O consumo de substâncias psicoativas – aquelas que têm a propriedade de alterar a consciência ou a percepção – é fenômeno presente em praticamente todas as civilizações. A relação das sociedades com essas substâncias, hoje chamadas drogas, gozou de diversos sentidos e objetivos: da devoção religiosa à prática terapêutica, do aperfeiçoamento da performance à promoção da diversão e das relações afetivas. A longa relação humana com essas substâncias é frequentemente esquecida no debate público contemporâneo sobre o tema. Esse “manto escuro” é resultado direto de quase um século de hegemonia do paradigma proibicionista, um regime estatal que se construiu a partir de uma classificação dicotômica e simplista dessas substâncias: proibidas e permitidas.
Antes de tudo, deve-se lembrar que as substâncias psicoativas nunca existiram fora das relações sociais humanas e, portanto, seu consumo sempre correspondeu aos valores e saberes de cada época. A alteração da consciência pela ingestão de substâncias é um fenômeno fascinante e amedrontador, e para ele foram estabelecidos controles formais e informais que, de alguma forma, indicavam quem, quando, como e em que doses as diferentes drogas poderiam (e deveriam) ser consumidas. Evidentemente, esses controles só fizeram sentido devido à existência de algum nível de desvio, de diferentes níveis de desobediência.
A partir do século XX, um conjunto de plantas e substâncias foi, por diferentes motivações (religiosas, econômicas, morais etc.), considerado danoso a ponto de gerarem proibições sob a forma de lei penal, regime ao qual se convencionou chamar proibicionismo. Por escapar dos objetivos desse texto, ignorarei o processo histórico que o sustentou e o tornou hegemônico internacionalmente, com decisivo empenho norte-americano. Ressalto, no entanto, que o paradigma proibicionista ancora sua legitimidade social em duas premissas.(1) A primeira e mais fundamental é a de que determinadas substâncias são tão destrutivas social e individualmente que o Estado deve ter a prerrogativa de impedir sua produção, circulação e consumo em nome do bem comum. A segunda, legitimada pela grande potência da primeira, é a de que a melhor forma de combater os malefícios intrínsecos a essas substâncias é persegui-las, buscando eliminá-las por meio de controles penais e aplicação de força policial e/ou militar e encarcerando desobedientes. As três substâncias que, em diferentes momentos, por diferentes processos históricos, tornaram-se o tipo exemplar dessas “drogas” – já aí em sua conotação negativa e não farmacológica – foram a heroína, a cocaína e a maconha.
Há argumentos de diversas ordens que denunciam o equívoco autoritário e danoso de ambas as premissas. O principal deles é que se trata de uma intrusão indevida do Estado sobre os corpos de indivíduos adultos, perseguindo-os por praticar ação cujo dano maior, quando ocorre, é autolesivo. Deter-me-ei, no entanto, nas consequências negativas da segunda premissa, aquela que deposita no combate penal às drogas a atuação do Estado na questão.
Primeiramente, quando traz para o campo do Direito Penal uma lista de substâncias, criminalizando-as, o paradigma proibicionista pressupõe impor seu desaparecimento. Logrou-se solucionar o problema em vez de enfrentá-lo, produzindo, assim, fértil campo de atuação para um mercado ilícito espetacularmente lucrativo e poderoso. Em países desiguais e violentos como o Brasil, a atuação do tráfico de drogas é um dos dinamizadores principais de redes criminosas organizadas com grande capacidade corruptiva de agentes públicos. Além da violência inerente à regulação desse mercado e de seus confrontos permanentes com a polícia – o encarceramento por tráfico de drogas é o que mais cresce no país, proporção ainda mais dramática com relação às mulheres, crianças e adolescentes. Tanto os encarcerados como as vítimas preferenciais dos crimes violentos relacionados às drogas são majoritariamente as populações mais vulneráveis (jovens, pobres, não brancos), mas as repercussões sociais negativas são generalizadas.
Se o objetivo da criminalização é evitar os danos e o abuso das drogas tornadas ilícitas, é possível encontrar impactos positivos nesse sentido? Antes de tudo, há grande acúmulo de trabalhos produzidos no âmbito das ciências sociais que, desde a metade final do século XX, demonstram a inexistência de um “mundo das drogas” que reuniria, de forma homogênea, os consumidores dessas substâncias. Não há razão objetiva para separar as substâncias psicoativas lícitas das ilícitas a não ser pelo próprio estatuto jurídico a elas atribuído. Classificar sob a pecha de “mundo das drogas” substâncias e padrões de consumo tão diversos é tão impreciso sociologicamente como tratar todos os fenômenos referentes à sexualidade como “mundo do sexo”.
