segunda-feira, 26 de março de 2012

Antígona e as leis não escritas: um texto de Carla Francalanci


Antígona e as leis não escritas*

                                                                                                                                                                                                                                            Carla Francalanci[1]

     Antígona é uma tragédia grega, escrita no séc. V a.C., que diz respeito às leis da cidade e à base sobre a qual elas se fundamentam. Este será, assim, o assunto de nossa discussão. Para tentar pensar esta questão, é preciso antes explicar a pertinência deste percurso que escolhemos trilhar, esclarecendo o motivo de termos escolhido as indicações extraídas de uma obra da qual nos separam tantos séculos.
     Para começar, é preciso tornar claro sob que perspectiva a tragédia será encarada aqui. Não iremos aborda-la “esteticamente”, como fruto da “criatividade”, isto é, da “expressão subjetiva” do autor, nem como um “produto de cultura”, no caso, a grega de 26 séculos atrás. Tais compreensões usuais interpõem de saída uma distância, uma separação entre nós e o dizer da tragédia, que interdita o acesso ao que ela pode diretamente nos apontar. Assim procedendo, nos impedimos de ver em que a ação trágica pode nos concernir. Nossa proposta é proceder de modo oposto a este, encarando a Antígona de Sófocles no que ela dá a ver, no que ela traz de verdadeiro e necessário como pensamento sobre o homem e sua condição: a relação entre a dimensão humana da solidão e sua perene situação de convivência, situação esta que os gregos denominaram pólis, a “cidade”.
     Para auxiliar a compreender em que se funda este modo de interpretar a tragédia, que podemos chamar filosófico, iremos apresentar brevemente o testemunho de Aristóteles. Em sua obra intitulada Poética ele aborda em especial a poesia trágica. Partamos, assim, de sua definição:
     “É pois a tragédia a imitação de uma ação elevada, completa e de certa extensão (...) que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação destas emoções”[2].
     Em primeiro lugar, é preciso explicar porque aparece reforçado este âmbito da ação. Segundo Aristóteles, da mesma maneira como é uma ação a completude da vida, assim também as ações são a completude da tragédia. “Completude” traduz o termo grego télos, de onde provém o adjetivo téleia, empregado pelo filósofo. O termo télos também pode ser compreendido, traduzido por “finalidade”. Esta, contudo, não diz aqui respeito a uma ordem extrínseca à vida, e muito menos ao que compreendemos por utilidade: ela aborda, antes, aquilo que consuma e, assim, plenifica isso que vida e tragédia são. Vida, para ser, precisa acontecer, precisa pôr-se em obra. Vida é pois atividade, acontecimento que se dá no presente contínuo de sua efetivação: vida é verbo realizando-se: falando, andando, ouvindo, amando, fazendo, morrendo. O tempo próprio da vida é o gerúndio. A tragédia é, nesta perspectiva, a imitação da vida no que ela tem de mais central, no que a distingue: a ação.
     Aristóteles afirma que a tragédia descreve uma ação elevada e completa. “Elevado” compreende aqui o necessário, o agir que se afina à sua condição e à sua situação. A tragédia não descreve ações da “vontade” pura e simples de um qualquer particular, mas sim aquelas que são ditadas por uma ordem, um princípio: seja a família, o poder, a cidade, os deuses. “Completa”, por sua vez, concerne à ação que se leva ao cabo, que se consuma nisso que ela é, deixando aparecer sua proveniência, sua efetuação e os desdobramentos que daí advém. Devido a uma tal visão é que Aristóteles pode comparar a poesia trágica à história. Diz ele:
     “Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta diferem em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério que a história, pois aquela (poesia) diz respeito antes ao universal, e esta (história) ao particular”[3].
     Ao apresentar a ação desde a ótica da necessidade, o tragediógrafo ressalta a unidade intrínseca ao modo de ser da ação, o que freqüentemente se perde de vista na vida de todos os dias, devido às inúmeras ocorrências fortuitas, não necessárias, que nela intervém. É como se a tragédia nos apresentasse a vida em seu estado puro, livre de entraves, desdobrando-se cada ato, cada gesto plenamente em tudo o que ele abrange, apontando assim para sua origem, efetivação e conseqüências.
