segunda-feira, 26 de março de 2012

Antígona e as leis não escritas: um texto de Carla Francalanci


Antígona e as leis não escritas*

                                                                                                                                                                                                                                            Carla Francalanci[1]

     Antígona é uma tragédia grega, escrita no séc. V a.C., que diz respeito às leis da cidade e à base sobre a qual elas se fundamentam. Este será, assim, o assunto de nossa discussão. Para tentar pensar esta questão, é preciso antes explicar a pertinência deste percurso que escolhemos trilhar, esclarecendo o motivo de termos escolhido as indicações extraídas de uma obra da qual nos separam tantos séculos.
     Para começar, é preciso tornar claro sob que perspectiva a tragédia será encarada aqui. Não iremos aborda-la “esteticamente”, como fruto da “criatividade”, isto é, da “expressão subjetiva” do autor, nem como um “produto de cultura”, no caso, a grega de 26 séculos atrás. Tais compreensões usuais interpõem de saída uma distância, uma separação entre nós e o dizer da tragédia, que interdita o acesso ao que ela pode diretamente nos apontar. Assim procedendo, nos impedimos de ver em que a ação trágica pode nos concernir. Nossa proposta é proceder de modo oposto a este, encarando a Antígona de Sófocles no que ela dá a ver, no que ela traz de verdadeiro e necessário como pensamento sobre o homem e sua condição: a relação entre a dimensão humana da solidão e sua perene situação de convivência, situação esta que os gregos denominaram pólis, a “cidade”.
     Para auxiliar a compreender em que se funda este modo de interpretar a tragédia, que podemos chamar filosófico, iremos apresentar brevemente o testemunho de Aristóteles. Em sua obra intitulada Poética ele aborda em especial a poesia trágica. Partamos, assim, de sua definição:
     “É pois a tragédia a imitação de uma ação elevada, completa e de certa extensão (...) que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação destas emoções”[2].
     Em primeiro lugar, é preciso explicar porque aparece reforçado este âmbito da ação. Segundo Aristóteles, da mesma maneira como é uma ação a completude da vida, assim também as ações são a completude da tragédia. “Completude” traduz o termo grego télos, de onde provém o adjetivo téleia, empregado pelo filósofo. O termo télos também pode ser compreendido, traduzido por “finalidade”. Esta, contudo, não diz aqui respeito a uma ordem extrínseca à vida, e muito menos ao que compreendemos por utilidade: ela aborda, antes, aquilo que consuma e, assim, plenifica isso que vida e tragédia são. Vida, para ser, precisa acontecer, precisa pôr-se em obra. Vida é pois atividade, acontecimento que se dá no presente contínuo de sua efetivação: vida é verbo realizando-se: falando, andando, ouvindo, amando, fazendo, morrendo. O tempo próprio da vida é o gerúndio. A tragédia é, nesta perspectiva, a imitação da vida no que ela tem de mais central, no que a distingue: a ação.
     Aristóteles afirma que a tragédia descreve uma ação elevada e completa. “Elevado” compreende aqui o necessário, o agir que se afina à sua condição e à sua situação. A tragédia não descreve ações da “vontade” pura e simples de um qualquer particular, mas sim aquelas que são ditadas por uma ordem, um princípio: seja a família, o poder, a cidade, os deuses. “Completa”, por sua vez, concerne à ação que se leva ao cabo, que se consuma nisso que ela é, deixando aparecer sua proveniência, sua efetuação e os desdobramentos que daí advém. Devido a uma tal visão é que Aristóteles pode comparar a poesia trágica à história. Diz ele:
     “Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta diferem em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério que a história, pois aquela (poesia) diz respeito antes ao universal, e esta (história) ao particular”[3].
     Ao apresentar a ação desde a ótica da necessidade, o tragediógrafo ressalta a unidade intrínseca ao modo de ser da ação, o que freqüentemente se perde de vista na vida de todos os dias, devido às inúmeras ocorrências fortuitas, não necessárias, que nela intervém. É como se a tragédia nos apresentasse a vida em seu estado puro, livre de entraves, desdobrando-se cada ato, cada gesto plenamente em tudo o que ele abrange, apontando assim para sua origem, efetivação e conseqüências.
     O segundo momento da definição aristotélica diz respeito ao “terror e piedade” que a tragédia deve suscitar. A este respeito, Aristóteles explica: a piedade advém da compreensão de que os infortúnios ocorridos com as personagens são imerecidos, enquanto o terror provém de que tais personagens desafortunadas se mostram em tudo semelhantes a nós. O mal e o infortúnio não se configuram como “castigos” por uma maldade ou vilania intrínseca: antes, são a punição pelo erro, pelo desvio fortuito no percurso de vida de alguém que sequer suspeitava estar em erro, conforme veremos na Antígona. Esta situação mesma suscita a compreensão da nossa proximidade à questão central da tragédia: se vida é ação, esta é percurso, caminho, pôr-se em obra. Contudo, estes caminhos não estão prontos, nem dados de antemão: é preciso fazê-los, encontrá-los durante o caminhar, e a linha que separa percurso e descaminho é por demais tênue, geralmente só aparecendo como tal após havermos há muito enveredado por ela. Assim, o erro de cada personagem trágica sempre poderia ser o nosso: a tragédia deixa transparecer nossa própria condição, de ter que decidir nosso destino sem contar com nenhuma garantia ou segurança prévia. Neste sentido, ainda, é que se pode pensar em “purificação”, catarse. Pela visão e compreensão de nossa situação em outro ganhamos, a um só tempo, proximidade e distância para com ela. Aproximamo-nos de nós mesmos e do sentido de nossa vida como articulação de liberdade e destino, ao mesmo tempo em que somos capazes de experimentar, pela distância para com as personagens, esta articulação a partir da perspectiva do prazer e da beleza.

