OS OUTROS SOMOS NÓS
Um texto de Ricardo André.
Nos últimos dias, inúmeros vídeos vieram a lume para
questionar a atuação da polícia militar diante dos protestos que ganharam as
ruas do Rio de Janeiro. Imagens que nos fazem refletir e aprofundam os
questionamentos acerca da praxis da PM. Para quem atua no cotidiano
forense, porém, o que se vê e lê agora não pode ser novidade.
Não pode ser novidade também o habitual aplauso íntimo de um
respeitável público anestesiado e infenso ao modus operandi de nossa
polícia ostensiva. Isto porque tal público, notadamente, não é alvo regular
do controle social imanente à política criminal e, mesmo quando ocupa
excepcionalmente a posição de alvo excepcional desse controle, conta
ainda com o "privilégio"[1] das armas “não letais”. A culpa não
é dos policiais militares. Aliás, é inútil procurar culpados quando a violência
e o ódio estão impregnados em nosso caldo cultural e político.[2]
Em “condições normais de temperatura e pressão”, a forma de atuar da PM, em geral (generalizações são sempre perigosas, mas delas vive o homem em sua "irresistível atração pelo Um"[3]), é cotidianamente premiada[4] pelos agentes do sistema de justiça. Este sistema – a partir do primeiro personagem com reconhecido conhecimento jurídico (o bacharel-delegado) – anda preocupado em demasia com a manutenção da ordem; preocupado em aplacar a "sensação de impunidade" e, enfim, na promoção da segurança pública.
Parece-nos claro que a ideia é apostar fichas no poder punitivo mantendo sobreviva a ideia de um direito penal como prima ratio[5]. Para tanto, lançam-se os manifestantes, ainda quentes, na forma do inimigos da (outra) vez: vândalos. Forma forjada no recorte midiático de retransmissão massiva. A partir da sedimentação desse padronizado viés, a própria noção de justiça é, ela mesma, questionada quando se trata de limitar o poder punitivo.
Em “condições normais de temperatura e pressão”, a forma de atuar da PM, em geral (generalizações são sempre perigosas, mas delas vive o homem em sua "irresistível atração pelo Um"[3]), é cotidianamente premiada[4] pelos agentes do sistema de justiça. Este sistema – a partir do primeiro personagem com reconhecido conhecimento jurídico (o bacharel-delegado) – anda preocupado em demasia com a manutenção da ordem; preocupado em aplacar a "sensação de impunidade" e, enfim, na promoção da segurança pública.
Parece-nos claro que a ideia é apostar fichas no poder punitivo mantendo sobreviva a ideia de um direito penal como prima ratio[5]. Para tanto, lançam-se os manifestantes, ainda quentes, na forma do inimigos da (outra) vez: vândalos. Forma forjada no recorte midiático de retransmissão massiva. A partir da sedimentação desse padronizado viés, a própria noção de justiça é, ela mesma, questionada quando se trata de limitar o poder punitivo.
Avancemos. Por que não? Por que não abandonar a heurística do
medo e apostar na recuperação do desejo de liberdade[6]?
Continuaremos reféns do arbítrio enquanto os personagens do
sistema de justiça não se derem conta de que sua missão histórica é o de
contenção do poder punitivo; o de fomentar o desencantamento diante do fetiche
prisional; enfim, nossa missão não é outra senão a de proteção intransigente
das garantias constitucionais e legais.
Se o sistema de justiça é estruturado entre instituições cuja
interação é frouxamente ajustada[7],
isto é, em que há uma lacuna no diálogo que se trava entre: i) a PM e o
suspeito; ii) a PM e a Polícia Civil; iii) a Polícia Civil e o Ministério Público
e; iv) o MP e o Poder Judiciário, temos de preencher essa lacuna (esse gap interinstitucional) com o ideário
das garantias, ainda que para isso tenhamos que sublinhar a desconfiança entre os
mencionados agentes desse sistema.
Ninguém está dizendo que é ou que será fácil.