     O segundo momento da definição aristotélica diz respeito ao “terror e piedade” que a tragédia deve suscitar. A este respeito, Aristóteles explica: a piedade advém da compreensão de que os infortúnios ocorridos com as personagens são imerecidos, enquanto o terror provém de que tais personagens desafortunadas se mostram em tudo semelhantes a nós. O mal e o infortúnio não se configuram como “castigos” por uma maldade ou vilania intrínseca: antes, são a punição pelo erro, pelo desvio fortuito no percurso de vida de alguém que sequer suspeitava estar em erro, conforme veremos na Antígona. Esta situação mesma suscita a compreensão da nossa proximidade à questão central da tragédia: se vida é ação, esta é percurso, caminho, pôr-se em obra. Contudo, estes caminhos não estão prontos, nem dados de antemão: é preciso fazê-los, encontrá-los durante o caminhar, e a linha que separa percurso e descaminho é por demais tênue, geralmente só aparecendo como tal após havermos há muito enveredado por ela. Assim, o erro de cada personagem trágica sempre poderia ser o nosso: a tragédia deixa transparecer nossa própria condição, de ter que decidir nosso destino sem contar com nenhuma garantia ou segurança prévia. Neste sentido, ainda, é que se pode pensar em “purificação”, catarse. Pela visão e compreensão de nossa situação em outro ganhamos, a um só tempo, proximidade e distância para com ela. Aproximamo-nos de nós mesmos e do sentido de nossa vida como articulação de liberdade e destino, ao mesmo tempo em que somos capazes de experimentar, pela distância para com as personagens, esta articulação a partir da perspectiva do prazer e da beleza.

     Qual é, em linhas gerais, a ação que ocorre em Antígona? Antígona é filha de Édipo, que já havia falecido, passando aí a reinar o cunhado deste, tio de Antígona, Creonte. A peça inicia após uma batalha, na qual um exército inimigo, chefiado por Polinices, também filho de Édipo, tentara invadir a cidade, sendo barrado, entre outros, por Etéocles, igualmente irmão de Antígona. Em uma contenda, que dera a vitória aos tebanos, Etéocles e Polinices ter-se-iam matado mutuamente. Devido a estes fatos, Creonte baixaria uma lei, ordenando todas as honras fúnebres àquele que morreu pela cidade, enquanto o outro, traidor, deveria permanecer insepulto para ser comido pelos animais. A peça narra a resolução de Antígona em desobedecer às ordens do tio e sepultar seu irmão. Sendo descoberta, o tio a condena à morte, sepultando-a viva para que a cidade não se conspurque com sua morte, evitando assim o derramamento de sangue entre membros de uma mesma família.
     Tendo visto, com Aristóteles, que a tragédia descreve um erro, seríamos levados por um olhar apressado a considerar a desobediência à cidade o erro de Antígona, motivo de sua condenação à morte. Contudo, a própria peça jamais qualifica a ação de Antígona como erro, e sim, reiteradas vezes, como calamidade, infelicidade, desdita – palavras que traduzem toscamente o termo grego áte. Ao contrário, a palavra hamartía – erro – aparece seguidas vezes e com força cada vez maior acerca da posição de Creonte, até ser finalmente expressa pela boca desta mesma personagem. Com relação ao desenrolar do destino de ambas as personagens, vemos ainda um dado curioso: Antígona prefigura sua morte desde o instante que relata sua resolução, no início mesmo da peça, sendo sua trajetória segura e linear: sua ação de velar o morto, sua descoberta, sentença, punição e morte. De modo contrário aparece o percurso de Creonte: fazendo proclamar seu edito acerca do morto, sentencia sua sobrinha, noiva de seu filho, à morte a fim de manter sua resolução; repudia os arkhóntai, anciãos e conselheiros da pólis, personificados pelo Coro, quando estes sugerem que os deuses talvez queiram que o morto seja enterrado, e igualmente seu filho, quando este vem mostrar a injustiça de sua ação para com Antígona. A peça nos mostra Creonte crispando-se cada vez mais em sua posição, terminando por dizer que, se toda a cidade está contra ele, sua ordem deve valer, por ser o soberano: “Não é a cidade quem agora vai me ensinar a governar”[4], e “não pertence a cidade àquele que a governa?”. Somente após a sentença cumprida e com a entrada em cena do adivinho de Tebas, Tirésias, sua decisão acaba por fraquejar, ao profetizar aquele que em sua casa ocorrerão duas mortes, em retribuição àquelas que, de algum modo, causara. Temendo a profecia, Creonte tenta reverter seu erro, enterrando os restos do morto. Contudo, quando vai à tumba de Antígona para desenterra-la, descobre que esta já se havia matado e seu filho lá se encontra, pranteando sua noiva. O filho tenta mata-lo e, errando, suicida-se. A esposa de Creonte, ouvindo esta nova por parte de um mensageiro, igualmente se mata, amaldiçoando o causador de sua desgraça. Maldizendo seu erro, Creonte se retira da cidade, esperando que a morte se abata rapidamente sobre ele.
     Qual é, assim, o erro de Creonte? Em primeiro lugar, a tragédia deixa claro que sua lei ultrapassa o âmbito do que lhe diz respeito: estando o traidor Polinices já morto, é como se Creonte pretendesse novamente matá-lo, não permitindo que sua morte seja tratada como as outras. O que a peça diz, pela voz de Antígona e de Tirésias, é que a sorte dos mortos não pertence à deliberação da cidade: as leis que regem os mortos são divinas, e não humanas. Os mortos pertencem ao interior da terra, seu lugar é o Hades, que quer dizer propriamente “invisível”: sua situação própria deve ser a ocultação do olhar e da convivência dos homens. Ao punir Antígona, Creonte insiste e aprofunda o mesmo erro: depois de ter feito o morto compartilhar do âmbito dos vivos, pretende fazer o vivo – Antígona – partilhar o destino dos mortos. Embaralhando estes campos, Creonte perde de vista – e por isso se desencaminha, isto é, erra – o princípio que talvez seja mais caro aos gregos: a linha que demarca os domínios de deuses e homens, de imortais e mortais.
     A ação de Antígona fere a norma da cidade, mas é conforme à lei dos deuses; a de Creonte pode ser legitimada pela cidade, mas aparece em desacordo com a lei divina. Pela punição e assunção de seu erro, Creonte se re-encaminha a esta observância fundamental.
     É preciso perguntar: o que são as leis divinas? Para ajudar a esboçar esta resposta, sigamos uma indicação da peça. Quando perguntada sobre o porquê de sua desobediência à lei presentemente vigente na cidade, Antígona retruca não ter sido esta lei ditada por Zeus, nem tampouco aprovada por Dike, e que entre obedecer às leis da cidade ou às leis divinas, ela sempre escolheria estas, que não são as de agora, mas sim de ontem e de sempre. A palavra díke tem aqui o sentido de uma divindade, mas em seu sentido usual pode ser traduzida por isto que os gregos compreendem como “justiça”. Este substantivo provém de um verbo, deiknymi, que significa mostrar. Este mostrar, no entanto, não equivale ao mero apontar para algo; em primeiro lugar, ele trata de um mostrar pela palavra. Podemos talvez fazer a experiência do que díke e deiknymi querem dizer reproduzindo a situação de deliberação conforme se dava na Grécia antiga: os anciãos conselheiros da cidade, os arkhóntai, sentam-se formando um círculo no centro da assembléia, para ouvir a demanda. Do lado de fora do círculo, posicionam-se os demandantes, que se acusam e defendem. Na periferia, o povo, tomando partido ora de um, ora de outro. No centro do círculo dos conselheiros, duas moedas (talentos) de ouro. Ao final da fala dos demandantes, cada arkhonte diz uma sentença: sentença aqui não possui o caráter de aplicação da lei, ela antes diz respeito a uma enunciação que faz aparecer, que mostra a situação em causa nisso que ela é. Aquele que díke eipein, que disser a díke, leva as moedas e o seu pronunciamento se faz cumprir[5]. O importante aqui é ressaltar que a sentença não é justa porque dita por um juiz; não é a autoridade que presentifica a justiça, antes o contrário: o conselheiro é que é denominado justo, e igualmente sua fala, porque enuncia o que de fato é. Poder-se-ia perguntar: mas quem delibera sobre esta verdade? A resposta aqui é simples: todos e, ao mesmo tempo, ninguém. Não há esta necessidade de algo como uma “meta-deliberação”, pela compreensão de que o justo é, aqui, o verdadeiro, e este o que aclara maximamente, o que deixa ver a situação, para todos aqueles que estiverem afinados, acordados a ela. O justo é o que mostra o que é, o que deve ser visto, aclarado, posto à luz; por esta razão, é o verdadeiro, pois este não é nada diferente do que aparece e se mostra.
