente quando envolvem organizações criminosas estruturadas”.
No que tange à segunda questão, dezesseis juízes responderam que “sim”, manifestando a crença de que as decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade, enquanto seis responderam que “não” e três afirmaram não poder responder a essa pergunta.  Frise-se que dos seis magistrados que responderam “não” à questão, alguns espontaneamente apresentaram considerações por escrito. Um desses magistrados afirmou que “Infelizmente, não, em função de uma legislação penal e processual penal benevolente”, certo de que a “exigência do trânsito em julgado e a infinidade de recursos existentes, postergando sempre a execução da pena carcerária, além do descrédito que trazem para a Justiça, não produzem os efeitos desejados na redução da criminalidade”. Outro juiz criminal externou a opinião de que as decisões não produzem efeitos “por causa do sistema e não da decisão”, enquanto um terceiro magistrado deixou explicitado que “no Rio de Janeiro, não”.
Ainda sobre a segunda questão, um dos magistrados pesquisados respondeu “sim”, mas fez questão de complementar: “se só tivermos juízes rigorosos, a criminalidade vai reduzir em curto prazo”. Curioso notar que dos vinte juízes que responderam “sim” à primeira questão, treze também responderam “sim” à segunda, enquanto quatro deles responderam que “não” e três optaram por não responder.         
Por fim, doze juízes responderam “sim” à terceira questão, admitindo levar em consideração o bem jurídico “segurança pública” também no momento da fixação da pena. Dos treze que responderam em sentido negativo, um se manifestou em dúvida (certo que, por escrito, deixou consignado: “mais para não”). Outro juiz, também por escrito, externou que “de forma mediata sim, imediata não”, porque a segurança pública não está prevista no artigo 59 do Código Penal. Vale mencionar que um dos magistrados que respondeu “sim” à terceira questão acrescentou que nas hipóteses em que o sentenciado “integra organizações criminosas, ou, ainda que não as integre, demonstra um perfil violento, que põe em risco a coletividade, o juiz pode e deve considerar aquele bem” (sic), enquanto outro afirmou que levar em consideração a “segurança pública” no momento de fixar a pena era “forma de dar exemplo”.     
Como se pode perceber, a pesquisa de campo, na qual a crença no processo penal como instrumento de pacificação social/segurança pública foi abordada em seu ambiente próprio, com todas as limitações inerentes à metodologia e à técnica empregada, apontou para a subsistência desse mito, capaz de produzir efeitos de verdade, no imaginário dos atores jurídicos responsáveis pela solução/acomodação dos casos penais.  
Para desconstruir esse mito, deve-se levar a sério o sistema penal, sem, contudo, cair na tentação ingênua de procurar (re)legitimá-lo. O sistema penal não é[8], nem nunca vai ser, um instrumento democrático ou de respeito à alteridade. Isso porque é impossível desassociar o sistema penal de sua marca excludente: a seletividade. Porém, na tentativa de reduzir os danos de seu funcionamento concreto, deve-se considerar a Constituição Federal como a estrutura legal que funda o Estado Democrático, em especial por conter as diretrizes necessárias tanto à contenção do poder quanto à articulação que deve existir entre a política, os direitos e garantias individuais, o poder de punir e a atividade das agências estatais envolvidas na persecução penal.
Dentre o instrumental estatal, o direito “se apresenta como o instrumento menos arbitrário, e o que apresenta maiores garantias frente aos abusos do poder”.[9] Nessa ótica, o Processo Penal surge (e só se justifica) como limite ao poder estatal, ao poder punitivo, como contrapoder jurídico, na redução do arbítrio e na racionalização das respostas estatais aos desvios criminalizados.

  


[1] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 86. 
[2] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 87. 
[3] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; ALBRECHT, Hans-Jörg. Legalbewährung bei zu Geldstrafe und Freiheitsstrafe Verurteilten. Max-Planck-Institut, Freiburg, 1982; EGG, Rudolf. Sozialtherapie im Justizvollzug. Entwicklung und aktuelle Situation einer Sonderform der Straftäterbehandlung in Deutschland. In Giutérrez-Lobos, Katschnig, H.& Pilgram, A. (Orgs.). Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft; Jahrbuch für Rechts- und Kriminalsoziologie, 2002, 119-135; dentre outras.
[4] ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema penal e cidadania no campo: a construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In:  Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre:2003, p.132-133.
[5] Como explicitou Salo de Carvalho: “Ao traçar caminhos para atingir verdades não passíveis de experimento e ao potencializar valores morais absolutos que não se concretizam, a ciência esquece as urgências da vida, motivo pelo qual qualquer otimismo com as potencialidades da razão seria ilusão, profissão de fé” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 58). 
[6] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais : elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Tradução de Ângela Nogueira Pessoa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[7] A pesquisa foi realizada, ao longo do mês de maio de 2011, através da técnica de questionário com questões fechadas. Uma análise mais aprofundada dos dados obtidos pode ser encontrada em “CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal: do imaginário autoritário brasileiro à atuação dos atores jurídicos. Rio de Janeiro, mimeo, 2011).
[8] RUCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto.  Punição e Estrutura Social. Trad. de Gislene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004 . 
[9] BINDER, Alberto M. Política criminal: de la formulación a la práxis. Buenos Aires: Ad-hoc, 1997, p. 53.

sábado, 14 de janeiro de 2012

UM TEXTO DE GERALDO PRADO (ou EXISTE PREFÁCIO PARA UM BLOG?)

   
      


           Por ocasião da obra "Em torno da jurisdição" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011), da lavra do jurista Geraldo Prado, deixei consignado que considerava difícil escrever um prefácio. Isso porque se trata de um discurso introdutório, um pré-texto que possui uma única e clara vocação: passar despercebido à maioria dos leitores. Escrevi também que os prefácios são funcionais à obra literária da mesma forma que a entrada serve ao prato principal da refeição, ou seja, destina-se a ser uma passagem, não necessária, ao deleite produzido pela leitura.[1][1] Quem se propõe a escrever um prefácio, deve saber disso: o prefácio não pode saturar o leitor. Por sorte, os prefácios têm um valor de realização autônomo e, por essa razão, não interferem no sucesso do texto subseqüente e, apesar do meu prefácio, o livro do Geraldo foi um sucesso.
             Naquele texto, citando Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, concordei que um prefácio é sempre “metade razão, metade coração”[2][2], e diz tanto do prefaciador quanto da obra prefaciada. Há, ao prefaciar, o necessário reconhecimento da presença do outro (o outro que é o autor do texto principal, o outro que será o leitor da obra e o outro, o não-leitor, o excluído da leitura, mas que pode figurar como o principal beneficiado das lições do autor[3][3])

          Após postar o lançamento deste espaço, fui surpreendido ao ler a atualização do Blog editado por Geraldo Prado ( http://geraldoprado.blogspot.com/ ).   Ali estava um texto que unia razão e coração. Para além dos exageros, frutos da amizade que nos une, Geraldo produziu um texto que diz tanto do meu Blog quanto de mim.  A partir da sugestão do Prof. Leonardo Schmitt de Bem, resolvi "adotar" aquele post como uma espécie de prefácio deste Blog.
          Valeu, Geraldo. Agradeço esse "prefácio involuntário" para o blog e, sobretudo, o fato de estarmos juntos em tantas lutas e em tantas caminhadas (para não falar das partidas de futebol).
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[1] Com sorte, a entrada (primeiro prato) serve para facilitar a digestão dos próximos pratos ou estimular o apetite.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Nota do autor. In Temas de direito penal e processo penal (por prefácios selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. ix
[3] Basta pensar nas pessoas beneficiadas com as lições de Marx que nunca leram os vários livros que compõe Das Kapital.

Geraldo Prado: Não passarão! Blog de Rubens Casara: Não passarão! Ganha vida o blog de Rubens Casara. Não se trata de mais um lugar de resistência e crítica, apenas, o que por si só justifica...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

APRESENTAÇÃO...

            Este blog se inspira no grito antifascista "não passarão!" («¡No pasarán!») e pretende servir como um espaço de diálogo e resistência ao processo de fascistização da sociedade brasileira. Na atual quadra histórica, em que é possível identificar várias características do fascismo clássico na sociedade brasileira (parece evidente que existem fascismos para além do fenômeno italiano), vale lembrar das palavras eternizadas por Dolores Ibárruri Gómez (La Pasionaria), durante a Guerra Civil Espanhola, com o objetivo de expressar a determinação de defender uma posição contra o inimigo que se aproximava.



