sábado, 19 de outubro de 2013

Novo Livro: TEORIA DO PROCESSO PENAL, VOL I: DOGMÁTICA E CRÍTICA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS

 
"O estudo do processo penal nunca será um exercício intelectual inocente, nem pode partir de premissas ingênuas (o processo penal, v.g., não é o locus adequado à "luta do bem contra o mal", fantasia típica da ideologia da defesa social) desassociadas da facticidade ou travestidas de tecnicismos. A sedução exercida pela técnica processual, a beleza de seus mitos e os objetivos que a dogmática tradicional costuma atribuí-lo (reforço da segurança pública, combate ao crime, punição dos criminosos, etc.) não devem produzir o esquecimento do sofrimento e da violência que o Estado é capaz de produzir através dele.

Há, no processo penal, sempre um drama: episódios de conflito e manifestações de poder, anseios de liberdade e desejos de punição.

Como todo produto humano, o direito processual penal está condicionado por uma tradição e, portanto, a visão que se pode ter dessa disciplina depende de uma pré-compreensão acerca da fé ou da descrença que o observador/estudante deposite no sistema de justiça criminal.

No Brasil, essa disciplina é gravemente afetada por um vasto repertório de elementos culturais desassociados do projeto democratizante encartado na Constituição da República de 1988, significantes que se projetam no tempo e repercutem na formação de um imaginário autoritário, de uma cultura que acredita no uso da força, em detrimento do conhecimento, como forma de solucionar os mais diversos problemas sociais. Há, em outras palavras, uma tradição autoritária que repercute na forma com que o processo penal é percebido e aplicado.

Um livro de direito processual penal tende a ser, como já enunciou Alberto Binder, um "estudo dos mecanismos que nós, seres humanos, utilizamos para prender nossos semelhantes dentro de jaulas". Porém, ainda existe a esperança de diminuir a crueldade que se manifesta no exato momento em que o processo penal deixa os livros de doutrina ou as leis processuais penais e se manifesta sobre indivíduos. Afinal, esse é o principal objetivo deste livro: contribuir para um projeto político de redução da violência, particular e estatal".
 
Nas livrarias ou através do sítio: http://www.lumenjuris.com.br/?sub=produto&id=3473.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Levante da multidão: um texto de Pilatti, Negri e Cocco.

Levante da multidão



Por Adriano Pilatti, Antônio Negri e Giuseppe Cocco



“Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”



ceara     Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
 
     Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias. Como organizar o pensamento diante dessa aceleração do tempo e dessa inovação radical? Como aproveitar as aberturas e evitar ou combater as ameaças?
     Voltemos um pouco atrás. Em 2005 lançamos dois livros no Brasil: “Multidão” e “GlobAL”. Em “Multidão” dizíamos que o trabalho passava a ser explorado fora das fábricas, sem passar pela relação salarial. Se isso implica perda de direitos pela maior fragmentação e precariedade da relação salarial, ao mesmo tempo só pode funcionar se a autonomia do trabalho aumenta e se produz e reproduz dentro e pelas redes. Ou seja, por um lado, o capital desconstrói a classe trabalhadora em um sem-número de fragmentos; pelo outro, por trás dos fragmentos, há singularidades que podem cooperar entre si e perseverar como tais.
     No capitalismo contemporâneo, a exploração é exatamente o fato dos agenciamentos subjetivos dos desejos (cognitivos, culturais, institucionais, empresariais) fixarem os “fragmentos” sem se abrir às modulações das singularidades. A multidão da qual falamos não se confunde com a definição sociológica e determinista do devir “líquido” da sociedade pós-moderna. Ao contrário, a multidão é um conceito, político e ontológico, de classe: a classe que se constitui nessa cooperação entre singularidades. Só há multidão quando ela se faz a si mesma, como ocorre neste momento no Brasil. É o contrário da massa dos fragmentos que mídia e direita querem fundir ao entoar o Hino Nacional.
     Já em “GlobAL” saudávamos a chegada dos novos governos na América do Sul (sem dedicar uma palavra à Venezuela) e, ao mesmo tempo, dizíamos que eles deveriam ter dois cuidados: primeiro, não cair na ilusão de que haveria novo modelo a ser implementado; segundo, que as oscilações entre inflação dos juros e aquelas dos preços são apenas as duas faces da falta de democracia e essa depende das dimensões biopolíticas das lutas: as lutas pela vida e da vida dos pobres, que persistem diante do terror que o Estado impõe às favelas e às periferias. O livro passou despercebido. Os intelectuais críticos ao governo teorizavam o “Estado de exceção” e aqueles próximos do PT preferiam ver em Lula a incrível reencarnação de Vargas. Depois da crise global, o governo entrou nessa de achar que o desenvolvimentismo era o novo (sic) modelo.
     Foi bem no meio dessa festa VIP que a terra tremeu. À direita, o governador de São Paulo usou a violência sem máscaras da polícia. À esquerda, o ministro da Justiça se propôs a mandar mais polícia ainda e bater mais. Quando tiveram que recuar, direita e esquerda apareceram juntas, com a diferença da cor das gravatas, para dizer que a redução do preço das passagens acarretaria o corte de outros gastos sociais. À direita e à esquerda se jogou lenha na fogueira da crise da representação, continuou-se a pensar a política do estranho ponto de vista do fisiologismo e da tecnocracia.
     Desde segunda-feira, a elite e sua mídia corporativa trocaram o alvo de suas armas e passaram a usar seu poder concentrado (antidemocrático) para tentar manipular a comoção nacional num sentido reacionário. Pudemos ouvir, na quinta-feira (dia 20) em meio à repressão de milhares de manifestantes, a ideia de usar o Congresso para aplicar ao Brasil o golpe institucional já desfechado em Honduras e no Paraguai. Mas a presidente começou a reagir, embora de maneira tardia e tímida, propondo um plebiscito e uma “constituinte”.
     Acontece que a teoria do poder constituinte e sua realidade (aquela que está abertamente nas ruas do Brasil inteiro) é uma teoria da democracia radical. Não é contra a representação, mas contra a separação dessa de sua fonte: a soberania popular. A corrupção está ali, nessa separação dos meios e dos fins, e quem se aproveita dela são aqueles que concentram os meios econômicos e a mídia, inclusive quando a condenam, de maneira moralista, apenas para aumentá-la em seu favor.
     Avaliamos positivamente, em seu conjunto, as iniciativas de Dilma, mas pensamos que a solução não passa nem por um plebiscito nem pela convocação de pactos com supostos representantes dos movimentos (aliás, sempre os mesmos “patrocinados”). O desafio é abrir um verdadeiro “processo constituinte”, ou seja, abrir a pólis à participação efetiva do “demos”, nas ruas e além – mesmo que confusa em um primeiro momento – para unir mobilização e invenção de novas institucionalidades, de novas caras. Se o governo e o PT acharem que poderão evitar essa abertura pela mobilização de supostos representantes de casas e circuitos, repetirão o mesmo erro que fez Haddad quando acreditava que existia amor em São Paulo. O poder constituinte não é nada sem a multidão que o faz viver.
 

 


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Miradas sobre a multidão: texto para a Revista da AMAERJ





Miradas sobre a Multidão

Rubens R R Casara[i]

Nos últimos meses uma série de manifestações fez com que concepções sólidas e estáveis sobre a participação popular na vida das cidades (e no controle do poder) se desmanchasse no ar. Expressões do Poder Constituinte (NEGRI, 2002)? Sintoma da crise da democracia representativa?  Rompimento com a cordialidade que servia de rótulo para o povo brasileiro? Resistência a partir da indignação (HESSEL, 2011)? Sem dúvida, algo novo em uma sociedade marcada por continuidades autoritárias. Ocorre que o novo, o desconhecido, sempre gera medo e impõe reflexão.

Neste breve texto, buscar-se-á refletir/teorizar sobre os recentes movimentos populares que reivindicam uma nova forma de relação entre a população e as autoridades constituídas. Não há movimento transformador sem uma teoria também transformadora, que dê conta de explicar o novo sem aprisionar o fenômeno em abstrações generalizantes e categorias carcomidas. A função das teorias é a de racionalizar os fenômenos e, nas democracias, sempre que possível, conter o poder. Assim, é importante encontrar uma racionalidade democrática nesses movimentos de levante popular, uma racionalidade ligada à realização dos direitos humanos, que parta daquilo que ANTONIO NEGRI e MICHAEL HARDT chamaram de “desejo de democracia” (NEGRI; HARDT, 2005, p.15), caso contrário ter-se-ia que reconhecer a ausência de legitimidade para esses manifestantes atuarem no Estado Democrático de Direito.

No período pré-golpe militar de 1964, várias manifestações populares ocorreram, com destaque para, de um lado, a chamada “Marcha dos Cem mil”, protagonizada por setores progressistas, e de outro, as “Marchas da Família, com Deus pela Liberdade”, que juntaram setores conservadores que pediam a queda do Presidente João Goulart e protestavam contra a ameaça comunista. Nos últimos meses, foi possível ver uma mobilização popular diferente: nos mesmos protestos coexistiam uma “Marcha dos Cem mil” e “Uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, progressistas e reacionários, militantes de esquerda ao lado de saudosos da ditadura. Como entender esse fenômeno?

Parece útil fazer uma leitura do que aconteceu através da categoria “multidão” trabalhada por NEGRI e HARDT (no Brasil, por GIUSEPPE COCCO e ADRIANO PILATTI). Nessa perspectiva, em primeiro lugar, cumpre distinguir o conceito de multidão (lembrando que todo conceito, por ser uma abstração, é limitador e não dá conta da integralidade do ser) de outros fenômenos que com ele guardam semelhança.

 A Multidão não se confunde com o povo. Este “é uma concepção unitária” (NEGRI; HARDT, 2005, p. 12). O conceito de povo reduz a diversidade a uma unidade, transformando a população em algo único, uma abstração identificável. A multidão, em contrapartida, é múltipla, plural, “composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única” (NEGRI; HARDT, 2005, p.12-13). Na multidão existem múltiplas culturas, múltiplas visões de mundo, múltiplos desejos (cada desejo é singular e somos seres desejantes, forjados por inúmeros desejos). Por isso, na multidão, uma pessoa de “direita” pode andar e atuar lado a lado com uma pessoa de “esquerda”.

De igual sorte, a multidão não se identifica com o conceito de “massas”. As “massas” também não podem ser reduzidas a uma unidade, são compostas por todos os tipos e espécies, mas nelas todas as diferenças são submersas. WILHELM REICH em belíssima obra, a partir de Freud, alerta para os riscos de fascistização das massas (REICH, 2001). A essência das “massas” é a indiferença: “todas as cores da população reduzem-se ao cinza” (NEGRI; HARDT, 2005, p.13), o que permite reconhecer nesse fenômeno uma tendência à intolerância e ao autoritarismo. Na multidão, as diferenças são mantidas, são explícitas e funcionam como condições para a troca constitutiva da multidão, novamente com HARDT e NEGRI, pode-se afirmar que a multidão é multicolorida (NEGRI; HARDT, 2005, p.13).

Um agrupamento de pessoas, mesmo que seja de milhares de pessoas, que rejeita parte da população, que exclui militantes de partidos políticos, visto que são percebidos como diferentes, que impede bandeiras tanto desses partidos quanto de movimentos sociais, que nega seu caráter político ou se afirma indiferente à política, enquadra-se no conceito de “massas”, mas nunca pode ser tido como uma “multidão”. Daí uma primeira questão: um movimento pode surgir como uma “multidão”, esse conceito de viés democrático, e se transformar em um movimento de “massas”, tendencialmente fascista? Ao que parece, o risco existe e impedir essa transformação dependerá da capacidade dos manifestantes, ao longo do processo, entre erros e acertos, de produzir um conhecimento e uma prática comum, um saber-poder (uma “produção biopolítica”), voltados à concretização dos direitos fundamentais (nesse sentido: NEGRI; HARDT, 2005, pp.14-15).  

O desafio, na linha indicada por NEGRI e HARDT, é fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir conjuntamente, sem se afastar do desejo de democracia. É preciso descobrir ou inventar, ao longo do movimento, a própria política, a estratégia de luta adequada à concretização de direitos e à participação na vida pública.

