Miradas
sobre a Multidão
Rubens R R
Casara[i]
Nos
últimos meses uma série de manifestações fez com que concepções sólidas e
estáveis sobre a participação popular na vida das cidades (e no controle do
poder) se desmanchasse no ar. Expressões do Poder Constituinte (NEGRI, 2002)?
Sintoma da crise da democracia representativa? Rompimento com a cordialidade que servia de
rótulo para o povo brasileiro? Resistência a partir da indignação (HESSEL,
2011)? Sem dúvida, algo novo em uma sociedade marcada por continuidades
autoritárias. Ocorre que o novo, o desconhecido, sempre gera medo e impõe
reflexão.
Neste
breve texto, buscar-se-á refletir/teorizar sobre os recentes movimentos
populares que reivindicam uma nova forma de relação entre a população e as
autoridades constituídas. Não há movimento transformador sem uma teoria também transformadora,
que dê conta de explicar o novo sem aprisionar o fenômeno em abstrações
generalizantes e categorias carcomidas. A função das teorias é a de
racionalizar os fenômenos e, nas democracias, sempre que possível, conter o
poder. Assim, é importante encontrar uma racionalidade democrática nesses
movimentos de levante popular, uma racionalidade ligada à realização dos
direitos humanos, que parta daquilo que ANTONIO NEGRI e MICHAEL HARDT chamaram
de “desejo de democracia” (NEGRI; HARDT, 2005, p.15), caso contrário ter-se-ia que
reconhecer a ausência de legitimidade para esses manifestantes atuarem no
Estado Democrático de Direito.
No
período pré-golpe militar de 1964, várias manifestações populares ocorreram,
com destaque para, de um lado, a chamada “Marcha dos Cem mil”, protagonizada
por setores progressistas, e de outro, as “Marchas da Família, com Deus pela
Liberdade”, que juntaram setores conservadores que pediam a queda do Presidente
João Goulart e protestavam contra a ameaça comunista. Nos últimos meses, foi
possível ver uma mobilização popular diferente: nos mesmos protestos coexistiam
uma “Marcha dos Cem mil” e “Uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade”,
progressistas e reacionários, militantes de esquerda ao lado de saudosos da
ditadura. Como entender esse fenômeno?
Parece
útil fazer uma leitura do que aconteceu através da categoria “multidão”
trabalhada por NEGRI e HARDT (no Brasil, por GIUSEPPE COCCO e ADRIANO PILATTI).
Nessa perspectiva, em primeiro lugar, cumpre distinguir o conceito de multidão
(lembrando que todo conceito, por ser uma abstração, é limitador e não dá conta
da integralidade do ser) de outros fenômenos que com ele guardam semelhança.
A Multidão não se confunde com o povo. Este “é
uma concepção unitária” (NEGRI; HARDT, 2005, p. 12). O conceito de povo reduz a
diversidade a uma unidade, transformando a população em algo único, uma
abstração identificável. A multidão, em contrapartida, é múltipla, plural,
“composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma
unidade ou identidade única” (NEGRI; HARDT, 2005, p.12-13). Na multidão existem
múltiplas culturas, múltiplas visões de mundo, múltiplos desejos (cada desejo é
singular e somos seres desejantes, forjados por inúmeros desejos). Por isso, na
multidão, uma pessoa de “direita” pode andar e atuar lado a lado com uma pessoa
de “esquerda”.
De
igual sorte, a multidão não se identifica com o conceito de “massas”. As
“massas” também não podem ser reduzidas a uma unidade, são compostas por todos
os tipos e espécies, mas nelas todas as diferenças são submersas. WILHELM REICH
em belíssima obra, a partir de Freud, alerta para os riscos de fascistização
das massas (REICH, 2001). A essência das “massas” é a indiferença: “todas as
cores da população reduzem-se ao cinza” (NEGRI; HARDT, 2005, p.13), o que
permite reconhecer nesse fenômeno uma tendência à intolerância e ao
autoritarismo. Na multidão, as diferenças são mantidas, são explícitas e
funcionam como condições para a troca constitutiva da multidão, novamente com HARDT
e NEGRI, pode-se afirmar que a multidão é multicolorida (NEGRI; HARDT, 2005,
p.13).
Um
agrupamento de pessoas, mesmo que seja de milhares de pessoas, que rejeita
parte da população, que exclui militantes de partidos políticos, visto que são
percebidos como diferentes, que impede bandeiras tanto desses partidos quanto
de movimentos sociais, que nega seu caráter político ou se afirma indiferente à
política, enquadra-se no conceito de “massas”, mas nunca pode ser tido como uma
“multidão”. Daí uma primeira questão: um movimento pode surgir como uma “multidão”,
esse conceito de viés democrático, e se transformar em um movimento de
“massas”, tendencialmente fascista? Ao que parece, o risco existe e impedir
essa transformação dependerá da capacidade dos manifestantes, ao longo do
processo, entre erros e acertos, de produzir um conhecimento e uma prática
comum, um saber-poder (uma “produção biopolítica”), voltados à concretização
dos direitos fundamentais (nesse sentido: NEGRI; HARDT, 2005, pp.14-15).
O
desafio, na linha indicada por NEGRI e HARDT, é fazer com que uma
multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir conjuntamente, sem se
afastar do desejo de democracia. É preciso descobrir ou inventar, ao longo do
movimento, a própria política, a estratégia de luta adequada à concretização de
direitos e à participação na vida pública.
Importante, também, pensar as possibilidades e
limites democráticos da multidão. Notam-se, nessas manifestações, formas de
organização cada vez mais democráticas, com a tendência do deslocamento da
autoridade para relações colaborativas.
Mas,
e os objetivos dessas manifestações?
Parece,
então, que a multidão deve, a partir das diferenças internas, da
multiplicidade, descobrir (na realidade, construir) um comum, uma pauta comum.
Esse processo se revela por meio de um jogo constante de deslocamentos e
condensações. Para além do real, que escapa à representação, os registros
simbólico e imaginário assumem relevo. Por isso é importante esse dado comum (uma
injustiça, um escândalo, uma provocação, etc.) que dê sentido e unifique ao
movimento ao mesmo tempo em que “quebra o curso ordinário dos trabalhos e dos
dias, o encadeamento monótono (...) dos calendários eleitorais” (BENSAÏD, 2013,
p. 72), que rompe com um ciclo de “paixões sem verdade, verdades sem paixão,
heróis sem feitos heroicos, história sem eventos” (MARX, 2011, p. 56).
A
construção desse comum depende, paradoxalmente, das diferenças. É o conhecimento
do outro, é o reconhecimento do outro, que permite a construção de um novo
conhecimento comum, de um objetivo comum. A redução das passagens ocupou
metaforicamente o local desse “comum” no início da atuação dessa multidão. O
repúdio à violência/repressão policial também foi um elemento “comum” a
unificar os passos da multidão. Frise-se, porém, que o comum não pode esmagar
as diferenças, caso contrário, como já se viu, a multidão desaparece e em seu
lugar é possível reconhecer uma “massa” tendencialmente fascista.
Uma
outra exigência para que exista o fenômeno democrático “multidão” é que essa
multiplicidade tenha uma organização política. Ou seja, que exista a
possibilidade real de influir na tomada de decisões e na concretização dos
direitos fundamentais. Aqui um problema revela-se evidente: se um agrupamento
de milhares de pessoas deixa de ter uma pauta comum (ou passa a defender pautas
abertas e indeterminadas, como, por exemplo, o “combate à corrupção” – e a
corrupção é sempre “a corrupção do outro”), torna-se impossível que ele se organize
politicamente. Novamente, o risco é a multidão se transformar em “massa” (de
manobra). Sem organização política, a população perde a possibilidade de
influir na tomada de decisões e permite que pretensões fascistas
ganhem corpo.
E
como o Poder Judiciário, poder constituído que deve(ria) funcionar como garante
da democracia, deve se portar diante das multidões que afirmam exercer o Poder
Constituinte? Por evidente, a partir do mesmo “desejo de democracia” que move a
multidão: em lugar de priorizar a repressão, que serve ao controle social e à
manutenção do status quo, buscar a
universalização dos direitos. Para isso, é preciso compreender que o Poder
Judiciário, como bem externou o juiz paulista Adriano Laroca, em recente
decisão, “não pode mais, simplesmente, absorver conflitos gerados pela postura
antidemocrática dos demais poderes, sob o manto protetor de qualquer instituto
jurídico (...), sem o risco de ele próprio praticar o mesmo autoritarismo
(repressão), os quais, na maioria das vezes, de modo irresponsável, são lhe
transferidos pelos administradores de plantão” (Processo nº 1005270-72.2013.8.26.0053).
Por evidente, tudo é novo (e complexo). Com
certeza, essas considerações que fiz merecem ser criticadas e revistas. Meu
objetivo era apenas o de partilhar algumas reflexões e preocupações. Acho que é
importante afirmar e, se for o caso, resgatar o caráter político (portanto,
transformador) e democrático dessas manifestações. O momento agora é de “luta
por posições” (Gramsci), para que seja possível, cada vez mais, ver as cores da
multidão.
Referências
Bibliográficas:
BENSAÏD, Daniel. Marx,
manual de instruções. Trad. Nair Fonseca. São Paulo: Boitempo, 2013.
LE BOM, Gustave. Psicologia das Multidões. Trad. Mariana
Sérvulo. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
MARX, Karl. O 18
brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2011.
HARDT, Michael; NEGRI,
Antonio. Multidões: guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis
Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HESSEL, Stéphane. Indignai-vos.
Trad. Marli Peres. São Paulo: Leya, 2011.
NEGRI, Antonio. O
poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad.
Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
REICH, Wilhelm. Psicologia
de massas do fascismo. Trad.
Maria Macedo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[i]
Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ,
Professor de Processo Penal do IBMEC/RJ e membro da Associação Juízes para a
Democracia (AJD), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e do Corpo
Freudiano.
Tem-se debatido sobre essa questão sem segurança para encaminhar. Mas essa reflexão está cheia de leveza, consistência e clareza... é a partir daí que temos que pensar em encaminhamentos! Excelente esse texto!!!!
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