Sob essa plataforma homogeneizadora, os controles formais tomaram a forma principal de lei penal e enfraqueceram controles sociais informais. Para se compreender mais profundamente esses controles, deve-se ter em conta que o fenômeno do consumo de drogas é construído a partir da intersecção de três esferas simultâneas: a especificidade da(s) substância(s) consumida(s), o contexto sociocultural no qual o consumo ocorre e as peculiaridades biográficas e comportamentais do consumidor. Trata-se de um esquema exclusivamente analítico, posto que todas essas esferas não podem ser apartadas em seu registro empírico.
Independentemente de seu contexto, o consumo de substâncias psicoativas é uma ação com diferentes níveis potenciais de dano aos indivíduos. Esses danos podem ser de natureza estritamente fisiológica de curto, médio e longo prazo; podem ser resultado de intoxicação acidental – overdose – ou de acidentes indiretos, como os que ocorrem na condução de veículos ou máquinas, ou na potencialização de práticas violentas. Ou, ainda, no mais característico dos males associados às substâncias psicoativas, pode engendrar relação de dependência severa. Mas, não devemos esquecer, não são apenas danos e dependências que caracterizam o consumo de substâncias psicoativas. Pelo contrário, na maioria das vezes ele se apresenta de forma socialmente integrada – porque ajustada aos controles informais – e associada ao prazer, ao alívio, à terapia, à suspensão da vida ordinária, enfim, a um conjunto de atributos que são considerados positivos para os indivíduos e grupos que o praticam.
O paradigma proibicionista delegou ao Estado o controle formal mais violento, o de tipo penal, para que esse se sobrepusesse aos controles de tipo informal, moldando-os a sua imagem e semelhança. Em outras palavras, os controles informais emularam, ao longo de um século de criminalização, os equívocos do controle formal, potencializando os danos na intricada relação sujeitos-substâncias-contextos.
Quando elege um conjunto de substâncias a serem proscritas, o paradigma proibicionista localiza os danos de todas elas a partir de uma lógica dicotômica: pode ou não pode, essa substância faz bem ou faz mal, tal droga encadeia ou não riscos e assim sucessivamente. Dessa maneira, a divisão das substâncias psicoativas sob dois rótulos – proibidas e permitidas – ignora características e padrões de uso e de riscos muito diversos. Por exemplo, substâncias cuja toxicidade implicam risco considerável de acidentes fatais, como a heroína e a cocaína, compartilham o mesmo estatuto jurídico com a maconha e o LSD, drogas cujo risco de overdose praticamente inexiste. Ao mesmo tempo, substâncias psicoativas legais de uso livre, como o álcool, ou prescritas como medicamentos, como calmantes e estimulantes, têm seu consumo naturalizado e, em muitos casos, excessivamente estimulado.
Há outras consequências da ilegalidade de substâncias. Sem controle algum sobre níveis de concentração e a de qualidade, potencializam-se riscos e padrões abusivos de consumo. Boa parte dos acidentes envolvendo o consumo de drogas como cocaína, ecstasy e heroína são resultado do descontrole sobre seu mercado. A criminalização também constitui obstáculo importante para que se opte por um consumo mais parcimonioso, já que dificulta a valorização de outros aspectos relevantes dessas substâncias – cheiro, gosto, aparência, raridade etc. – como ocorre com o tabaco e o álcool.(2) Além disso, mercados à margem de qualquer regulamentação seguem a regra do lucro e da sobrevivência, distanciados de qualquer regulação de interesse social mais amplo. O caso da coca é um exemplo interessante: na forma de folhas secas, são milenarmente mascadas com baixo potencial de abuso ou danos. Refinada, a cocaína para aspirar ou injetar assume um formato mais intenso e potencialmente arriscado. Mas, para baixar o custo e maximizar vendas, foi transformada em produto fumável, o crack, uma droga de efeitos efêmeros e intensos que estimulam um padrão de consumo desmensurado e abusivo.
