quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Drogas e Neurociências

DROGAS E NEUROCIÊNCIAS
 
 
Sidarta Ribeiro
 
Renato Malcher-Lopes
 
João R. L. Menezes
 
 

 


O que é droga? Se tomarmos como referência as leis norte-americanas (Food, Drug, and Cosmetic Act) que regulam o uso de remédios e alimentos daquele país, droga é definida como: (i) substância reconhecida por farmacopeia oficial; (ii) substância utilizada no diagnóstico, cura, alívio, tratamento ou prevenção de uma doença; (iii) substância não alimentícia usada para afetar a estrutura ou a função do corpo; (iv) substância usada como componente de um remédio. Do ponto de vista das neurociências, embora não exista convenção formal para o uso do termo, pode-se dizer que toda substância capaz de alterar parâmetros biológicos é uma droga. Portanto, a despeito das circunstâncias legais, políticas e históricas, do ponto de vista biológico, o termo “droga” pode ser atribuído a todos os fármacos e substâncias psicoativas, além de muitos alimentos. Numa sociedade livre e esclarecida, o debate sobre a melhor forma de regular o consumo de drogas deve pautar-se exclusivamente pelo conjunto de efeitos que produz. O efeito de uma droga é produto da interação de três fatores:(1)-(2)
1) a substância em questão, com seu modo de ingestão, composição molecular e especificidades farmacológicas;
2) o corpo que recebe a droga, com sua história de vida, marcas biológicas e predisposições inatas;
3) o ambiente físico e social em que ocorre o uso.
O debate sobre legalização e regulamentação das drogas costuma centrar-se exclusivamente no primeiro item, esquecendo que os outros itens podem ser determinantes para seus efeitos. É fundamental considerar a especificidade da substância em questão com base no conhecimento científico atualizado e não na percepção política de turno. Como é ingerida a droga? Qual é seu modo de ação aos níveis molecular, celular e sistêmico? Quais são seus efeitos no organismo e em seu comportamento? É verdadeiro o lema de Paracelso (1493-1521) de que a diferença entre remédio e veneno é a dose. Dependendo da dose, as drogas podem causar benefícios ou danos fisiológicos variados. Uma regra geral quanto ao uso de drogas é evitar a superdosagem – as chaves para o uso seguro são a moderação e o conhecimento específico sobre a substância.
Também é preciso esclarecer que diferentes modos de uso acarretam danos distintos. A combustão de drogas de origem vegetal quando fumadas (tabaco, cânabis) acarreta a formação de derivados cancerígenos. Tais derivados nocivos não estão presentes quando as mesmas substâncias são vaporizadas, isto é, quando são aquecidas a ponto de evaporar substâncias psicoativas sem carbonizar a celulose que as compõe.
No caso das drogas psicoativas, importante efeito colateral a ser considerado é o risco de dependência química. A comparação de diferentes drogas legais e ilegais quanto ao dano físico e risco de adição demonstra a existência de três grupos distintos:(3) (i) substâncias de alto dano e com grande risco de adição compreendem cocaína e crack, a metadona e os barbitúricos, além da heroína como caso extremo; (ii) substâncias de médio dano e médio risco de adição incluem a anfetamina, os benzodiazepínicos, o álcool e o tabaco; (iii) substâncias de baixo dano físico e baixo risco de dependência incluem a cânabis, os esteroides e o ecstasy.
É gritante a discrepância entre a classificação biomédica e a regulamentação jurídica do tema. A cânabis, por exemplo, causa menos dano físico e dependência que álcool, tabaco e benzodiazepínicos utilizados para induzir o sono.(4) Esta irracionalidade no tratamento jurídico de substâncias com distintos potenciais de uso abusivo, sem levar em consideração os verdadeiros riscos à saúde, gera estigmas que prejudicam a credibilidade do processo de educação, sobretudo dos jovens, a respeito dos riscos do abuso de substâncias. Com o livre acesso a informações via Internet, tais discrepâncias revelam que a política que regula o uso de drogas é arbitrária e sustentada por falsas suposições. A consequência natural junto aos que mais necessitam formação adequada sobre o tema é o descrédito e ceticismo quanto à legitimidade do discurso protetor. Cientes de que drogas moderadamente perigosas, como o álcool e o tabaco, podem ser usadas com poucas restrições pelos adultos, os jovens tendem a ignorar as orientações para uso seguro de drogas menos perigosas como cânabis e ecstasy.
Por exemplo, está bem estabelecido que o consumo crônico do tabaco na forma fumada causa câncer,(5) enquanto o da cânabis não,(6) provavelmente porque esta contém substâncias antitumorais que contrabalanceiam os derivados carcinogênicos produzidos na combustão.(7)-(8) Além disso, a quantidade de cigarros de cânabis fumados, mesmo por um usuário contumaz, é muito menor do que a quantidade cigarros de tabaco fumada por tabagistas. Os efeitos irritantes da cânabis, que podem evoluir para bronquite, não justificam sua proibição em face da legalização do uso do tabaco, que pode evoluir para câncer e problemas cardíacos ausentes na cânabis. Enquanto esse debate se perpetua sem clareza científica, permanece oculto para a sociedade o fato de que existem dispositivos vaporizadores capazes de extrair os princípios ativos tanto do tabaco quanto da cânabis sem a produção de combustão, praticamente eliminando os efeitos tóxicos da fumaça. Uma legislação racional e legitimamente preocupada com a saúde pública deveria viabilizar e encorajar o uso de vaporizadores nesses casos.