     Qual é, em linhas gerais, a ação que ocorre em Antígona? Antígona é filha de Édipo, que já havia falecido, passando aí a reinar o cunhado deste, tio de Antígona, Creonte. A peça inicia após uma batalha, na qual um exército inimigo, chefiado por Polinices, também filho de Édipo, tentara invadir a cidade, sendo barrado, entre outros, por Etéocles, igualmente irmão de Antígona. Em uma contenda, que dera a vitória aos tebanos, Etéocles e Polinices ter-se-iam matado mutuamente. Devido a estes fatos, Creonte baixaria uma lei, ordenando todas as honras fúnebres àquele que morreu pela cidade, enquanto o outro, traidor, deveria permanecer insepulto para ser comido pelos animais. A peça narra a resolução de Antígona em desobedecer às ordens do tio e sepultar seu irmão. Sendo descoberta, o tio a condena à morte, sepultando-a viva para que a cidade não se conspurque com sua morte, evitando assim o derramamento de sangue entre membros de uma mesma família.
     Tendo visto, com Aristóteles, que a tragédia descreve um erro, seríamos levados por um olhar apressado a considerar a desobediência à cidade o erro de Antígona, motivo de sua condenação à morte. Contudo, a própria peça jamais qualifica a ação de Antígona como erro, e sim, reiteradas vezes, como calamidade, infelicidade, desdita – palavras que traduzem toscamente o termo grego áte. Ao contrário, a palavra hamartía – erro – aparece seguidas vezes e com força cada vez maior acerca da posição de Creonte, até ser finalmente expressa pela boca desta mesma personagem. Com relação ao desenrolar do destino de ambas as personagens, vemos ainda um dado curioso: Antígona prefigura sua morte desde o instante que relata sua resolução, no início mesmo da peça, sendo sua trajetória segura e linear: sua ação de velar o morto, sua descoberta, sentença, punição e morte. De modo contrário aparece o percurso de Creonte: fazendo proclamar seu edito acerca do morto, sentencia sua sobrinha, noiva de seu filho, à morte a fim de manter sua resolução; repudia os arkhóntai, anciãos e conselheiros da pólis, personificados pelo Coro, quando estes sugerem que os deuses talvez queiram que o morto seja enterrado, e igualmente seu filho, quando este vem mostrar a injustiça de sua ação para com Antígona. A peça nos mostra Creonte crispando-se cada vez mais em sua posição, terminando por dizer que, se toda a cidade está contra ele, sua ordem deve valer, por ser o soberano: “Não é a cidade quem agora vai me ensinar a governar”[4], e “não pertence a cidade àquele que a governa?”. Somente após a sentença cumprida e com a entrada em cena do adivinho de Tebas, Tirésias, sua decisão acaba por fraquejar, ao profetizar aquele que em sua casa ocorrerão duas mortes, em retribuição àquelas que, de algum modo, causara. Temendo a profecia, Creonte tenta reverter seu erro, enterrando os restos do morto. Contudo, quando vai à tumba de Antígona para desenterra-la, descobre que esta já se havia matado e seu filho lá se encontra, pranteando sua noiva. O filho tenta mata-lo e, errando, suicida-se. A esposa de Creonte, ouvindo esta nova por parte de um mensageiro, igualmente se mata, amaldiçoando o causador de sua desgraça. Maldizendo seu erro, Creonte se retira da cidade, esperando que a morte se abata rapidamente sobre ele.
     Qual é, assim, o erro de Creonte? Em primeiro lugar, a tragédia deixa claro que sua lei ultrapassa o âmbito do que lhe diz respeito: estando o traidor Polinices já morto, é como se Creonte pretendesse novamente matá-lo, não permitindo que sua morte seja tratada como as outras. O que a peça diz, pela voz de Antígona e de Tirésias, é que a sorte dos mortos não pertence à deliberação da cidade: as leis que regem os mortos são divinas, e não humanas. Os mortos pertencem ao interior da terra, seu lugar é o Hades, que quer dizer propriamente “invisível”: sua situação própria deve ser a ocultação do olhar e da convivência dos homens. Ao punir Antígona, Creonte insiste e aprofunda o mesmo erro: depois de ter feito o morto compartilhar do âmbito dos vivos, pretende fazer o vivo – Antígona – partilhar o destino dos mortos. Embaralhando estes campos, Creonte perde de vista – e por isso se desencaminha, isto é, erra – o princípio que talvez seja mais caro aos gregos: a linha que demarca os domínios de deuses e homens, de imortais e mortais.
     A ação de Antígona fere a norma da cidade, mas é conforme à lei dos deuses; a de Creonte pode ser legitimada pela cidade, mas aparece em desacordo com a lei divina. Pela punição e assunção de seu erro, Creonte se re-encaminha a esta observância fundamental.
     É preciso perguntar: o que são as leis divinas? Para ajudar a esboçar esta resposta, sigamos uma indicação da peça. Quando perguntada sobre o porquê de sua desobediência à lei presentemente vigente na cidade, Antígona retruca não ter sido esta lei ditada por Zeus, nem tampouco aprovada por Dike, e que entre obedecer às leis da cidade ou às leis divinas, ela sempre escolheria estas, que não são as de agora, mas sim de ontem e de sempre. A palavra díke tem aqui o sentido de uma divindade, mas em seu sentido usual pode ser traduzida por isto que os gregos compreendem como “justiça”. Este substantivo provém de um verbo, deiknymi, que significa mostrar. Este mostrar, no entanto, não equivale ao mero apontar para algo; em primeiro lugar, ele trata de um mostrar pela palavra. Podemos talvez fazer a experiência do que díke e deiknymi querem dizer reproduzindo a situação de deliberação conforme se dava na Grécia antiga: os anciãos conselheiros da cidade, os arkhóntai, sentam-se formando um círculo no centro da assembléia, para ouvir a demanda. Do lado de fora do círculo, posicionam-se os demandantes, que se acusam e defendem. Na periferia, o povo, tomando partido ora de um, ora de outro. No centro do círculo dos conselheiros, duas moedas (talentos) de ouro. Ao final da fala dos demandantes, cada arkhonte diz uma sentença: sentença aqui não possui o caráter de aplicação da lei, ela antes diz respeito a uma enunciação que faz aparecer, que mostra a situação em causa nisso que ela é. Aquele que díke eipein, que disser a díke, leva as moedas e o seu pronunciamento se faz cumprir[5]. O importante aqui é ressaltar que a sentença não é justa porque dita por um juiz; não é a autoridade que presentifica a justiça, antes o contrário: o conselheiro é que é denominado justo, e igualmente sua fala, porque enuncia o que de fato é. Poder-se-ia perguntar: mas quem delibera sobre esta verdade? A resposta aqui é simples: todos e, ao mesmo tempo, ninguém. Não há esta necessidade de algo como uma “meta-deliberação”, pela compreensão de que o justo é, aqui, o verdadeiro, e este o que aclara maximamente, o que deixa ver a situação, para todos aqueles que estiverem afinados, acordados a ela. O justo é o que mostra o que é, o que deve ser visto, aclarado, posto à luz; por esta razão, é o verdadeiro, pois este não é nada diferente do que aparece e se mostra.
