O papel do Sistema de Justiça na construção do Estado Penal
Rubens R R Casara[1]
Com a “era de ouro”[2] do capitalismo, que se seguiu ao fim da 2ª Guerra Mundial, diante do crescimento expressivo da riqueza produzida, criou-se a expectativa da redução das desigualdades. A derrota do nazismo e a reflexão sobre as conseqüências da Segunda Guerra Mundial pareciam apontar à condenação do pensamento autoritário, sobretudo o que se manifestava através do poder de castigar e exterminar. Havia relativo consenso de que a produção de dor pelo Estado havia chegado ao auge com o Nazismo e que o declínio dos modelos autoritários seria iminente. Instaurou-se um tempo de otimismo, no qual se apostava em uma sensível diminuição dos conflitos a tornar cada vez mais próximo o momento em que se daria a repartição, distribuição e retribuição do gozo[3].
A terceira revolução tecnológica, com o avassalador domínio da técnica, ao produzir a promessa de submissão da natureza aos desejos do homem, gerou a crença no aumento da produção, com a diminuição das jornadas de trabalho e a valorização do homem. Anunciava-se uma sociedade inclusiva. Não por acaso, entre os teóricos do sistema penal festejava-se o declínio da prisão. O encarceramento, tanto como pena quanto como medida assecuratória da persecução penal, era vista “como uma instituição em declínio inevitável, destinada a ser substituída em médio prazo por instrumentos de controle social mais difusos, discretos e diversificados”.[4] Todavia, esse prognóstico revelou-se completamente equivocado.
O otimismo, gerado com a derrota das forças que encarnavam o ideal autoritário/fascista, durou pouco. Com o pós-guerra também se deu o alargamento da sociedade de consumo e o correlato processo de uniformização e negação das diferenças. Já nesse momento, ai diferente reservou-se o papel de inimigo.
A revolução tecnológica, longe de libertar, levou à submissão do homem, que perdeu importância na cadeia produtiva. Como percebeu Marildo Menegat, “com o emprego maciço de novas tecnologias, (...), o trabalho vai-se tornando um momento residual da produção”. [5] Desapareceu a ilusão do pleno emprego. Paradoxalmente, com a intensificação da produção (e das necessidades, artificialmente construídas, de consumo), formou-se uma multidão de desempregados, de indivíduos indesejáveis, pois não só deixaram de interessa à produção como também se tornaram despidos de poder de consumo.
Em pouco tempo, o projeto de uma sociedade inclusiva deu lugar à uma sociedade excludente.[6] Em substituição ao Estado Social, que se tentava construir a partir de pressões populares, percebe-se a erupção do Estado Penal,[7] forma de conter os indesejáveis e manter as estruturas sociais. Diante desse quadro, a partir da década de sessenta, em especial na segunda metade da década de setenta, a prisão se revitaliza, mantendo-se como o principal instrumento de política criminal.
Fundada em uma tradição autoritária, que acredita no uso da força como resposta aos mais variados problemas sociais, fez-se uma clara opção pela prisão como principal forma de contenção da população indesejada. Vale lembrar que a privação da liberdade, como todas as formas de punição, é um dado histórico, uma construção ligada aos valores culturais do Estado que a emprega.[8]
No Brasil, pais de capitalismo tardio e de tantas promessas de bem-estar descumpridas, o problema do encarceramento em massa da população assume ares ainda mais dramáticos (sem exagero, costuma-se apontar as prisões tupiniquins como novos gulags). Ao lado das políticas assistencialistas (Bolsa-Escola, Bolsa-Família, etc.), o encarceramento em massa da população pobre aparece como uma das principais estratégias de contenção da multidão de brasileiros que não detém poder de consumo.[9]
Nesse contexto, qual é o papel do sistema de justiça criminal?
Por sistema de justiça criminal entende-se o conjunto de instituições, agências (oficiais ou não), textos legais, atores e práticas que tratam do poder penal, do poder de punir pessoas criminalizadas. Percebe-se, pois, que esse sistema existe em razão da possibilidade do Estado impor sofrimento, ainda que legítimo. A partir de uma cultura democrática, o sistema de justiça criminal direciona-se à limitação do poder e à garantia contra a opressão tanto do Estado quanto do particular. A democraticidade, a atuar como princípio unificador do sistema, levaria ao controle do exercício do poder penal. [10]
Entretanto, não é isso que acontece. Diante da ausência de políticas públicas que assegurem o direito à vida digna, para além do discurso oficial de verniz democrático, a funcionalidade real do sistema de justiça criminal é a de potencializar o poder de punir e, dessa forma, alimentar o Estado Penal. Esse quadro leva à negação do Estado de Direito, uma vez que as leis e o Poder Judiciário deixam de atuar como limites/interdição ao arbítrio.
Note-se que a tradição autoritária, em que os diversos intérpretes (policiais, promotores, juízes, legisladores, administradores, etc.) estão inseridos, favorecem a produção de normas e a atuação voltada à ampliação do poder penal e o encarceramento em massa. Então, pode-se afirmar que o sistema de justiça criminal, em sua atuação concreta, no lugar de reafirmar direitos, sonega-os (só nega os direitos de parcela considerável da população).
E o que fazer diante desse quadro? Em princípio, só é possível superar uma tradição autoritária a partir da construção de uma cultura verdadeiramente democrática. Democracia, aqui entendida em sentido substancial, ou seja, como participação popular na tomada das decisões somada ao respeito aos direitos fundamentais. [11]
Por evidente, a formação de uma cultura democrática entre os agentes estatais que atuam no sistema de justiça passa pela necessária compreensão de que devem, em cada um de seus atos, estar atentos ao projeto constitucional de vida digna para todos. A esperança, portanto, reside no elemento humano do sistema. Para compreender a forma como atua, assumir a respectiva parcela de responsabilidade pela política de encarceramento e romper com esse estado de coisas, o agente estatal que integra o sistema de justiça criminal deve, antes de tudo, se interpretar, isto é, buscar desvelar preconceitos, pré-compreensões e pulsões que o levam a naturalizar o fato de colocar dentro de jaulas outros seres humanos.
[1] Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutor em Direito pela UNESA, Mestre em Ciências Penais pela UCAM, Professor de Processo Penal do IBMEC-RJ e Membro da Associação Juízes para a Democracia, do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia e do Corpo Freudiano – Seção Rio de Janeiro.
[2] Cf. HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX; trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[3] Segundo Lacan, a essência do direito está em “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (LACAN, Jaques. O seminário, livro 20: mais, ainda; trad. MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 11).
[4] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos; trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 171.
[5] MENEGAT, Marildo. O Olho da barbárie. São Paulo: Expressão popular, 2006, p. 89-90.
[6] Nesse sentido: YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
[7] Sobre o Estado Penal, por todos: WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos; trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[8] As concepções de “disciplina” e “tempo”, imprescindíveis à ideia de privação de liberdade como pena proporcional ao delito, são construções burguesas. Não por acaso, costuma-se apontar que a prisão, como principal resposta às condutas etiquetadas como criminosas, nasce no período mercantilista e universaliza-se com o iluminismo (nesse sentido: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004).
[9] Nilo Batista faz coro com Loïc Wacquant para apontar as prisões como “verdadeiros planos habitacionais para a miséria” (http://www.anovademocracia.com.br/no-27/570-penitenciarias-e-estado-criminoso).
[10] Nesse sentido: MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2010.
[11] Nesse sentido: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do garantismo jurídico. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.