Outro exemplo trata dos efeitos psicológicos da cânabis. É verdade que seu uso, especialmente em usuários inexperientes, pode levar a estados de ansiedade e paranoia, sem que ocorram as alucinações que caracterizam um surto psicótico. Apenas no caso de pessoas dentro do grupo de risco, que corresponde a menos de 1% da população, tais estados paranoides causados pela cânabis podem evoluir para surtos psicóticos. Sabe-se que tanto num caso como no outro, estados de sofrimento psíquico são desencadeados por linhagens de cânabis que contêm proporção excessiva de tetrahidrocanabinol (THC) e baixos níveis de canabidiol (CBD), que é um canabinoide ansiolítico e antipsicótico. Não é casual o equilíbrio na cânabis entre essas duas moléculas, pois é uma planta cultivada e artificialmente selecionada por milênios para servir de remédio. O uso seguro da droga, nesse caso, é a mistura farmacológica de moléculas que se equilibram para gerar benefícios. Quando desequilibrados, podem causar malefícios. Aqui, pode-se novamente afirmar que uma política racional e legitimamente preocupada com o bem-estar público deve priorizar a regulamentação dos teores de THC e CBD na cânabis.
No tangente ao corpo que recebe a droga, com suas tendências inatas e história de vida, é preciso considerar que cada indivíduo apresenta predisposições genéticas e culturais próprias. Quando consideramos a população de um país, verificamos um espectro muito amplo de diferenças hormonais e bioquímicas que correspondem à variação igualmente ampla de reações a uma mesma substância. Assim, o conceito de grupo de risco é crucial para o debate sobre drogas numa sociedade livre e esclarecida. Toda droga pressupõe um subconjunto de indivíduos cuja condição fisiológica e/ou psicológica contraindica o consumo da substância. Isto se aplica a alimentos (intolerância à lactose ou ao glúten, reações alérgicas a crustáceos), remédios (sensibilidade excessiva à dipirona) e substâncias psicoativas (intolerância ao álcool em asiáticos).
Alguns grupos de risco são comuns a muitas drogas distintas: gestantes, lactantes, crianças e jovens. Isso ocorre porque é preciso proteger organismos em formação de alterações químicas que porventura possam desorganizar seu curso saudável. Além desses grupos, para cada substância tipicamente existem outros grupos de risco que são especificamente relacionados a seus efeitos. Substâncias como o álcool e a cânabis, por exemplo, são potencialmente danosas para pessoas com tendência à psicose (ou seja, pessoas com histórico familiar ou que exibam na adolescência os sintomas da fase pré-drômica da doença), enquanto o tabaco não é. Para regulamentar o uso seguro de uma droga, é preciso identificar com clareza os seus grupos de risco.
Dos três eixos determinantes do efeito das drogas, o aspecto mais neglicenciado é o ambiente físico e social em que ocorre o seu uso. Por exacerbarem sensações e emoções, substâncias psicoativas podem magnificar de forma poderosa a influência de agentes externos ao usuário. Uma mesma substância ingerida de uma única forma por uma mesma pessoa pode ter efeitos completamente distintos dependendo do contexto em que o usuário se encontra. Se o ambiente é confortável, seguro e inclui a presença de pessoas em quem o usuário confia, os efeitos de diversas drogas psicoativas são muito mais benignos do que se o ambiente é desconfortável e socialmente aversivo. Assim, tratar o uso de drogas como questão de polícia contribui para que as experiências dos usuários sejam negativas.
Outra consequência deletéria da proibição de certas drogas, em especial da cânabis, é a dificuldade de realizar pesquisas para caracterizar seus efeitos biológicos e investigar seus potenciais usos medicinais em regime de proibição e estigmatização que sabota este importante ramo da ciência biomédica. O estudo dos endocanabinoides, substâncias análogas aos constituintes da cânabis produzidas em grandes quantidades pelo cérebro, constitui uma das fronteiras mais ativas das neurociências.(9)-(10) Mesmo sob as restrições impostas pelo regime de proibição, diversas pesquisas apontam para um vasto potencial terapêutico da cânabis(11) e seus diversos componentes conhecidos como canabinoides.(12) Nos 16 estados dos EUA em que a cânabis medicinal foi regulamentada, muitos pacientes optam por seu uso para tratamento de diversas enfermidades.(13) Devido ao regime de proibição, ainda são poucos os trabalhos realizados com rigor necessário para avaliar a eficiência destes tratamentos.(14) Nesses poucos casos, a efetividade da cânabis medicinal vem sendo confirmada.(15)-(16) A criminalização da cânabis causa, portanto, um fenômeno paradoxal nos EUA, pois pacientes que escolhem este método de tratamento sob indicação médica, permitido por leis estaduais, correm o risco de serem perseguidos judicialmente pelo governo federal.