     A partir do exposto, é preciso compreender que as leis divinas não são algo da ordem do insondável nem do imponderável; elas não correspondem ao livre-arbítrio de uma Providência inescrutável. Os deuses gregos não são a pura liberdade, acima da necessidade representada pelas leis da natureza: eles são a própria natureza, desde que a compreendamos sem nenhuma conotação bucólica ou idílica, nem como a contrapartida ao campo do humano. “Natureza” aqui não diz mais do que a realidade em seu todo, considerada a partir dos poderes e limites que cada âmbito da realidade possui. O peso da pedra, a leveza da chama, a perene fluidez da água, o poder desvairante do amor, a força desocultadora da palavra, o poder soberano do cuidado, de velar para que cada coisa se mostre e consume como isso que ela é: isto é o que perfaz, basicamente, a experiência grega do divino.
     A experiência grega do real, expressa desde sua compreensão do divino, o apreende em seus limites inexoráveis, que não podem ser franqueados. Contrapondo-se a isto, está a solidão da liberdade humana, que deve auto-legislar-se, forjar as leis sob as quais irá viver e conviver. Contudo, é o que a tragédia aponta, estas leis precisam estar afinadas, isto é, a lei humana só pode verdadeiramente denominar-se justa, dikaia, quando feita em escuta e obediência às leis que não são nada além da própria realidade. Quando este limite do humano é ultrapassado, o que vemos como ira divina não pertence à ordem do milagre, isto é, do extra-natural, como nos relatos judaico-cristãos, mas sim à das catástrofes ditas “naturais”: em Antígona, os animais carregam partes do corpo destroçado de Polinices para o centro da cidade e para os próprios altares, deflagrando uma peste. O que se encontra aqui expresso é a realidade em suas múltiplas facetas: se a natureza pode mostrar-se benéfica e dadivosa para aqueles que a habitam articulando-se com ela, ela igualmente aparece como catastrófica, selvagem, inabitável quando seus limites não são respeitados.
     Mais uma vez, quero retomar o início desta fala para dizer que esta compreensão não deve ser tomada como peculiaridade, idiossincrasia da cultura grega. “Grego” exprime, antes, a exposição da própria condição humana, que não é setorial, mas sim universal e necessária. Se nossa experiência, ocidental e moderna, apreende a liberdade tomando como pano de fundo a subjetividade (e aqui é oportuno frisar que a noção de consenso, tão em voga ao pretender-se “explicar” o caráter social e político do humano, não é mais que a “soma” de diversas unidades subjetivas, permanecendo assim uma noção derivada da noção de sujeito), isto não pode ser pensado como o fundamento do humano, mas antes como o desvio no percurso histórico do homem que se foi paulatinamente distanciando do verdadeiro princípio de seu existir. A verdadeira ação humana é a de ver, isto é, de apreender a realidade em sua totalidade, e esta em seu caráter completo, perfeito. A partir desta visão, sua atividade consiste basicamente em imitar, em procurar transpor a perfeição percebida para o campo e competência dos assuntos e questões humanas. É em imitação, isto é, em obediência às possibilidades e limites que o real sempre e necessariamente aporta que as leis se impõem como necessidade ao homem.
     A relação entre o homem, a natureza e seu campo de convivência aparece ressaltada de maneira magistral pelo Coro de Antígona em um de seus cantos.
Muitas coisas espantosas, mas nenhuma surge mais espantosa que o homem! Ele que, ajudado pelo tempestuoso vento sul, chega ao outro extremo do espumante mar, atravessando-o, apesar das ondas que rugem descomunais; ele, que fatiga aquela que, entre os deuses, é mais eminente, a inesgotável Terra, com o vaivém do arado puxado por mulas e, ano após ano, a vai sulcando.
     Ele captura com armadilhas os inocentes pássaros e aprisiona os animais selvagens e, com as malhas das entrelaçadas redes, colhe os peixes que vivem no mar, o engenhoso homem; com habilidade, domina o selvagem animal montês, sabe subjugar o cavalo de abundantes crinas e o infatigável touro das serras.
A fala, os pensamentos rápidos como o vento e as leis que regulam a vida na cidade ele aprendeu, e como escapar das montanhas inóspitas e dos dardos pontudos da chuva e da neve, pleno de recursos; sem recursos para nada do que lhe traz o futuro; somente do Hades não encontrou meios de escapar, logrando fugir, contudo, das enfermidades inevitáveis.
     Sapiente além do esperado é o expediente que possui em suas artes e saberes, e ele os encaminha ora para o mal, ora para o bem. Quando respeita as leis da terra e a justiça que os deuses juraram observar alcança o cume da cidade; sem cidade é aquele que audaciosamente convive prazeiroso com o que não é belo; este não poderá sentar-se à minha mesa, pois quem assim procede não compartilha meus pensamentos[6].
     É importante ressaltar que o termo “surge”, que aparece no verso de abertura deste canto, é pélei, verbo a partir do qual se forma o substantivo pólis, a cidade. A cidade sempre foi considerara pelo grego não como um simples local de convivência, muito menos como um lugar determinado, mas sim como o solo, o fundo a partir do qual a realidade se dá, se mostra, aparece para o homem. O homem, contudo, se encontra evidenciado por este canto em seu caráter extraordinário, em primeiro lugar no que tange à capacidade de dominar a natureza. Ele caminha sobre o mar, doma as bestas selvagens, para tudo pleno de recursos (pantóporos): ausente de recursos (áporos) somente frente à morte, para a qual não encontrou saída. No próprio embate com a realidade, ao mesmo tempo em que esta lhe fornece múltiplas possibilidades de governo e domínio, ela igualmente apresenta ao homem seu limite extremo, infranqueável. Quando de acordo com estes limites ele age, posta-se no cume da cidade (hypsípolis); sem pátria nem cidade (ápolis), torna-se o homem quando não os observa.
     Conforme o Coro expressa ao final deste canto, o espantoso da condição humana é seu estar fundado na pólis, sendo, a um só tempo, este hupsípolis-ápolis; o ente que cria, administra e pode plenificar-se neste espaço de convivência, mas que, simultaneamente, permanece tendo sua ação fundada em seu contrário, no desamparo de ter que, a cada ação, decidir seu destino. As leis elaboradas pelo homem não asseguram a ele a retidão de sua vida e de sua ação; em cada situação, ele se encontra fundamentalmente só, ápolis, tendo que decidir por si, legislar-se. Para guiar cada um, cada ação, bem como para reger o princípio de nossa convivência, somente o olhar atento para isto que está aí desde sempre: a realidade diante de nós, inesgotavelmente apontando, assinalando as possibilidades e limites intrínsecos a tudo o que é.
Ponta da Fruta, Outubro de 2002.