     A partir do exposto, é preciso compreender que as leis divinas não são algo da ordem do insondável nem do imponderável; elas não correspondem ao livre-arbítrio de uma Providência inescrutável. Os deuses gregos não são a pura liberdade, acima da necessidade representada pelas leis da natureza: eles são a própria natureza, desde que a compreendamos sem nenhuma conotação bucólica ou idílica, nem como a contrapartida ao campo do humano. “Natureza” aqui não diz mais do que a realidade em seu todo, considerada a partir dos poderes e limites que cada âmbito da realidade possui. O peso da pedra, a leveza da chama, a perene fluidez da água, o poder desvairante do amor, a força desocultadora da palavra, o poder soberano do cuidado, de velar para que cada coisa se mostre e consume como isso que ela é: isto é o que perfaz, basicamente, a experiência grega do divino.
     A experiência grega do real, expressa desde sua compreensão do divino, o apreende em seus limites inexoráveis, que não podem ser franqueados. Contrapondo-se a isto, está a solidão da liberdade humana, que deve auto-legislar-se, forjar as leis sob as quais irá viver e conviver. Contudo, é o que a tragédia aponta, estas leis precisam estar afinadas, isto é, a lei humana só pode verdadeiramente denominar-se justa, dikaia, quando feita em escuta e obediência às leis que não são nada além da própria realidade. Quando este limite do humano é ultrapassado, o que vemos como ira divina não pertence à ordem do milagre, isto é, do extra-natural, como nos relatos judaico-cristãos, mas sim à das catástrofes ditas “naturais”: em Antígona, os animais carregam partes do corpo destroçado de Polinices para o centro da cidade e para os próprios altares, deflagrando uma peste. O que se encontra aqui expresso é a realidade em suas múltiplas facetas: se a natureza pode mostrar-se benéfica e dadivosa para aqueles que a habitam articulando-se com ela, ela igualmente aparece como catastrófica, selvagem, inabitável quando seus limites não são respeitados.
     Mais uma vez, quero retomar o início desta fala para dizer que esta compreensão não deve ser tomada como peculiaridade, idiossincrasia da cultura grega. “Grego” exprime, antes, a exposição da própria condição humana, que não é setorial, mas sim universal e necessária. Se nossa experiência, ocidental e moderna, apreende a liberdade tomando como pano de fundo a subjetividade (e aqui é oportuno frisar que a noção de consenso, tão em voga ao pretender-se “explicar” o caráter social e político do humano, não é mais que a “soma” de diversas unidades subjetivas, permanecendo assim uma noção derivada da noção de sujeito), isto não pode ser pensado como o fundamento do humano, mas antes como o desvio no percurso histórico do homem que se foi paulatinamente distanciando do verdadeiro princípio de seu existir. A verdadeira ação humana é a de ver, isto é, de apreender a realidade em sua totalidade, e esta em seu caráter completo, perfeito. A partir desta visão, sua atividade consiste basicamente em imitar, em procurar transpor a perfeição percebida para o campo e competência dos assuntos e questões humanas. É em imitação, isto é, em obediência às possibilidades e limites que o real sempre e necessariamente aporta que as leis se impõem como necessidade ao homem.
     A relação entre o homem, a natureza e seu campo de convivência aparece ressaltada de maneira magistral pelo Coro de Antígona em um de seus cantos.