O ponto de vista das neurociências coloca em xeque não apenas o senso comum sobre as drogas, mas o alarmismo e a intolerância consonantes com as políticas públicas adotadas atualmente, as quais prescrevem punição e intolerância àqueles que necessitam respeito, acolhimento e eventualmente ajuda médica. A esfera adequada para o debate sobre regulamentação do uso de drogas deve ser biomédica e cultural, jamais criminal. Pelo prisma das ciências do cérebro, nenhuma droga deveria ter seu uso criminalizado e todas deveriam ser reguladas, caso a caso, de acordo com suas especificidades, e em parâmetros científicos isentos de moralismos e tendências políticas. A objetividade científica exige tratamento isonômico para drogas com potencial danoso semelhante. O proibicionismo é uma política irracional que exacerba os malefícios das drogas nos três eixos determinantes para seus efeitos. No que diz respeito aos efeitos específicos das substâncias, o proibicionismo produz um mercado negro que não é fiscalizado quanto à composição química das drogas que negocia (exemplo: composição de THC versus CBD na cânabis) e que favorece enormemente a adulteração das drogas com substâncias desconhecidas pelo usuário. No que diz respeito aos cérebros que recebem a ação das drogas, o proibicionismo inviabiliza uma política educacional de drogas baseada em evidências científicas, descredenciando o discurso protetor justamente entre os mais suscetíveis ao uso abusivo de drogas, isto é, os jovens. No que diz respeito ao contexto social do uso de drogas, o proibicionismo induz estados de temor e paranoia que potencializam efeitos psicologicamente danosos.
Por todas essas razões, a proibição absoluta do consumo de certas drogas é uma alternativa radical, ineficiente e perversa para proteger a população dos potenciais efeitos negativos do abuso dessas substâncias. Enquanto o mercado de drogas for monopolizado por agentes econômicos marginais, nenhum controle de qualidade pode ser exercido, nem é possível uma política racional de redução dos danos causados pelo uso de drogas.
Notas:
(1) Shewan, D.; Dalgarno, P.; Reith, G. Perceived risk and risk reduction among ecstasy users:the role of drug, set, and setting. International Journal of Drug Policy, 2000. 10: p. 431-453.
(2) Zinberg, N. E. Drug, Set, and Setting. New Haven: Yale University Press, 1984.
(3) Nutt, D. J.; King, L. A.; Phillips, L. D. Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. Lancet, 2010. 376: p. 1558-65.
(4) Idem, ibidem.
(5) IARC, IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Tobacco smoke and involuntary smoking., I. P. Editors., Editor 2004, WHO: Lyon.
(6) Hashibe, M. et al. Epidemiologic review of marijuana use and cancer risk. Alcohol, 2005. 35: p. 265-275.
(7) Blazquez, C. et al. Cannabinoids inhibit the vascular endothelial growth factor pathway in gliomas. Cancer Research, 2004. 64: p. 5617-23.
(8) Melamede, R. Cannabis and tobacco smoke are not equally carcinogenic. Harm Reduct J, 2005. 2: p. 21.
(9) Wilson, R. I.; Nicoll, R.A. Endocannabinoid signaling in the brain. Science, 2002. 296(5568): p. 678-82.
(10) Guindon, J.; Hohmann, A. G. The endocannabinoid system and cancer: therapeutic implication. Br J Pharmacol, 2011. 163(7): p. 1447-63.
(11) Bostwick, J. M. Blurred Boundaries: The Therapeutics and Politics of Medical Marijuana. Mayo Clin Proc, 2012. 87(2): p. 172-186.
(12) Izzo, A. et al. Non-psychotropic plant cannabinoids: new therapeutic opportunities from an ancient herb. Trends in Pharmacological Sciences, 2010. 30: p. 515-527.
(13) Reinarman, C., et al. Who Are Medical Marijuana Patients? Population Characteristics from Nine California Assessment Clinics. Journal of Psychoactive Drugs, 2011. 43(2): p. 128-135.
(14) Bostwick, J. M. Op. et loc. cits.
(15) Grant, I. et al. Medical Marijuana: Clearing Away the Smoke. The Open Neurology Journal, 2012. 6: p. 18-25.
(16) Lucas, P. Cannabis as an adjunct to or substitute for opiates in the treatment of chronic pain. J Psychoactive Drugs, 2012. 44(2): p. 125-33.
Sidarta Ribeiro
Professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Malcher-Lopes
Professor adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).
João R. L. Menezes
Professor adjunto do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Publicado originalmente em: RIBEIRO, Sidarta; MALCHER-LOPES, Renato; MENEZES, João R. L. Drogas e neurociências. Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, Ed. Especial, p. 15-17, out., 2012.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A criminalização como obstáculo aos controles sociais do consumo de substâncias psicoativas: um texto de Mauricio Fiore