*Este trabalho foi escrito para o Seminário Crime e Castigo, promovido pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, realizado em Nova Friburgo, em novembro de 2002. Publicado originalmente na Revista Tempo Brasileiro.
**Agradecimento especial para o amigo Marcos Peixoto.

[1] Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] Aristóteles. Poética. Texto bilíngüe grego-português. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992. 1449b.
[3] Aristóteles, Op. Cit., 1451b.
[4] Sófocles. Antigone. Edited and translated by Hugh Lloyd-Jones. Harvard College: Loeb Classical Library, 1998, vv. 734 e 738.
[5] Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Volume II: poder, direito, religião. Trad. Denise Bottmann & Eleonora Bottmann. Campinas: Ed. UNICAMP, 1995. pp. 109 a 112.
[6] Sófocles. Op. Cit., vv. 332 a 375.


segunda-feira, 12 de março de 2012

Lei da Anistia: o Supremo errou? - Um texto de Marcos Peixoto

Lei da Anistia: o Supremo errou?
  
                                                                     Marcos Augusto Ramos Peixoto
                                                         Juiz de Direito do TJ/RJ

"Não é possível pensar a violência da ditadura
sem assumirmos o compromisso de responder
aos atos de violência e tortura nos dias atuais.
E também o contrário: não eliminaremos as
balas perdidas se não apurarmos a verdade
nos anos de terror de Estado de modo a
ultrapassarmos certa cultura da impunidade.
Pois a bala perdida é, como o silêncio e o
esquecimento, o ato sem assinatura pelo qual
ninguém se responsabiliza."
Edson Teles [1]