Outro impacto negativo do proibicionismo nos controles informais foi alocar nas características bioquímicas das substâncias o protagonismo quase exclusivo na geração de problemas decorrentes do seu consumo. Dessa forma, os indivíduos e a sociedade se postam como incapazes de construir relações positivas e menos danosas com as substâncias, enfraquecendo sua autonomia diante dos controles heteronômicos de tipo formal (“isso o Estado permite que você use, isso não”). Evidentemente, os controles sociais informais não deixam de existir sob a criminalização. Ao contrário, dado que a proibição é um fracasso no seu objetivo de tornar as drogas menos disponíveis(3) e se limita a criminalizar o seu consumo, são os controles formais de diversas ordens os que, de fato, são efetivos. Trata-se de conjunto amplo de práticas, valores e regras, cujos limites transcendem a esfera pontual do consumo de substâncias psicoativas. Incluem-se nesses controles saberes que são aprendidos e compartilhados, por exemplo, entre usuários de maconha, desde mecanismos para potencializar e reconhecer efeitos positivos, até esquemas mais seguros para obtenção da erva,(4) bem como valorações de fundo moral que normatizam comportamentos esperados ou evitados socialmente. Pode-se buscar emprego aparentando estar sob efeito de substância psicoativa? Existe compatibilidade entre determinadas moralidades religiosas e a busca por recreação por meio da alteração química da consciência? Ou, ainda, num contexto em que o gozo imediato e o aproveitamento prazeroso da vida são valores fundamentais, o consumo de drogas não estaria predisposto assumir um caráter compulsivo? Questões como essas indicam que há amplo feixe de valores e regras que atuam na construção que os indivíduos, singulares em suas motivações e escolhas, estabelecem com as substâncias. A lei penal é incapaz de acompanhar tal complexidade. A maconha, droga ilícita de uso disseminado, é pouco associada a padrões de dependência severa, inexistindo a possibilidade de overdoses. No entanto, os danos potenciais de seu consumo recreativo, que não são poucos, ou os seus já demonstrados benefícios terapêuticos ficam em segundo plano com a criminalização, pois, objetivamente, o dano mais grave que acomete seus consumidores é ser surpreendido por autoridades policiais ou estar em contato com circuitos criminosos. Mas isso não significa que o Estado deva abrir mão dos controles formais. Quando alicerçadas numa perspectiva realista que não subestima o papel das escolhas e dos controles informais, o Estado pode, por meio dos controles formais, ter um papel efetivo na prevenção e minimização de danos, como o bem sucedido caso do tabaco sinaliza. Quando intenta prevenir e minimizar danos e não impedir sua existência, os controles formais do Estado tem muito mais chance alcançarem seus objetivos.
Na medida em que busquei apontar neste artigo como a criminalização imposta pelo paradigma proibicionista oblitera controles informais que são historicamente os mais efetivos para prevenção do abuso e dos danos potenciais das substâncias psicoativas, encerro-o com duas ressalvas importantes. A primeira é que os controles informais são sustentados por valores diversos, por vezes contraditórios. Num exemplo palpável, são controles sociais informais tanto técnicas compartilhadas por consumidores entusiastas da alteração de consciência para minimizar danos quanto a propagação de dogmas religiosos que pregam a abstinência como única opção correta. Não necessariamente, elas reproduzem valores que nos agradam, mas, sociologicamente, não podemos ignorar seus papéis. A chave, aqui, é que elas convivam democraticamente sem colonizar o Estado e, assim, impor, por meio das sanções penais, que haja uma forma possível de se relacionar com as substâncias psicoativas. A segunda consideração diz respeito ao alcance da eficácia de controles informais. Evidentemente, eles não foram e não serão capazes de impedir que pessoas tenham problemas e sofram danos pelo consumo de drogas, pelo fato de que não há algum controle capaz de fazê-lo numa sociedade não totalitária. Ao debater seriamente as alternativas ao paradigma proibicionista, nos distanciamos da inalcançável e autoritária promessa de “resolver” a questão das drogas, promessa cuja adoção, pela maioria dos países, resultou em danos muito mais graves do que as drogas podem produzir.
Notas:
(1) Para discussão aprofundada das duas premissas do paradigma proibicionista, ver: Fiore, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Revista Novos Estudos Cebrap, n. 92, mar. 2012.
(2) A valorização das substâncias psicoativas para além de seus efeitos psicoativos, como ocorre com algumas bebidas alcoólicas é um potencializador de padrões menos nocivos de consumo.
(3) De acordo com levantamento do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), de 2005, cerca de 2/3 da população brasileira considera fácil obter drogas ilícitas.
(4) Há inúmeros trabalhos sobre o tema, mas, para um estudo clássico, ver: Becker, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Publicado originalmente em: FIORE, Maurício. A criminalização como obstáculo aos controles sociais do consumo de substâncias psicoativas. Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, Ed. Especial, p. 20-22, out., 2012.
Maurício Fiore é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip).
Antropólogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário