quarta-feira, 31 de julho de 2013

Os outros somos nós: um texto de Ricardo André.


OS OUTROS SOMOS NÓS
Um texto de Ricardo André.

 

Nos últimos dias, inúmeros vídeos vieram a lume para questionar a atuação da polícia militar diante dos protestos que ganharam as ruas do Rio de Janeiro. Imagens que nos fazem refletir e aprofundam os questionamentos acerca da praxis da PM. Para quem atua no cotidiano forense, porém, o que se vê e lê agora não pode ser novidade.

Não pode ser novidade também o habitual aplauso íntimo de um respeitável público anestesiado e infenso ao modus operandi de nossa polícia ostensiva. Isto porque tal público, notadamente, não é alvo regular do controle social imanente à política criminal e, mesmo quando ocupa excepcionalmente a posição de alvo excepcional desse controle, conta ainda com o "privilégio"[1] das armas “não letais”. A culpa não é dos policiais militares. Aliás, é inútil procurar culpados quando a violência e o ódio estão impregnados em nosso caldo cultural e político.[2]

Em “condições normais de temperatura e pressão”, a forma de atuar da PM, em geral (generalizações são sempre perigosas, mas delas vive o homem em sua "irresistível atração pelo Um"
[3]), é cotidianamente premiada[4] pelos agentes do sistema de justiça. Este sistema – a partir do primeiro personagem com reconhecido conhecimento jurídico (o bacharel-delegado) – anda  preocupado em demasia com a manutenção da ordem; preocupado em aplacar a "sensação de impunidade" e, enfim, na promoção da segurança pública.

Parece-nos claro que a ideia é apostar fichas no poder punitivo mantendo sobreviva a ideia de um direito penal como prima ratio[5]. Para tanto, lançam-se os manifestantes, ainda quentes, na forma do inimigos da (outra) vez: vândalos. Forma forjada no recorte midiático de retransmissão massiva. A partir da sedimentação desse padronizado viés, a própria noção de justiça é, ela mesma, questionada quando se trata de limitar o poder punitivo.

Avancemos. Por que não? Por que não abandonar a heurística do medo e apostar na recuperação do desejo de liberdade[6]?

Continuaremos reféns do arbítrio enquanto os personagens do sistema de justiça não se derem conta de que sua missão histórica é o de contenção do poder punitivo; o de fomentar o desencantamento diante do fetiche prisional; enfim, nossa missão não é outra senão a de proteção intransigente das garantias constitucionais e legais.

Se o sistema de justiça é estruturado entre instituições cuja interação é frouxamente ajustada[7], isto é, em que há uma lacuna no diálogo que se trava entre: i) a PM e o suspeito; ii) a PM e a Polícia Civil; iii) a Polícia Civil e o Ministério Público e; iv) o MP e o Poder Judiciário, temos de preencher essa lacuna (esse gap interinstitucional) com o ideário das garantias, ainda que para isso tenhamos que sublinhar a desconfiança entre os mencionados agentes desse sistema.
Ninguém está dizendo que é ou que será fácil.

Essa lacuna vem sendo preenchida pelo piloto automático da “segurança em detrimento da liberdade”. Parece-nos urgente a surreição de um giro ideológico[8] pelo qual os agentes do sistema de justiça – nos limites de suas atribuições e práticas cotidianas – passem a se enxergar [não mais como agentes de segurança pública com pedigree, mas] como corresponsáveis na missão de impor limites ao poder punitivo. Sem isso, o estado policial tende a se exponencializar de maneira irresistível.

Tenhamos consciência de que a demanda repressiva repousa nos corações e mentes de um estrato social (será só a classe média?) responsável por gratinar o empadão ideológico impingido por uma minoria próspera. Uma massa populacional - muito em função da programação midiática - costuma não vacilar quando se trata de demandar mais penas, mais prisões, menos garantias e menos liberdade aos outros. Aos outros.