            O lema antifascista também foi utilizado na Revolução Sandinista na qual ruas foram bloqueadas pela população em defesa dos revolucionários, e, desde então, ressurge sempre que um movimento autoritário apareça como ameaça.

            Hoje, mostra-se cada vez mais crível a hipótese de que as crises do capitalismo fazem  nascer  movimentos fascistas. Na linha desenvolvida tanto por Leandro Konder (KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 53) quanto por Robert Owen Paxton (PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. Trad. Patrícia e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 43) pode-se afirmar que as forças capitalistas, incapazes de assegurar a expansão contínua dos mercados, o amplo acesso à matéria-prima e à mão barata (e obediente), o controle sobre as populações indesejadas (leia-se: daqueles que não interessam à sociedade de consumo) e os movimentos reivindicatórios por meio de operações adequadas ao modelo democrático, viram-se obrigadas a encontrar novas maneiras de alcançar esses objetivos pela força, ou seja, o projeto capitalista, não raro, tem que assumir a forma de um movimento fascista.
             No fascismo, o Estado apresenta-se como superior a todos os indivíduos. Estes, portanto, ficam subordinados às razões estatais e a um poder praticamente sem limites. Há uma tentativa de edificação de um Estado total, isto é, um Estado que se sobreponha ao indivíduo a ponto de anulá-lo. Não por acaso, a intolerância torna-se uma constante, o que leva à repressão da diferença. Nega-se, portanto, a alteridade e acentua-se a criação e a preocupação com os inimigos do Estado, com aqueles que criticam ou não acatam as razões do Estado.  Note-se que as tentativas de solucionar os problemas de saúde pública (como as questões das drogas etiquetadas de ilícitas e do aborto) e de controlar reivindicações populares (basta pensar no fenômeno da criminalização dos movimentos sociais) através do sistema penal são manifestações desse Estatismo que se vinculam ao ideário fascista.
            Outra característica marcante é o fato do fascismo se apresentar como um fenômeno racional ou mesmo natural. O fascismo e as práticas fascistas aparecem para os seus adeptos como conseqüências necessárias do Estado, dessa relação entre homens que dominam outros homens através do recurso à violência que se apresenta como legítima. Assim, como toda forma de ideologia, o fascismo não é percebido como tal por seus agentes: tem-se, então, a naturalização de práticas fascistas, mesmo em ambientes formalmente democráticos. 
            Também é reconhecida como característica dos movimentos fascistas o seu pronunciado ativismo, com o recurso à força como meio preferencial à solução dos diversos problemas sociais. Por evidente, os freqüentes excessos gerados por esse ativismo passam a exigir uma ampla cumplicidade entre os membros do establishment: magistrados, promotores de justiça, policiais, militares, jornalistas, homens de negócio e etc.
            Os vários fascismos também sempre tiveram a necessidade de um inimigo demonizado contra o qual utilizar a força, ou melhor, em razão do qual a utilização da força estaria legitimada. Esse inimigo é o "estranho".  Na pós-modernidade, o estranho a ser demonizado (e, portanto, objeto em potencial do sistema penal e das práticas fascistas) é aquele que não está inserido funcionalmente na sociedade de consumo ou que se opõe ao status quo
            Hoje, vivenciam-se os efeitos de mais uma crise do capitalismo e, no Brasil, acentua-se um novo processo de fascistização da sociedade. Mulheres que dão a luz algemadas, toque de recolher em comunidades pobres, a gestão da miséria através do Exército, a prisão de lideranças dos movimentos sociais, os episódios de violência policial contra estudantes, as agressões a dependentes químicos, a arapongagem em universidades públicas, o aumento no número de Autos de Resistência (a polícia brasileira é a mais letal do mundo: a que mais mata e a que mais morre), o encarceramento em massa da população pobre,  a desqualificação dos defensores dos direitos humanos, os movimentos legislativos que defendem o recrudescimento do sistema penal, dentre outros fenômenos que se tornaram cotidianos, são sintomas de que o fascismo se faz presente. 
     Diante desse quadro, o lema é: não passarão! Conto com a colaboração de todos neste espaço.