O consumo de substâncias psicoativas – aquelas que têm a propriedade de alterar a consciência ou a percepção – é fenômeno presente em praticamente todas as civilizações. A relação das sociedades com essas substâncias, hoje chamadas drogas, gozou de diversos sentidos e objetivos: da devoção religiosa à prática terapêutica, do aperfeiçoamento da performance à promoção da diversão e das relações afetivas. A longa relação humana com essas substâncias é frequentemente esquecida no debate público contemporâneo sobre o tema. Esse “manto escuro” é resultado direto de quase um século de hegemonia do paradigma proibicionista, um regime estatal que se construiu a partir de uma classificação dicotômica e simplista dessas substâncias: proibidas e permitidas.

     Antes de tudo, deve-se lembrar que as substâncias psicoativas nunca existiram fora das relações sociais humanas e, portanto, seu consumo sempre correspondeu aos valores e saberes de cada época. A alteração da consciência pela ingestão de substâncias é um fenômeno fascinante e amedrontador, e para ele foram estabelecidos controles formais e informais que, de alguma forma, indicavam quem, quando, como e em que doses as diferentes drogas poderiam (e deveriam) ser consumidas. Evidentemente, esses controles só fizeram sentido devido à existência de algum nível de desvio, de diferentes níveis de desobediência.