Dado que os agentes do sistema de justiça atuam no orbital de um Poder que, por definição deve ser contramajoritário, a tarefa, além de urgente e necessária, se nos apresenta como cotidiana e pedagógica. Podendo ser desgastante, passa por uma transformação interna e externa em relação com o nosso “corpus de trabalho. Num cenário verdadeiramente republicano, tal postura pode se revelar inquietante e perturbadora de convicções e crenças mais ou menos nítidas (a depender do polo em que estão situados os agentes desse sistema de justiça). Nada obstante, tem de ser fomentada e exercitada. E deve contagiar não apenas os agentes do sistema de justiça. Mas a todos. Simplesmente porque "os outros", insiste a história, somos mesmo todos nós.




[1] “Que não se estabeleçam privilégios em leis.” (privilegia ne inrogantur)  já dizia a Lei das XII Tábuas desde  o ano 450 antes de Cristo. Mas o que fazer quando o privilégio – embora não declarado na lei – ainda assim subsiste como política criminal?
[2] Posta a discussão nesta órbita, periga pender o paradigma para a difusão da munição quente, quando o que se pretende é o seu exato oposto.
[3] CITADINO, GISELE. A "Irresistível Atração pelo Um" no Pensamento de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hume e Burke In  Desordem e Processo - Estudos em Homenagem ao Prof. Roberto Lyra Filho.
[4] Conferir NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Justiça Premiadora (§105)
[5] Eis aí outra inversão de polaridade da ciência penal como ultima ratio; a ideologia do cotidiano permite que atue sob a forma de seu exato oposto.
[6] KARAM, Maria Lúcia. Recuperar o Desejo da Liberdade e Conter o Poder Punitivo.
[7] VARGAS, Joana Domingues; RODRIGUES, Juliana Neves Lopes. Controle e cerimônia: o inquérito policial em um sistema de justiça criminal frouxamente ajustado. Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 1, Apr. 2011
[8] Bem compreendido, o giro proposto constitui a negação da negação. Posta a questão em superficial hegelianês, a afirmação de que o direito penal constitui a ultima ratio é negada pela política [com ênfase] criminal (prima ratio). A recuperação do desejo de liberdade passa, então, pela negação da negação, no que se traduz no giro ideológico ventilado. 

domingo, 28 de julho de 2013

Mandela. Um texto de Cristina Buarque.

MANDELA
 
 
Um texto de Cristina Buarque de Hollanda
 
 
Nelson foi como a professora da escola primária decidiu chamá-lo, aos sete anos de idade. Crianças negras recebiam nomes de brancos, mais civilizados. Antes do novo batismo, chamava-se Rolihlahla. Numa tradução aproximada: “criador de problemas” [trouble maker].

 

Este é o relato que inicia Long Way to Freedom, a autobiografia de Mandela. Ali o leitor é conduzido da sua infância no campo, num povoado em Transkei, à eleição presidencial de 1994, a primeira que levou os negros às urnas e um negro ao poder na África do Sul.

 

A narrativa de Mandela sobre si tem uma coisa qualquer de Michael K, o personagem de Coetzee que persiste na existência, a despeito das experiências reiteradas de subjugação. Há nele, K, uma teimosia essencial. Mesmo quando submetido, persevera: a condição de dominado não esmorece seu sentido de dignidade pessoal.

 

Na biografia de Mandela, que pode inspirar tantos ângulos de observação, a obstinação por uma vida digna, sua e do seu povo, é justamente a pulsão que dá sentido ao todo. Quando cumpria pena de cinco anos por viagem ilegal e organização de stayaway, em maio de 1961, Mandela foi transferido da Pretoria Prison para Robben Island. Na travessia para a ilha, acorrentado com outros presos políticos no porão da embarcação, recebia a luz do dia por pequenas janelas, de onde também chovia urina dos guardas de plantão. Encharcados e expostos ao frio do inverno sul-africano, em shorts e camiseta, chegaram à nova prisão. Na entrada, guardas brancos davam ordens para que corressem. Não havia razão aparente para isso, além do gozo de exercer autoridade sobre quem não está em condições de resistir a ela. Confrontado por seus novos algozes, Mandela sussurrou para Tefu, colega de infortúnio: “precisamos estabelecer um exemplo. Se desistirmos agora, estaremos sempre submetidos aos seus caprichos”. Tefu concordou e os dois seguiram o percurso a passos lentos. Provocaram a fúria dos guardas. Um deles bradou: “nós vamos matar vocês e ninguém nunca saberá o que aconteceu”. Ainda assim, resistiram e seguiram no ritmo anterior. Foram conduzidos a um quarto preenchido com alguns centímetros de água e obrigados a despir-se.