Ninguém está dizendo que é ou que será fácil.
Essa lacuna vem sendo preenchida pelo piloto automático da “segurança
em detrimento da liberdade”. Parece-nos urgente a surreição de um giro ideológico[8]
pelo qual os agentes do sistema de justiça – nos limites de suas atribuições e
práticas cotidianas – passem a se enxergar [não mais como agentes de segurança
pública com pedigree, mas] como corresponsáveis
na missão de impor limites ao poder punitivo. Sem isso, o estado policial tende
a se exponencializar de maneira irresistível.
Tenhamos consciência de que a demanda repressiva repousa nos
corações e mentes de um estrato social (será só a classe média?) responsável
por gratinar o empadão ideológico impingido por uma minoria próspera. Uma massa
populacional - muito em função da programação midiática - costuma não vacilar
quando se trata de demandar mais penas, mais prisões, menos garantias e menos
liberdade aos outros. Aos outros.
Dado que os agentes do sistema de justiça atuam no orbital de um Poder que, por definição deve ser contramajoritário, a tarefa, além de urgente e necessária, se nos apresenta como cotidiana e pedagógica. Podendo ser desgastante, passa por uma transformação interna e externa em relação com o nosso “corpus” de trabalho. Num cenário verdadeiramente republicano, tal postura pode se revelar inquietante e perturbadora de convicções e crenças mais ou menos nítidas (a depender do polo em que estão situados os agentes desse sistema de justiça). Nada obstante, tem de ser fomentada e exercitada. E deve contagiar não apenas os agentes do sistema de justiça. Mas a todos. Simplesmente porque "os outros", insiste a história, somos mesmo todos nós.
Dado que os agentes do sistema de justiça atuam no orbital de um Poder que, por definição deve ser contramajoritário, a tarefa, além de urgente e necessária, se nos apresenta como cotidiana e pedagógica. Podendo ser desgastante, passa por uma transformação interna e externa em relação com o nosso “corpus” de trabalho. Num cenário verdadeiramente republicano, tal postura pode se revelar inquietante e perturbadora de convicções e crenças mais ou menos nítidas (a depender do polo em que estão situados os agentes desse sistema de justiça). Nada obstante, tem de ser fomentada e exercitada. E deve contagiar não apenas os agentes do sistema de justiça. Mas a todos. Simplesmente porque "os outros", insiste a história, somos mesmo todos nós.
[1]
“Que não se estabeleçam privilégios em leis.” (privilegia ne inrogantur) já
dizia a Lei das XII Tábuas desde o ano
450 antes de Cristo. Mas o que fazer quando o privilégio – embora não declarado
na lei – ainda assim subsiste como política criminal?
[2]
Posta a discussão nesta órbita, periga pender o paradigma para a difusão da
munição quente, quando o que se pretende é o seu exato oposto.
[3]
CITADINO, GISELE. A "Irresistível Atração pelo Um" no Pensamento de
Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hume e Burke In Desordem e Processo -
Estudos em Homenagem ao Prof. Roberto Lyra Filho.
[4] Conferir
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Justiça Premiadora (§105)
[5]
Eis aí outra inversão de polaridade da ciência penal como ultima ratio; a ideologia do cotidiano permite que atue sob a forma
de seu exato oposto.
[6]
KARAM, Maria Lúcia. Recuperar o Desejo da Liberdade e Conter o Poder Punitivo.
[7] VARGAS, Joana
Domingues; RODRIGUES, Juliana Neves Lopes. Controle e cerimônia: o inquérito
policial em um sistema de justiça criminal frouxamente ajustado. Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 1,
Apr. 2011
[8]
Bem compreendido, o giro proposto constitui a negação da negação. Posta a
questão em superficial hegelianês, a afirmação
de que o direito penal constitui a ultima
ratio é negada pela política [com
ênfase] criminal (prima ratio). A
recuperação do desejo de liberdade passa, então, pela negação da negação, no
que se traduz no giro ideológico ventilado.
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