Muitas coisas espantosas, mas nenhuma surge mais espantosa que o homem! Ele que, ajudado pelo tempestuoso vento sul, chega ao outro extremo do espumante mar, atravessando-o, apesar das ondas que rugem descomunais; ele, que fatiga aquela que, entre os deuses, é mais eminente, a inesgotável Terra, com o vaivém do arado puxado por mulas e, ano após ano, a vai sulcando.
     Ele captura com armadilhas os inocentes pássaros e aprisiona os animais selvagens e, com as malhas das entrelaçadas redes, colhe os peixes que vivem no mar, o engenhoso homem; com habilidade, domina o selvagem animal montês, sabe subjugar o cavalo de abundantes crinas e o infatigável touro das serras.
A fala, os pensamentos rápidos como o vento e as leis que regulam a vida na cidade ele aprendeu, e como escapar das montanhas inóspitas e dos dardos pontudos da chuva e da neve, pleno de recursos; sem recursos para nada do que lhe traz o futuro; somente do Hades não encontrou meios de escapar, logrando fugir, contudo, das enfermidades inevitáveis.
     Sapiente além do esperado é o expediente que possui em suas artes e saberes, e ele os encaminha ora para o mal, ora para o bem. Quando respeita as leis da terra e a justiça que os deuses juraram observar alcança o cume da cidade; sem cidade é aquele que audaciosamente convive prazeiroso com o que não é belo; este não poderá sentar-se à minha mesa, pois quem assim procede não compartilha meus pensamentos[6].
     É importante ressaltar que o termo “surge”, que aparece no verso de abertura deste canto, é pélei, verbo a partir do qual se forma o substantivo pólis, a cidade. A cidade sempre foi considerara pelo grego não como um simples local de convivência, muito menos como um lugar determinado, mas sim como o solo, o fundo a partir do qual a realidade se dá, se mostra, aparece para o homem. O homem, contudo, se encontra evidenciado por este canto em seu caráter extraordinário, em primeiro lugar no que tange à capacidade de dominar a natureza. Ele caminha sobre o mar, doma as bestas selvagens, para tudo pleno de recursos (pantóporos): ausente de recursos (áporos) somente frente à morte, para a qual não encontrou saída. No próprio embate com a realidade, ao mesmo tempo em que esta lhe fornece múltiplas possibilidades de governo e domínio, ela igualmente apresenta ao homem seu limite extremo, infranqueável. Quando de acordo com estes limites ele age, posta-se no cume da cidade (hypsípolis); sem pátria nem cidade (ápolis), torna-se o homem quando não os observa.
     Conforme o Coro expressa ao final deste canto, o espantoso da condição humana é seu estar fundado na pólis, sendo, a um só tempo, este hupsípolis-ápolis; o ente que cria, administra e pode plenificar-se neste espaço de convivência, mas que, simultaneamente, permanece tendo sua ação fundada em seu contrário, no desamparo de ter que, a cada ação, decidir seu destino. As leis elaboradas pelo homem não asseguram a ele a retidão de sua vida e de sua ação; em cada situação, ele se encontra fundamentalmente só, ápolis, tendo que decidir por si, legislar-se. Para guiar cada um, cada ação, bem como para reger o princípio de nossa convivência, somente o olhar atento para isto que está aí desde sempre: a realidade diante de nós, inesgotavelmente apontando, assinalando as possibilidades e limites intrínsecos a tudo o que é.
Ponta da Fruta, Outubro de 2002.



*Este trabalho foi escrito para o Seminário Crime e Castigo, promovido pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, realizado em Nova Friburgo, em novembro de 2002. Publicado originalmente na Revista Tempo Brasileiro.
**Agradecimento especial para o amigo Marcos Peixoto.

[1] Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] Aristóteles. Poética. Texto bilíngüe grego-português. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992. 1449b.
[3] Aristóteles, Op. Cit., 1451b.
[4] Sófocles. Antigone. Edited and translated by Hugh Lloyd-Jones. Harvard College: Loeb Classical Library, 1998, vv. 734 e 738.
[5] Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Volume II: poder, direito, religião. Trad. Denise Bottmann & Eleonora Bottmann. Campinas: Ed. UNICAMP, 1995. pp. 109 a 112.
[6] Sófocles. Op. Cit., vv. 332 a 375.


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