 

Antes que fosse atingido por um soco de Gericke, o capitão a cargo da situação, Mandela disse da maneira mais firme que pôde: “se você encostar a mão em mim, eu vou te levar para a maior corte na terra e vou acabar com você. Você vai ser tão pobre quanto um rato de igreja.” Surpreso, o capitão indagou: “você sabe o que significa servir cinco anos?” Mandela retrucou: “estou pronto para servir cinco anos, mas não para ser intimidado. Você deve agir dentro da lei”. Gericke deixou o quarto alagado sem consumar a agressão.

 

Tal como K, Mandela afirma sua condição de sujeito, mesmo sob domínio. À diferença de K, não se isola na sua individualidade. Seu sentido de dignidade, rígido e alheio às circunstâncias, extrapola o indivíduo e abrange a espécie humana. Como se sabe, foram os negros, violentamente segregados pelo regime do apartheid, a inspiração da luta de Mandela antes e durante os anos de cárcere. Extintas as condições formais de reprodução do infortúnio negro (e também indiano e mulato), as fronteiras da sua práxis política dilataram-se. Os sul-africanos em geral, independente das suas origens, foram incluídos nela. Vinte e seis anos de prisão e maus tratos não deixaram lastro de ressentimento no seu fazer político. Sua história pessoal de sacrifício não inibiu a experiência afetiva da empatia, que é o fundamento moral dos direitos humanos na época moderna. Muito pelo contrário. Mandela não experimentou a empatia apenas como afeto individual, mas buscou formas de tradução política e institucional para ela – com acertos e equívocos, é certo.

 

A Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana foi a expressão síntese deste experimento da empatia como prática política. Chamadas a sessões públicas em todo país, transmitidas em rede nacional de rádio e televisão, as vítimas do regime narravam suas histórias. O objetivo da comissão era expor todos os sul-africanos ao desafio de colocar-se no lugar do outro, sofrer o sofrimento alheio, gozar o gozo alheio e, enfim, reconhecer o outro como sujeito igual. Esta seria a condição de um novo tempo da política no país.

 

Há inúmeras razões que fazem de Mandela um dos personagens mais notáveis do século XX. Uma delas foi a teimosa com que afirmou a dignidade de si e do seu povo.
 

 

Heil? Um texto de Marcos Peixoto.


HEIL?
 
Um texto de Marcos Peixoto
 

O Führer, por diversas vezes, deixou clara a sua vontade.

E a vontade do Führer era lei.

Assim, por diversas vezes deixou claro seu intuito de recrudescer o combate aos “inimigos”.

E bastou isso para que seus comandados passassem a atuar, à margem da moralidade, com crueldade e desumanidade muitas vezes, mas dentro da nova “legalidade” instaurada pela vontade do Führer.

Não precisava sequer o Führer ordenar: seus asseclas agiam de forma automática, executando sua vontade.

E assim foram feitas invasões, desapropriações, desocupações forçadas, deslocamentos de cidadãos de seus lares para regiões remotas, recolhimentos de mendigos e drogaditos, assassinatos em massa pela polícia oficial, sequestros e desaparecimentos de “inimigos” pela polícia oficial, prisões de jornalistas oponentes pela polícia oficial, torturas, criações de guetos...

Tudo em nome da vontade do Führer.

A grave questão, é que não estou a falar da Alemanha nazista: Heil, .....................?

P.S.: Este é um texto interativo. Complete o sublinhado com o primeiro nome que vier à sua mente, e verás como tudo se encaixa.