 Importante, também, pensar as possibilidades e limites democráticos da multidão. Notam-se, nessas manifestações, formas de organização cada vez mais democráticas, com a tendência do deslocamento da autoridade para relações colaborativas.

Mas, e os objetivos dessas manifestações?

Parece, então, que a multidão deve, a partir das diferenças internas, da multiplicidade, descobrir (na realidade, construir) um comum, uma pauta comum. Esse processo se revela por meio de um jogo constante de deslocamentos e condensações. Para além do real, que escapa à representação, os registros simbólico e imaginário assumem relevo. Por isso é importante esse dado comum (uma injustiça, um escândalo, uma provocação, etc.) que dê sentido e unifique ao movimento ao mesmo tempo em que “quebra o curso ordinário dos trabalhos e dos dias, o encadeamento monótono (...) dos calendários eleitorais” (BENSAÏD, 2013, p. 72), que rompe com um ciclo de “paixões sem verdade, verdades sem paixão, heróis sem feitos heroicos, história sem eventos” (MARX, 2011, p. 56).

A construção desse comum depende, paradoxalmente, das diferenças. É o conhecimento do outro, é o reconhecimento do outro, que permite a construção de um novo conhecimento comum, de um objetivo comum. A redução das passagens ocupou metaforicamente o local desse “comum” no início da atuação dessa multidão. O repúdio à violência/repressão policial também foi um elemento “comum” a unificar os passos da multidão. Frise-se, porém, que o comum não pode esmagar as diferenças, caso contrário, como já se viu, a multidão desaparece e em seu lugar é possível reconhecer uma “massa” tendencialmente fascista.

Uma outra exigência para que exista o fenômeno democrático “multidão” é que essa multiplicidade tenha uma organização política. Ou seja, que exista a possibilidade real de influir na tomada de decisões e na concretização dos direitos fundamentais. Aqui um problema revela-se evidente: se um agrupamento de milhares de pessoas deixa de ter uma pauta comum (ou passa a defender pautas abertas e indeterminadas, como, por exemplo, o “combate à corrupção” – e a corrupção é sempre “a corrupção do outro”), torna-se impossível que ele se organize politicamente. Novamente, o risco é a multidão se transformar em “massa” (de manobra). Sem organização política, a população perde a possibilidade de influir na tomada de decisões e permite que pretensões fascistas ganhem corpo.

E como o Poder Judiciário, poder constituído que deve(ria) funcionar como garante da democracia, deve se portar diante das multidões que afirmam exercer o Poder Constituinte? Por evidente, a partir do mesmo “desejo de democracia” que move a multidão: em lugar de priorizar a repressão, que serve ao controle social e à manutenção do status quo, buscar a universalização dos direitos. Para isso, é preciso compreender que o Poder Judiciário, como bem externou o juiz paulista Adriano Laroca, em recente decisão, “não pode mais, simplesmente, absorver conflitos gerados pela postura antidemocrática dos demais poderes, sob o manto protetor de qualquer instituto jurídico (...), sem o risco de ele próprio praticar o mesmo autoritarismo (repressão), os quais, na maioria das vezes, de modo irresponsável, são lhe transferidos pelos administradores de plantão” (Processo nº 1005270-72.2013.8.26.0053).

 Por evidente, tudo é novo (e complexo). Com certeza, essas considerações que fiz merecem ser criticadas e revistas. Meu objetivo era apenas o de partilhar algumas reflexões e preocupações. Acho que é importante afirmar e, se for o caso, resgatar o caráter político (portanto, transformador) e democrático dessas manifestações. O momento agora é de “luta por posições” (Gramsci), para que seja possível, cada vez mais, ver as cores da multidão. 

   

Referências Bibliográficas:

BENSAÏD, Daniel. Marx, manual de instruções. Trad. Nair Fonseca. São Paulo: Boitempo, 2013.

LE BOM, Gustave. Psicologia das Multidões. Trad. Mariana Sérvulo. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidões: guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.

HESSEL, Stéphane. Indignai-vos. Trad. Marli Peres. São Paulo: Leya, 2011.

NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo.  Trad. Maria Macedo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

    

  




[i] Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Professor de Processo Penal do IBMEC/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e do Corpo Freudiano.