     Em julgamento histórico (ainda que não paradigmático) realizado nos dias 28 e 29 de abril de 2010, o egrégio Supremo Tribunal Federal, apreciando a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153-6/800, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), naquele primeiro dia “por maioria, rejeitou as preliminares, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que extinguia o processo, sem julgamento de mérito, por falta de interesse processual. Votou o Presidente. No mérito, após o voto do Senhor Ministro Eros Grau (Relator), julgando improcedente a arguição, foi o julgamento suspenso. Ausentes o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, licenciado, e o Senhor Ministro Dias Toffoli, impedido” para, no segundo dia, julgar “improcedente a arguição, nos termos do voto do Relator, vencidos os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, que lhe dava parcial provimento nos termos de seu voto, e Ayres Britto, que a julgava parcialmente procedente para excluir da anistia os crimes previstos no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausentes o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, licenciado, e o Senhor Ministro Dias Toffoli, impedido”[2].
     A petição inicial requeria “a procedência do pedido de mérito, para que esse Colendo Tribunal dê à Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1965)” (grifo no original).
     Segundo Heleno Fragoso, costumava dizer Nelson Hungria que o e. Supremo Tribunal Federal, como corte máxima da organização judiciária brasileira, tem o privilégio de errar por último[3]. No caso, com as devidas vênias, entendo que foi o que ocorreu – ou melhor: errou originariamente.
     Logo de antemão, impressiona que no voto vencedor da lavra do Exmo. Min. Eros Grau, de 76 páginas, versando sobre anistia, tortura, ditadura, crimes políticos e etc., somente seja encontrada a expressão direitos humanos numa única passagem – e, mesmo assim, no relatório do processo, ao mencionar as “informações prestadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH”.
     Impressiona porque o ponto nodal da questão é exatamente este!
     Dispõe o artigo 1º, III, da Carta Maior que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana”.
     Já os parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 5º da Constituição Federal estatuem:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
     Pois bem, nosso país é signatário de inúmeras Convenções Internacionais [4], dentre as quais cabe aqui citar a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (adotada pela Resolução n. 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10/12/1984, e ratificada sem ressalvas pelo Brasil através do Decreto nº 40, de 15/02/1991), e a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22/11/1969 e ratificada pelo Brasil em 25/09/1992, sendo que ao depositar a carta de adesão à Convenção, o Estado Brasileiro apôs declaração interpretativa quanto aos artigos 42 e 48, alínea d, no seguinte sentido: “O Governo do Brasil entende que os artigos 42 e 48, alínea "d", não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado”).
     Assim, o primeiro e sólido empecilho à declaração de improcedência do pedido contido na ADPF 153-6/800, na forma como fundamentado pelo Exmo. Ministro Relator, encontraremos logo no artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, quando este estatui (o grifo é nosso):
Artigo 1º - Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
     Portanto, referindo-se a Convenção, desde o princípio, a “qualquer ato” e não a “qualquer crime” (a palavra “crime” é utilizada pela Constituição Federal ao dispor sobre a tortura no inciso XLIII do artigo 5º), resta afastado o argumento de que não sendo tipificado o crime de tortura à época dos (hediondos, abstrusos, inefáveis enfim...[5]) atos infligidos pela ditadura militar aos seus opositores, o delito, tipificado somente a partir da Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, seria irretroativo face ao princípio nullum crimen sine praevia lege.
     Os atos de tortura prescindem de tipificação/criminalização para serem reconhecidos como tal. [6]
     Justamente por isso é que, em sua inicial, acertadamente, o Conselho Federal da OAB não mencionou a existência de crimes de tortura (em sentido estrito) praticados pelos sequazes da ditadura de 1964 (autointitulada “A Redentora”), mas sim de homicídios, desaparecimentos forçados (rectius: sequestros), abusos de autoridade, lesões corporais, estupros e atentados violentos ao pudor, pela elementar razão de que à época daqueles fatos delitivos o crime de tortura propriamente dito ainda não existia – somente passou a viger a partir de 1997, como dissemos.
     A questão é que tais fatos (ou delitos), quando praticados em detrimento dos direitos assegurados nas Convenções já citadas, são reputados pela comunidade internacional, de forma pacífica, como de lesa-humanidade, praticados contra a ordem internacional e, por isso mesmo, absolutamente insuscetíveis de anistia.
     E quais seriam tais direitos? Vejamos alguns dos dispositivos pertinentes contidos no Pacto de San José da Costa Rica:
Artigo 4º - Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Artigo 11 – Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
Artigo 25 – Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
     E na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes:
Artigo 2º - 1. Cada Estado tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição.
2. Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificação para a tortura.
     Como sustenta Flávia Piovesan, “ao direito a não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direito à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos humanos. Vale dizer, é dever do Estado investigar, processar, punir e reparar a prática da tortura, assegurando à vítima o direito à proteção judicial e a remédios efetivos. Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol do direito da sociedade à construção da memória e identidades coletivas”. [7]
     Fácil é perceber que a ditadura militar brasileira, de triste lembrança, incidiu em vários atentados a tais direitos universais, intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana[8]. Como fácil é perceber também que, infelizmente, a democracia brasileira caminha no mesmo sentido, optando por um esquecimento do inesquecível, isto quando as Convenções já referidas são bastante claras: nenhuma razão, nem mesmo Razões de Estado [9], sobrepõem-se ao dever de repúdio e combate à tortura.
     Não por outro motivo, considerando que a tortura é um ato que viola o direito internacional, “a Convenção contra a Tortura estabelece a jurisdição compulsória e universal para os indivíduos acusados de sua prática (artigos 5º a 8º). Compulsória porque obriga os estados-partes a processar e punir os torturadores, independentemente do território onde a violação tenha ocorrido e da nacionalidade do violador e da vítima. Universal porque o Estado-parte onde se encontra o suspeito deverá processá-lo ou extraditá-lo para outro Estado-parte que o solicite e tenha direito de fazê-lo, independentemente de acordo prévio bilateral sobre extradição”.[10]
     O fato é que, diante de tais premissas, diversos atentados aos direitos humanos, em especial na América Latina, chegaram à jurisdição da Corte Interamericana criada pelo Pacto de San José da Costa Rica – após passarem pela análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – que com isso se defrontou com normas de direito interno concedendo anistia a torturadores, formando, a partir de então, sólida jurisprudência declarando sem efeito tais atos legais posto que violadores de normas internacionais asseguradoras dos direitos humanos enquanto valor universal, cogente e inderrogável.
    Ou seja: a legislação interna forçosamente cede ante ao jus cogens no plano internacional. [11]
    A conclusão intransponível que daí nasce é no sentido de que, se houve um acordo nacional[12], um pacto pela democracia, um ato de transição, uma lei de distensão, de pacificação, de ponto final, de obediência devida, da caducidade (vários são os eufemismos utilizados pelos mais diversos estados totalitários latino-americanos para nominar o que, no fundo e principalmente, são vergonhosas leis de autoanistia), tal acordo (ou pacto, ou ato, ou leis[13] e emendas a Constituições dele decorrentes) não poderia, jamais, transigir com direitos que pertencem à humanidade.
     As melhores lições neste sentido[14] vêm da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
     No (aqui sim) paradigmático Caso Barrios Altos Vs. Perú, por exemplo[15], julgado pela CIDH em março de 2001 sob a presidência do juiz brasileiro Antônio A. Cançado Trindade, foi decidido:
41. Esta Corte considera que son inadmisibles las disposiciones de amnistía, las disposiciones de prescripción y el establecimiento de excluyentes de responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o arbitrarias y las desapariciones forzadas, todas ellas prohibidas por contravenir derechos inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.
42. La Corte, conforme a lo alegado por la Comisión y no controvertido por el Estado, considera que las leyes de amnistía adoptadas por el Perú impidieron que los familiares de las víctimas y las víctimas sobrevivientes en el presente caso fueran oídas por un juez, conforme a lo señalado en el artículo 8.1 de la Convención; violaron el derecho a la protección judicial consagrado en el artículo 25 de la Convención; impidieron la investigación, persecución, captura, enjuiciamiento y sanción de los responsables de los hechos ocurridos en Barrios Altos, incumpliendo el artículo 1.1 de la Convención, y obstruyeron el esclarecimiento de los hechos del caso. Finalmente, la adopción de las leyes de autoamnistía incompatibles con la Convención incumplió la obligación de adecuar el derecho interno consagrada en el artículo 2 de la misma.
43. La Corte estima necesario enfatizar que, a la luz de las obligaciones generales consagradas en los artículos 1.1 y 2 de la Convención Americana, los Estados Partes tienen el deber de tomar las providencias de toda índole para que nadie sea sustraído de la protección judicial y del ejercicio del derecho a un recurso sencillo y eficaz, en los términos de los artículos 8 y 25 de la Convención. Es por ello que los Estados Partes en la Convención que adopten leyes que tengan este efecto, como lo son las leyes de autoamnistía, incurren en una violación de los artículos 8 y 25 en concordancia con los artículos 1.1 y 2 de la Convención. Las leyes de autoamnistía conducen a la indefensión de las víctimas y a la perpetuación de la impunidad, por lo que son manifiestamente incompatibles con la letra y el espíritu de la Convención Americana. Este tipo de leyes impide la identificación de los individuos responsables de violaciones a derechos humanos, ya que se obstaculiza la investigación y el acceso a la justicia e impide a las víctimas y a sus familiares conocer la verdad y recibir la reparación correspondiente.
44. Como consecuencia de la manifiesta incompatibilidad entre las leyes de autoamnistía y la Convención Americana sobre Derechos Humanos, las mencionadas leyes carecen de efectos jurídicos y no pueden seguir representando un obstáculo para la investigación de los hechos que constituyen este caso ni para la identificación y el castigo de los responsables, ni puedan tener igual o similar impacto respecto de otros casos de violación de los derechos consagrados en la Convención Americana acontecidos en el Perú.
     O Juiz Cançado Trindade, em brilhante voto quando do julgamento desta demanda perante a CIDH, ressaltou:
4. Estas ponderaciones de la Corte Interamericana constituyen un nuevo y gran salto cualitativo en su jurisprudencia, en el sentido de buscar superar un obstáculo que los órganos internacionales de supervisión de los derechos humanos todavía no han logrado transponer: la impunidad, con la consecuente erosión de la confianza de la población en las instituciones públicas . Además, atienden a un clamor que en nuestros días es verdaderamente universal. Recuérdese, al respecto, que el principal documento adoptado por la II Conferencia Mundial de Derechos Humanos (1993) exhortó a los Estados a "derogar la legislación que favorezca la impunidad de los responsables de violaciones graves de los derechos humanos, (...) y sancionar esas violaciones (...)" .
5. Las llamadas autoamnistías son, en suma, una afrenta inadmisible al derecho a la verdad y al derecho a la justicia (empezando por el propio acceso a la justicia) . Son ellas manifiestamente incompatibles con las obligaciones generales - indisociables - de los Estados Partes en la Convención Americana de respetar y garantizar los derechos humanos por ella protegidos, asegurando el libre y pleno ejercicio de los mismos (en los términos del artículo 1(1) de la Convención), así como de adecuar su derecho interno a la normativa internacional de protección (en los términos del artículo 2 de la Convención). Además, afectan los derechos protegidos por la Convención, en particular los derechos a las garantías judiciales (artículo 8) y a la protección judicial (artículo 25).
6. Hay que tener presente, en relación con las leyes de autoamnistía, que su legalidad en el plano del derecho interno, al conllevar a la impunidad y la injusticia, encuéntrase en flagrante incompatibilidad con la normativa de protección del Derecho Internacional de los Derechos Humanos, acarreando violaciones de jure de los derechos de la persona humana. El corpus juris del Derecho Internacional de los Derechos Humanos pone de relieve que no todo lo que es legal en el ordenamiento jurídico interno lo es en el ordenamiento jurídico internacional, y aún más cuando están en juego valores superiores (como la verdad y la justicia). En realidad, lo que se pasó a denominar leyes de amnistía, y particularmente la modalidad perversa de las llamadas leyes de autoamnistía, aunque se consideren leyes bajo un determinado ordenamiento jurídico interno, no lo son en el ámbito del Derecho Internacional de los Derechos Humanos.
7. Esta misma Corte observó, en una Opinión Consultiva de 1986, que la palabra "leyes" en los términos del artículo 30 de la Convención Americana significa norma jurídica de carácter general, ceñida al bien común, elaborada según el procedimiento constitucionalmente establecido, por órganos legislativos constitucionalmente previstos y democráticamente elegidos . ¿Quién se atrevería a insinuar que una "ley" de autoamnistía satisface a todos estos requisitos? No veo cómo negar que "leyes" de este tipo carecen de carácter general, por cuanto son medidas de excepción. Y ciertamente en nada contribuyen al bien común, sino todo lo contrario: configúranse como meros subterfugios para encubrir violaciones graves de los derechos humanos, impedir el conocimiento de la verdad (por más penosa que sea ésta) y obstaculizar el propio acceso a la justicia por parte de los victimados. En suma, no satisfacen los requisitos de "leyes" en el ámbito del Derecho Internacional de los Derechos Humanos.
     E, mais à frente em seu voto, lança a pá de cal:
10. Hay otro punto que me parece aún más grave en relación con la figura degenerada - un atentado en contra el propio Estado de Derecho - de las llamadas leyes de autoamnistía. Como los hechos del presente caso Barrios Altos lo revelan - al llevar la Corte a declarar, en los términos del reconocimiento de responsabilidad internacional efectuado por el Estado demandado, las violaciones de los derechos a la vida y a la integridad personal , - dichas leyes afectan derechos inderogables - el minimum universalmente reconocido, - que recaen en el ámbito del jus cogens.
11. Siendo así, las leyes de autoamnistía, además de ser manifiestamente incompatibles con la Convención Americana, y desprovistas, en consecuencia, de efectos jurídicos, no tienen validez jurídica alguna a la luz de la normativa del Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Son más bien la fuente (fons et origo) de un acto ilícito internacional: a partir de su propia adopción (tempus commisi delicti), e independientemente de su aplicación posterior, comprometen la responsabilidad internacional del Estado. Su vigencia crea per se una situación que afecta de forma continuada derechos inderogables, que pertenecen, como ya lo he señalado, al dominio del jus cogens. Configurada, por la expedición de dichas leyes, la responsabilidad internacional del Estado, encuéntrase éste bajo el deber de hacer cesar tal situación violatoria de los derechos fundamentales de la persona humana (con la pronta derogación de aquellas leyes), así como, en su caso, de reparar las consecuencias de la situación lesiva creada.
     Em “voto concorrente” naquele mesmo caso, o juiz Sergio García Ramírez assentou, também de maneira lapidar:
11. Ciertamente no desconozco la alta conveniencia de alentar la concordia civil a través de normas de amnistía que contribuyan al restablecimiento de la paz y a la apertura de nuevas etapas constructivas en la vida de una nación. Sin embargo, subrayo --como lo hace un creciente sector de la doctrina, y ya lo ha hecho la Corte Interamericana-- que esas disposiciones de olvido y perdón “no pueden poner a cubierto las más severas violaciones a los derechos humanos, que significan un grave menosprecio de la dignidad del ser humano y repugnan a la conciencia de la humanidad” (Voto cit., párr. 7).
12. Por ende, el ordenamiento nacional que impide la investigación de las violaciones a los derechos humanos y la aplicación de las consecuencias pertinentes, no satisface las obligaciones asumidas por un Estado parte en la Convención en el sentido de respetar los derechos fundamentales de todas las personas sujetas a su jurisdicción y proveer las medidas necesarias para tal fin (artículos 1.1 y 2). La Corte ha sostenido que el Estado no puede invocar “dificultades de orden interno” para sustraerse al deber de investigar los hechos con los que se contravino la Convención y sancionar a quienes resulten penalmente responsables de los mismos.
13. En la base de este razonamiento se halla la convicción, acogida en el Derecho internacional de los derechos humanos y en las más recientes expresiones del Derecho penal internacional, de que es inadmisible la impunidad de las conductas que afectan más gravemente los principales bienes jurídicos sujetos a la tutela de ambas manifestaciones del Derecho internacional. La tipificación de esas conductas y el procesamiento y sanción de sus autores --así como de otros participantes-- constituye una obligación de los Estados, que no puede eludirse a través de medidas tales como la amnistía, la prescripción, la admisión de causas excluyentes de incriminación y otras que pudieran llevar a los mismos resultados y determinar la impunidad de actos que ofenden gravemente esos bienes jurídicos primordiales. Es así que debe proveerse a la segura y eficaz sanción nacional e internacional de las ejecuciones extrajudiciales, la desaparición forzada de personas, el genocidio, la tortura, determinados delitos de lesa humanidad y ciertas infracciones gravísimas del Derecho humanitario.
14. El sistema democrático reclama la intervención penal mínima del Estado, que lleva a la tipificación racional de conductas ilícitas, pero también requiere que determinadas conductas de suma gravedad sean invariablemente previstas en las normas punitivas, eficazmente investigadas y puntualmente sancionadas. Esta necesidad aparece como natural contrapartida del principio de mínima intervención penal. Aquélla y éste constituyen, precisamente, dos formas de traducir en el orden penal los requerimientos de la democracia y sostener la vigencia efectiva de este sistema.
     Todos estes fundamentos mostram-se – sob a ótica do Direito Internacional, em tudo aplicável ao Brasil já que signatário das Convenções referidas no aresto – intransponíveis, denotando, com as devidas vênias, a clara procedência da pretensão deduzida perante o Supremo Tribunal Federal pelo Conselho Federal da OAB na ADPF 153-6/800[16], sendo de se lamentar, profundamente, que esta egrégia Corte não tenha admitido a instauração de uma justiça de transição, esta sim indispensável à consolidação da democracia em nosso país.
     Como atentam Sikkink e Walling[17], “o julgamento de violações de direitos humanos pode também contribuir para reforçar o Estado de Direito, como ocorreu na Argentina. [...] os cidadãos comuns passam a perceber o sistema legal como mais viável e legítimo se a lei é capaz de alcançar os mais poderosos antigos líderes do país, responsabilizando-os pelas violações de direitos humanos do passado. O mais relevante componente do Estado de Direito é a ideia de que ninguém está acima da lei. Desse modo, é difícil construir um Estado de Direito ignorando graves violações a direitos civis e políticos e fracassando ao responsabilizar agentes governamentais do passado e do presente. [...] Os mecanismos de justiça de transição não são apenas produto de idealistas que não compreendem a realidade política, mas instrumentos de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais”.
     Afinal, a aparentemente eterna transição brasileira para um efetivo Estado Democrático de Direito somente terá bom termo quando for feita Justiça – ao passado, no presente, para o futuro.


[1] Edson Teles, “Entre Justiça e Violência: Estado de Exceção nas Democracias do Brasil e da África do Sul”, em Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.), O Que Resta da Ditadura, São Paulo, Boitempo, 2010, pág. 318;
[2] ATA Nº 11, de 28/04/2010. DJE nº 80, divulgado em 05/05/2010;
[3] Citação a Heleno Fragoso em texto de Nilo Batista, na internet em http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/artigoshomenagem/arquivo4.pdf, consultado em 06 de junho de 2010;
[4] “Estranhamente” o Brasil não firmou a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade – ainda que tenha firmado o Tratado de Roma em consonância com o que estatui o artigo 7º do ADCT da Constituição Federal, declarando este Tratado a imprescritibilidade dos atos de tortura; como também “estranhamente” possibilitou a manutenção de determinados documentos eternamente em segredo com as Leis 8.158/1991 e 11.111/2005, uma do governo Collor e outra do governo Lula, apesar do que estatui o artigo 13.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, leis que são objeto da ADI 4077; como ainda aqui “estranhamente” reconheceu, através do Decreto 4.463/2002 firmado por Fernando Henrique Cardoso, como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos, desde que “para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998” – como se vê, nossa estranha “transição democrática” ainda se encontra em andamento mesmo 25 anos depois do fim da ditadura e, a depender destes e de outros fatores, tende à eternidade...
[5] “Se da experiência do trauma for removida a estranheza, o risco é a trivialização, a normalização daquilo que, pelo horror que constitui, não pode ser banalizado” - Jaime Ginzburg, “Escritas da Tortura”, em Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.), O Que Resta da Ditadura, São Paulo, Boitempo, 2010, pág. 134;
[6] Assim é mesmo que as citadas Convenções recomendem a tipificação do ato de tortura, bem como a adequada apenação destes face a profunda gravidade da conduta, atentatória à dignidade da pessoa humana (v.g. o artigo 4º, 1 e 2, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes);
[7] Flávia Piovesan, “Direito Internacional dos Direitos Humanos e Lei de Anistia: O Caso Brasileiro”, em Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.), O Que Resta da Ditadura, São Paulo, Boitempo, 2010, págs. 98/9;
[8] Lembremos o que estatui o inciso III do artigo 1º da Constituição Federal, a tornar a questão posta na ADPF de natureza evidentemente constitucional (ainda que inaplicável o ditame contido no parágrafo 3º do artigo 5º) e, assim, passível de conhecimento por aquela via de ação;
[9] No caso brasileiro, o falacioso “acordo” havido em 1979, como se os opositores do regime estivessem em pé de igualdade com os detentores do poder, ou ainda a tão propalada “transição democrática”, que parece não ter fim, impondo a pergunta: quando, afinal, verdadeiramente, chegaremos lá?
[10] Flávia Piovesan, idem, op.cit., pág. 98;
[11] Sequer Emendas Constitucionais têm o condão de se sobrepor ao direito internacional dos direitos humanos, pelo que mesmo a EC 26/1985, citada pelo Exmo. Ministro Relator da ADPF 153-6/800, não pode ser cogitada para embasar a conclusão do aresto, qual seja, a constitucionalidade da Lei de Anistia quando acoberta crimes contra a humanidade;
[12] “...o caráter negociado de nossa transição, em um contexto em que as forças democráticas dispunham de muito pouca margem de manobra e poder de influência e em um momento em que o principal desgaste do governo militar brasileiro resultava do anunciado fracasso de sua política econômica altamente concentradora, incapaz de se esconder atrás de algum falso "milagre econômico", pesou na manutenção e difusão de uma subjetividade altamente autoritária” – Geraldo Prado, na internet em http://geraldoprado.blogspot.com/ , consultado em 05 de junho de 2010;
[13] O mesmo se aplica às “leis-medida” (Massnahmegesetze) que, segundo o Exmo. Ministro Relator da ADPF 153-6/800, seriam aquelas que “disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas” e, portanto, seriam “leis apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. Cuida-se, então, de lei não-norma”, já que, mesmo estas (ou, quiçá, principalmente estas) jamais poderiam desconsiderar ou suplantar as normas internacionais e nacionalizadas protetivas de direitos humanos. Aliás, se, como quer o eminente Ministro, seria inarredável a “necessidade de, no caso de lei-medida, interpretar-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual”, talvez para ele não haja qualquer vício nos atos normativos hitleristas que programaram e regulamentaram a “Solução Final” – afinal, interpretadas considerando o momento histórico e não a realidade atual, seriam plenamente “aceitáveis” e, com isso, Eichmann em Brasília (e não “em Jerusalém”...) sequer seria passível de punição;
[14] Sem desmerecer, de modo algum, os magníficos votos vencidos dos Exmos. Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto quando do julgamento perante o Supremo Tribunal Federal da ADPF em questão;
[15] Cabe fazer menção, outrossim, a outros casos de altíssima relevância julgados pela CIDH abrangendo o tema das leis de anistia também em outros países, alcançando conclusões idênticas, tais como Almonacid Arellano Vs. Chile, La Comunidad Moiwana Vs. Suriname, etc.;
[16] Mesmo que não tenham sido expressamente aduzidos na inicial, posto que iura novit curia;
[17] Citados por Flávia Piovesan, ibidem, pág. 105.

sábado, 10 de março de 2012

"Barbárie" - Um texto de Miguel Baldez

“Barbárie”

                                    Miguel Baldez


As aspas são uma referência à presidenta Dilma Rousseff que, segundo dizem os jornais, usou esta mesma expressão para classificar a violência do Estado de São Paulo contra a comunidade do Pinheirinho em São José dos Campos. Barbárie sim, mas e agora? Como vai comportar-se o governo federal? Acomodar-se e reduzir o fato em si a mero caso isolado, ou admitir, enfim, que não se trata de uma simples exceção política, como poderia, até com argumentos conceituais, manter na história do Brasil o atual fingimento democrático que esconde esta sociedade de privilégios e miséria cuja origem se perde na gestação colonial de estrutura escravista para projetar-se tempo afora sob o signo fortemente colorido da pobreza de seu povo, de parca alimentação e sequestrada moradia.

     A este povo nunca se reconheceu, concretamente, qualquer direito, apenas bem elaboradas formas e formulações jurídicas, uma bem urdida igualdade na lei. Se todos são iguais perante a lei, como diz lá a Constituição Federal em seu artigo 5º, a igualdade será sempre, sendo a lei abstrata, uma abstração.

     Pois está na imposição e eficácia da lei abstrata o principal meio de controle da sociedade. É através das leis que se reduzem a conflitos individuais as grandes contradições sócio-econômicas, é assim, como exemplo definitivo, que a contradição entre trabalho e capital, pela regulação do direito do trabalho, fica reduzida ao conflito entre empregado e empregador, é assim também que a contradição entre o latifúndio ou o agronegócio e a posse da terra configura-se como conflito pessoal entre o latifundiário e o posseiro.

     Foi, portanto, com poder político, força e fórmulas jurídicas que o poder econômico construiu em torno da terra no Brasil, antes dos mourões e do arame farpado, uma quase intransponível cerca jurídica, uma não, na verdade, duas cercas jurídicas, uma cerca morta, tecida com normas constitucionais, leis, regulamentos, regras, produzida por competentes artesãos de variados poderes institucionais, outra viva, representada por juízes, desembargadores e ministros de sabe-se lá quantos tribunais, e, principalmente, por ferozes policiais muito bem amestrados que se revezam com a imprensa como cães de guarda da propriedade privada.

     A violenta investida armada, incluindo, como parece, armas letais, contra Pinheirinho não chega a ser uma novidade no trato do povo sem terra, no campo, e sem moradia, nas cidades. Se o espanto e a repercussão foram maiores isso se deveu à brutalidade da ação das autoridades do governo de São Paulo ao mostrarem, sem o menor pudor, a cara horrenda do fascismo.

     O repúdio ao massacre do Pinheirinho por sua dimensão nacional e mesmo, espera-se, internacional, vem reforçar o repúdio a todas as situações idênticas cada hora mais freqüentes nestes brasis: em Belo Horizonte, a heróica resistência de Dandara, no Rio de Janeiro, a permanente prática predatória do Prefeito e de seu fidelíssimo Secretário de Habitação, derrubando com frenético ritmo casas e mais casas da população pobre da cidade... E são todos religiosos e fiéis a seus respectivos credos... Como se dizia aliás de vários torturadores durante a ditadura militar.

     Como resistir? Só o povo, organizando-se, pode fazê-lo. Só o povo, reconhecendo-se como coletivo e com a consciência de sua realidade histórica, pode travar esta luta, que, sendo estratégica, é libertária, e pressupõe ética e igualdade substantiva. Mas esta é uma luta que não se trava sozinho. Daí ser fundamental o apoio de todos à gente do Pinheirinho, apoio do povo e das instâncias democráticas do campo institucional como as defensorias públicas em geral e outros órgãos, oficiais ou não, comprometidos com os princípios e as regras de direitos humanos.

     Enfim, em conclusão, um apelo à Exª. Srª. Presidenta da República. Diga, Exª., a essa gente do poder, que a sua prédica pela erradicação da pobreza, além do discurso, é um princípio constitucional (artigo 3º da Constituição Federal), e diga também, com forte ênfase, que erradicar a pobreza não significa acabar fisicamente com os pobres desta sofrida nação.  


segunda-feira, 5 de março de 2012

O Samba atravessado da escola de pijama: um texto de Luiz Cláudio Cunha

O samba atravessado da Escola de Pijama


     Às vésperas da instalação da Comissão da Verdade, que irá dissecar a ditadura, os militares brasileiros continuam atrapalhados em suas fantasias. Atravessaram o Carnaval batendo bumbo contra o Governo Dilma, usando a bateria dos decadentes Clubes Militares, concentração nostálgica de oficiais-generais camuflados com o pijama da reserva, sempre reprisando o velho refrão da Guerra Fria e entoando o fossilizado ramerrão da ‘ameaça comunista’.
     Desta vez, o baticum militar veio na forma de um manifesto, assinado pelos presidentes dos clubes do Exército, Marinha e Aeronáutica, contra duas ministras do Governo. Reclamaram de uma entrevista de Maria do Rosário, onde a ministra dos Direitos Humanos explicava que a Comissão da Verdade poderá alimentar processos na Justiça contra agentes que praticaram a tortura na ditadura. E chiaram contra Eleonora Menicucci, ministra de Política para Mulheres, por “críticas exacerbadas aos governos militares” e por atuar, como ex-integrante do Partido Operário Comunista (POC), para “implantar, pela força, uma ditadura, nunca tendo pretendido a democracia”. E ainda sobrou um bordão contra a “falácia” do PT, criado “quando o governo já promovera a abertura política”.
     O alarido militar chegou ao auge quando voltou a bateria contra a presidente suprema da escola, Dilma Rousseff, vaiada pelos oficiais sem farda por não expressar “desacordo” com suas ministras e seu próprio partido — comportamento absurdo que só caberia no enredo esquizofrênico de um samba do crioulo doido. O ensaio de rebelião foi escrito na quinta (16) anterior ao Carnaval, ganhou a avenida na terça-feira (21) de folia e rendeu um puxão de orelhas de Dilma já na quarta-feira (22), quando tudo virou cinzas. O manifesto de 49 linhas acabou desautorizado naquele mesmo dia num texto seco, de uma única linha, assinado pela comissão de frente dos clubes, integrada por seus presidentes – um general de exército, um vice-almirante e um tenente-brigadeiro -, os mesmos signatários do torpedo original, subitamente arrependidos. De tão envergonhado, o recuo ficou escancarado apenas 20 minutos no site da internet — e depois se evaporou, como a coragem de seus integrantes.
     A evolução desastrada e as alegorias de mau-gosto dos clubes, que pretendem ecoar o que não pode ser cantado nos quarteis por impedimento constitucional, mostram uma dificuldade crônica do pensamento militar. Posam de democratas tardios, esquecidos de que as ministras que hoje atacam apenas reagiam, nos anos de chumbo, à ditadura sem adereços, sem graça e sem fantasia que eles impuseram ao país por duas décadas — um ‘paradaço’ democrático muito mais dramático e angustiante do que o revolucionário silêncio de dois minutos da bateria da Mangueira no sambódromo de 2012.
     Nos anos que antecederam o golpe de 1964, sintomaticamente, os clubes militares eram as quadras de ensaio para agitação e o foco de conspiração contra o regime constitucional e a democracia. Terminado o longo desfile militar, e com a volta do povo à avenida, os clubes reconquistaram a sua devida irrelevância. Já não falam pela tropa, nem mesmo por seus componentes, desmentidos por líderes que revogam seus manifestos com a mesma leviandade com que revogavam a democracia. O Brasil não pode mais perder tempo com fantasias. O carnaval acabou — e a ditadura também.

Originalmente publicado em www.sul21.com.br


Luiz Cláudio Cunha é jornalista
cunha.luizclaudio@gmail.com