     A partir do século XX, um conjunto de plantas e substâncias foi, por diferentes motivações (religiosas, econômicas, morais etc.), considerado danoso a ponto de gerarem proibições sob a forma de lei penal, regime ao qual se convencionou chamar proibicionismo. Por escapar dos objetivos desse texto, ignorarei o processo histórico que o sustentou e o tornou hegemônico internacionalmente, com decisivo empenho norte-americano. Ressalto, no entanto, que o paradigma proibicionista ancora sua legitimidade social em duas premissas.(1) A primeira e mais fundamental é a de que determinadas substâncias são tão destrutivas social e individualmente que o Estado deve ter a prerrogativa de impedir sua produção, circulação e consumo em nome do bem comum. A segunda, legitimada pela grande potência da primeira, é a de que a melhor forma de combater os malefícios intrínsecos a essas substâncias é persegui-las, buscando eliminá-las por meio de controles penais e aplicação de força policial e/ou militar e encarcerando desobedientes. As três substâncias que, em diferentes momentos, por diferentes processos históricos, tornaram-se o tipo exemplar dessas “drogas” – já aí em sua conotação negativa e não farmacológica – foram a heroína, a cocaína e a maconha.

     Há argumentos de diversas ordens que denunciam o equívoco autoritário e danoso de ambas as premissas. O principal deles é que se trata de uma intrusão indevida do Estado sobre os corpos de indivíduos adultos, perseguindo-os por praticar ação cujo dano maior, quando ocorre, é autolesivo. Deter-me-ei, no entanto, nas consequências negativas da segunda premissa, aquela que deposita no combate penal às drogas a atuação do Estado na questão.

     Primeiramente, quando traz para o campo do Direito Penal uma lista de substâncias, criminalizando-as, o paradigma proibicionista pressupõe impor seu desaparecimento. Logrou-se solucionar o problema em vez de enfrentá-lo, produzindo, assim, fértil campo de atuação para um mercado ilícito espetacularmente lucrativo e poderoso. Em países desiguais e violentos como o Brasil, a atuação do tráfico de drogas é um dos dinamizadores principais de redes criminosas organizadas com grande capacidade corruptiva de agentes públicos. Além da violência inerente à regulação desse mercado e de seus confrontos permanentes com a polícia – o encarceramento por tráfico de drogas é o que mais cresce no país, proporção ainda mais dramática com relação às mulheres, crianças e adolescentes. Tanto os encarcerados como as vítimas preferenciais dos crimes violentos relacionados às drogas são majoritariamente as populações mais vulneráveis (jovens, pobres, não brancos), mas as repercussões sociais negativas são generalizadas.

     Se o objetivo da criminalização é evitar os danos e o abuso das drogas tornadas ilícitas, é possível encontrar impactos positivos nesse sentido? Antes de tudo, há grande acúmulo de trabalhos produzidos no âmbito das ciências sociais que, desde a metade final do século XX, demonstram a inexistência de um “mundo das drogas” que reuniria, de forma homogênea, os consumidores dessas substâncias. Não há razão objetiva para separar as substâncias psicoativas lícitas das ilícitas a não ser pelo próprio estatuto jurídico a elas atribuído. Classificar sob a pecha de “mundo das drogas” substâncias e padrões de consumo tão diversos é tão impreciso sociologicamente como tratar todos os fenômenos referentes à sexualidade como “mundo do sexo”.

     Sob essa plataforma homogeneizadora, os controles formais tomaram a forma principal de lei penal e enfraqueceram controles sociais informais. Para se compreender mais profundamente esses controles, deve-se ter em conta que o fenômeno do consumo de drogas é construído a partir da intersecção de três esferas simultâneas: a especificidade da(s) substância(s) consumida(s), o contexto sociocultural no qual o consumo ocorre e as peculiaridades biográficas e comportamentais do consumidor. Trata-se de um esquema exclusivamente analítico, posto que todas essas esferas não podem ser apartadas em seu registro empírico.

     Independentemente de seu contexto, o consumo de substâncias psicoativas é uma ação com diferentes níveis potenciais de dano aos indivíduos. Esses danos podem ser de natureza estritamente fisiológica de curto, médio e longo prazo; podem ser resultado de intoxicação acidental – overdose – ou de acidentes indiretos, como os que ocorrem na condução de veículos ou máquinas, ou na potencialização de práticas violentas. Ou, ainda, no mais característico dos males associados às substâncias psicoativas, pode engendrar relação de dependência severa. Mas, não devemos esquecer, não são apenas danos e dependências que caracterizam o consumo de substâncias psicoativas. Pelo contrário, na maioria das vezes ele se apresenta de forma socialmente integrada – porque ajustada aos controles informais – e associada ao prazer, ao alívio, à terapia, à suspensão da vida ordinária, enfim, a um conjunto de atributos que são considerados positivos para os indivíduos e grupos que o praticam.

     O paradigma proibicionista delegou ao Estado o controle formal mais violento, o de tipo penal, para que esse se sobrepusesse aos controles de tipo informal, moldando-os a sua imagem e semelhança. Em outras palavras, os controles informais emularam, ao longo de um século de criminalização, os equívocos do controle formal, potencializando os danos na intricada relação sujeitos-substâncias-contextos.

     Quando elege um conjunto de substâncias a serem proscritas, o paradigma proibicionista localiza os danos de todas elas a partir de uma lógica dicotômica: pode ou não pode, essa substância faz bem ou faz mal, tal droga encadeia ou não riscos e assim sucessivamente.  Dessa maneira, a divisão das substâncias psicoativas sob dois rótulos – proibidas e permitidas – ignora características e padrões de uso e de riscos muito diversos. Por exemplo, substâncias cuja toxicidade implicam risco considerável de acidentes fatais, como a heroína e a cocaína, compartilham o mesmo estatuto jurídico com a maconha e o LSD, drogas cujo risco de overdose praticamente inexiste. Ao mesmo tempo, substâncias psicoativas legais de uso livre, como o álcool, ou prescritas como medicamentos, como calmantes e estimulantes, têm seu consumo naturalizado e, em muitos casos, excessivamente estimulado.

     Há outras consequências da ilegalidade de substâncias. Sem controle algum sobre níveis de concentração e a de qualidade, potencializam-se riscos e padrões abusivos de consumo. Boa parte dos acidentes envolvendo o consumo de drogas como cocaína, ecstasy e heroína são resultado do descontrole sobre seu mercado. A criminalização também constitui obstáculo importante para que se opte por um consumo mais parcimonioso, já que dificulta a valorização de outros aspectos relevantes dessas substâncias – cheiro, gosto, aparência, raridade etc. – como ocorre com o tabaco e o álcool.(2) Além disso, mercados à margem de qualquer regulamentação seguem a regra do lucro e da sobrevivência, distanciados de qualquer regulação de interesse social mais amplo. O caso da coca é um exemplo interessante: na forma de folhas secas, são milenarmente mascadas com baixo potencial de abuso ou danos. Refinada, a cocaína para aspirar ou injetar assume um formato mais intenso e potencialmente arriscado. Mas, para baixar o custo e maximizar vendas, foi transformada em produto fumável, o crack, uma droga de efeitos efêmeros e intensos que estimulam um padrão de consumo desmensurado e abusivo.

     Outro impacto negativo do proibicionismo nos controles informais foi alocar nas características bioquímicas das substâncias o protagonismo quase exclusivo na geração de problemas decorrentes do seu consumo. Dessa forma, os indivíduos e a sociedade se postam como incapazes de construir relações positivas e menos danosas com as substâncias, enfraquecendo sua autonomia diante dos controles heteronômicos de tipo formal (“isso o Estado permite que você use, isso não”). Evidentemente, os controles sociais informais não deixam de existir sob a criminalização. Ao contrário, dado que a proibição é um fracasso no seu objetivo de tornar as drogas menos disponíveis(3) e se limita a criminalizar o seu consumo, são os controles formais de diversas ordens os que, de fato, são efetivos. Trata-se de conjunto amplo de práticas, valores e regras, cujos limites transcendem a esfera pontual do consumo de substâncias psicoativas. Incluem-se nesses controles saberes que são aprendidos e compartilhados, por exemplo, entre usuários de maconha, desde mecanismos para potencializar e reconhecer efeitos positivos, até esquemas mais seguros para obtenção da erva,(4) bem como valorações de fundo moral que normatizam comportamentos esperados ou evitados socialmente. Pode-se buscar emprego aparentando estar sob efeito de substância psicoativa? Existe compatibilidade entre determinadas moralidades religiosas e a busca por recreação por meio da alteração química da consciência? Ou, ainda, num contexto em que o gozo imediato e o aproveitamento prazeroso da vida são valores fundamentais, o consumo de drogas não estaria predisposto assumir um caráter compulsivo? Questões como essas indicam que há amplo feixe de valores e regras que atuam na construção que os indivíduos, singulares em suas motivações e escolhas, estabelecem com as substâncias. A lei penal é incapaz de acompanhar tal complexidade. A maconha, droga ilícita de uso disseminado, é pouco associada a padrões de dependência severa, inexistindo a possibilidade de overdoses. No entanto, os danos potenciais de seu consumo recreativo, que não são poucos, ou os seus já demonstrados benefícios terapêuticos ficam em segundo plano com a criminalização, pois, objetivamente, o dano mais grave que acomete seus consumidores é ser surpreendido por autoridades policiais ou estar em contato com circuitos criminosos. Mas isso não significa que o Estado deva abrir mão dos controles formais. Quando alicerçadas numa perspectiva realista que não subestima o papel das escolhas e dos controles informais, o Estado pode, por meio dos controles formais, ter um papel efetivo na prevenção e minimização de danos, como o bem sucedido caso do tabaco sinaliza. Quando intenta prevenir e minimizar danos e não impedir sua existência, os controles formais do Estado tem muito mais chance alcançarem seus objetivos.

     Na medida em que busquei apontar neste artigo como a criminalização imposta pelo paradigma proibicionista oblitera controles informais que são historicamente os mais efetivos para prevenção do abuso e dos danos potenciais das substâncias psicoativas, encerro-o com duas ressalvas importantes. A primeira é que os controles informais são sustentados por valores diversos, por vezes contraditórios. Num exemplo palpável, são controles sociais informais tanto técnicas compartilhadas por consumidores entusiastas da alteração de consciência para minimizar danos quanto a propagação de dogmas religiosos que pregam a abstinência como única opção correta. Não necessariamente, elas reproduzem valores que nos agradam, mas, sociologicamente, não podemos ignorar seus papéis. A chave, aqui, é que elas convivam democraticamente sem colonizar o Estado e, assim, impor, por meio das sanções penais, que haja uma forma possível de se relacionar com as substâncias psicoativas. A segunda consideração diz respeito ao alcance da eficácia de controles informais. Evidentemente, eles não foram e não serão capazes de impedir que pessoas tenham problemas e sofram danos pelo consumo de drogas, pelo fato de que não há algum controle capaz de fazê-lo numa sociedade não totalitária. Ao debater seriamente as alternativas ao paradigma proibicionista, nos distanciamos da inalcançável e autoritária promessa de “resolver” a questão das drogas, promessa cuja adoção, pela maioria dos países, resultou em danos muito mais graves do que as drogas podem produzir.

Notas:

(1) Para discussão aprofundada das duas premissas do paradigma proibicionista, ver: Fiore, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Revista Novos Estudos Cebrap, n. 92, mar. 2012.

(2) A valorização das substâncias psicoativas para além de seus efeitos psicoativos, como ocorre com algumas bebidas alcoólicas é um potencializador de padrões menos nocivos de consumo.

(3) De acordo com levantamento do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), de 2005, cerca de 2/3 da população brasileira considera fácil obter drogas ilícitas. 

(4) Há inúmeros trabalhos sobre o tema, mas, para um estudo clássico, ver: Becker, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Publicado originalmente em: FIORE, Maurício. A criminalização como obstáculo aos controles sociais do consumo de substâncias psicoativas. Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, Ed. Especial, p. 20-22, out., 2012.


Maurício Fiore é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip).
Antropólogo.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: A DISTORÇÃO PRODUZIDA NO BRASIL

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
 
 
Por Fernanda Lara Tórtima
 
 
 


 
Podem ser indicados como precursores da utilização do conceito de domínio do fato no tratamento da autoria e da participação em Direito Penal diversos autores alemães, que, a exemplo de H. Bruns, Hellmuth v. Weber, Eb. Schmidt, Lobe e, finalmente Welzel — este último já inserindo o conceito na teoria da ação — escreveram sobre o tema na década de 1930.

Posteriormente, a teoria do domínio do fato encontrou sofisticado e quiçá pleno desenvolvimento com os trabalhos oferecidos à comunidade jurídica pelo renomado professor emérito da Universidade de Munique Claus Roxin, a partir dos anos 1960. Segundo suas contribuições, pode o fato ser dominado de três diferentes formas:

I — Pelo domínio da ação, que se dá quando o agente realiza o fato típico pelas próprias mãos, portanto como autor e não instigador ou cúmplice (mero partícipe);

II — Pelo domínio da vontade, que se dá quando o autor imediato realiza o tipo atuando em erro ou sob coação, tendo sua vontade dominada pelo autor mediato, que, assim, deixa de ser mero partícipe instigador ou cúmplice, não se podendo olvidar aqui a formulação relativa ao domínio da vontade no âmbito de estruturas organizadas de poder; e, finalmente,

III — Pelo domínio funcional do fato, que fundamenta a coautoria, baseada na divisão de tarefas entre os autores.

O que nunca imaginaram os referidos autores tedescos é que a teoria por eles cuidadosamente estudada e desenvolvida viria a ser um dia desvirtuada e utilizada para flexibilizar a análise rigorosa que deve ser feita em um processo penal acerca da prova dos autos, a partir da presunção de que alguém tenha participado da prática de determinado crime em razão de sua posição hierárquica dentro de determinada estrutura de poder, como ocorreu recentemente em determinadas passagens do julgamento da Ação Penal 470.

Com base no que ouviram dos votos ali proferidos, não faltaram manifestações na imprensa no sentido de que a “nova” teoria do domínio do fato — que, como visto, de nova nada tem — possibilitaria condenações com base em prova indiciária.

Não se quer aqui questionar a existência de provas para a condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em questão, menos ainda afirmar ser inadmissível a condenação em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi desenvolvida.

Como visto, a teoria do domínio do fato, notadamente em suas formulações mais modernas, serve simplesmente à distinção entre autor e partícipe (instigador ou cúmplice). É autor, e não partícipe, quem tem o domínio final sobre os fatos típicos, seja pelo domínio da ação, pelo domínio da vontade ou pelo domínio funcional dos fatos. A distinção é de fundamental importância, notadamente para fins de dosimetria da pena a ser aplicada em caso de condenação. Mas, querer vincular a análise da prova dos autos acerca da participação de acusados nos crimes que lhes foram imputados à teoria do domínio do fato é demonstração de supremo desconhecimento sobre sua origem e finalidade.

O concurso de acusados em determinada empreitada criminosa, seja na qualidade de meros partícipes (instigadores ou cúmplices) ou na qualidade de autores, deve ser comprovado independentemente da interferência da teoria em questão. E, uma vez comprovado, aí sim se poderá lançar mão do conceito de domínio do fato para que se conclua terem os acusados atuado como autores ou simples partícipes.

No Peru foi a teoria do domínio do fato utilizada corretamente por sua Corte Suprema, possibilitando-se a condenação do ex-presidente Fujimori como autor mediato dos crimes cometidos durante o seu governo por autores plenamente responsáveis, integrantes dos órgãos de repressão então existentes. No julgamento de Fujimori, ao contrário do que se fez aqui, a teoria em nada dizia respeito à análise da prova dos autos. Lá o que se fez foi condenar Fujimori como autor, e não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). E isso por ter sido verificada a presença de quatro requisitos: o poder de Fujimori para emitir ordens, o afastamento da ordem jurídica da estrutura de poder, a fungibilidade do autor imediato — consistente no fato de que qualquer outra pessoa poderia substituir o autor originariamente designado — e a sua alta disposição para a realização do fato criminoso. Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como partícipe.

Como se vê, ali teve a teoria, adotando-se formulação criada pelo professor Claus Roxin, aproveitamento adequado. Já no julgamento em andamento em nossa Corte Suprema, além de se lançar, de forma absolutamente descontextualizada, que determinados acusados tinham domínio “final” ou “funcional” do fato, nem se chegou a indicar de que forma se pretendeu utilizar a teoria em questão. De resto, no caso brasileiro, a teoria dos aparelhos organizados de poder sequer seria adequada, pois um aparato organizado de poder é, ao menos segundo a formulação original da teoria, uma organização alheia ao direito, isto é, algo como um grupo terrorista, um estado dentro do Estado, e não um partido político legalmente reconhecido.

A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal 470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser da “nova” teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.

Fernanda Lara Tórtima é advogada criminal e presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.