MANDELA
Um texto de Cristina Buarque de Hollanda
Nelson foi como a professora da escola primária decidiu
chamá-lo, aos sete anos de idade. Crianças negras recebiam nomes de brancos,
mais civilizados. Antes do novo batismo, chamava-se Rolihlahla. Numa tradução
aproximada: “criador de problemas” [trouble
maker].
Este é o relato que inicia Long Way to Freedom, a autobiografia de Mandela. Ali o leitor é
conduzido da sua infância no campo, num povoado em Transkei, à eleição
presidencial de 1994, a primeira que levou os negros às urnas e um negro ao
poder na África do Sul.
A narrativa de Mandela sobre si tem uma coisa qualquer de
Michael K, o personagem de Coetzee que persiste na existência, a despeito das
experiências reiteradas de subjugação. Há nele, K, uma teimosia essencial.
Mesmo quando submetido, persevera: a condição de dominado não esmorece seu
sentido de dignidade pessoal.
Na biografia de Mandela, que pode inspirar tantos ângulos de
observação, a obstinação por uma vida digna, sua e do seu povo, é justamente a
pulsão que dá sentido ao todo. Quando cumpria pena de cinco anos por viagem
ilegal e organização de stayaway, em
maio de 1961, Mandela foi transferido da Pretoria
Prison para Robben Island. Na
travessia para a ilha, acorrentado com outros presos políticos no porão da
embarcação, recebia a luz do dia por pequenas janelas, de onde também chovia
urina dos guardas de plantão. Encharcados e expostos ao frio do inverno
sul-africano, em shorts e camiseta, chegaram à nova prisão. Na entrada, guardas
brancos davam ordens para que corressem. Não havia razão aparente para isso, além
do gozo de exercer autoridade sobre quem não está em condições de resistir a
ela. Confrontado por seus novos algozes, Mandela sussurrou para Tefu, colega de
infortúnio: “precisamos estabelecer um exemplo. Se desistirmos agora, estaremos
sempre submetidos aos seus caprichos”. Tefu concordou e os dois seguiram o
percurso a passos lentos. Provocaram a fúria dos guardas. Um deles bradou: “nós
vamos matar vocês e ninguém nunca saberá o que aconteceu”. Ainda assim, resistiram
e seguiram no ritmo anterior. Foram conduzidos a um quarto preenchido com
alguns centímetros de água e obrigados a despir-se.
Antes que fosse atingido por um soco de Gericke, o capitão a
cargo da situação, Mandela disse da maneira mais firme que pôde: “se você
encostar a mão em mim, eu vou te levar para a maior corte na terra e vou acabar
com você. Você vai ser tão pobre quanto um rato de igreja.” Surpreso, o capitão
indagou: “você sabe o que significa servir cinco anos?” Mandela retrucou: “estou
pronto para servir cinco anos, mas não para ser intimidado. Você deve agir
dentro da lei”. Gericke deixou o quarto alagado sem consumar a agressão.
Tal como K, Mandela afirma sua condição de sujeito, mesmo sob
domínio. À diferença de K, não se isola na sua individualidade. Seu sentido de
dignidade, rígido e alheio às circunstâncias, extrapola o indivíduo e abrange a
espécie humana. Como se sabe, foram os negros, violentamente segregados pelo
regime do apartheid, a inspiração da
luta de Mandela antes e durante os anos de cárcere. Extintas as condições formais
de reprodução do infortúnio negro (e também indiano e mulato), as fronteiras da
sua práxis política dilataram-se. Os sul-africanos
em geral, independente das suas origens, foram incluídos nela. Vinte e seis
anos de prisão e maus tratos não deixaram lastro de
ressentimento no seu fazer político. Sua história pessoal de sacrifício não inibiu
a experiência afetiva da empatia, que é o fundamento moral dos direitos humanos
na época moderna. Muito pelo contrário. Mandela não experimentou a empatia
apenas como afeto individual, mas buscou formas de tradução política e
institucional para ela – com acertos e equívocos, é certo.
A Comissão de Verdade e
Reconciliação sul-africana foi a expressão síntese deste experimento da
empatia como prática política. Chamadas a sessões públicas em todo país,
transmitidas em rede nacional de rádio e televisão, as vítimas do regime narravam
suas histórias. O objetivo da comissão era expor todos os sul-africanos ao
desafio de colocar-se no lugar do outro, sofrer o sofrimento alheio, gozar o
gozo alheio e, enfim, reconhecer o outro como sujeito igual. Esta seria a
condição de um novo tempo da política no país.
Há inúmeras razões que fazem de Mandela um dos personagens
mais notáveis do século XX. Uma delas foi a teimosa com que afirmou a dignidade
de si e do seu povo.
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