A
Guerra às Drogas e os Amarildos
Marina Lattavo
Primeiramente gostaria de agradecer o convite do IAB e da
Dra. Maria Lucia Karam. Dizer que é uma honra poder falar ao lado meu eterno
mestre, professor Geraldo Prado. Apesar ter sido aluna do Geraldo na UFRJ e
apesar de todos os seus esforços para me demover da ideia, eu virei Policial!
Lembro-me sempre do Professor Geraldo me dizendo:
“Marina, estude para a Magistratura!” E eu, ideológica, brincando, respondia:
“Professor, alguém tem que fazer o trabalho pesado!”
Dediquei-me tanto à causa que abri mão de tentar ser
delegada para realizar o trabalho policial na raiz de suas funções. Hoje me
dedico à sociedade desde os problemas mais simples e cotidianos até estas
reflexões criminológicas e de política criminal em que aqui me encontro.
Mas, com muito pesar eu aprendi rápido algumas coisas,
professor:
Direito Penal como ultima
ratio, ficou somente nas aulas do professor Nilo Batista. A sociedade clama
pelo Direito Penal. No dia a dia de uma delegacia, o Direito Penal é prima ratio.
Princípios constitucionais basilares como Devido processo
legal, Contraditório e Ampla defesa, no mundo dos “Amarildos” não existem!
Dentre muitos outros que enumerados não sairia daqui
hoje. O mundo lá fora não é nada fácil! Mas esse tema fica para outro dia...
Casos como o do Amarildo me fazem lembrar de um passado
recente em que uma mãe não teve o direito enterrar seu próprio filho e também
acabou morta em um “acidente de carro”. Estranhamente a comunidade onde
Amarildo nasceu, cresceu e desapareceu fica acima do túnel denominado em
homenagem à mãe que me referi. Zuzu Angel lutou pelo direito de enterrar seu
filho e obter uma posição oficial do governo durante o regime militar. Pode
parecer assustador, mas infelizmente é uma realidade a ser encarada. Amarildo e
Stuart Jones foram “detidos para averiguação” e nunca mais voltaram aos seus
lares. Não estou atribuindo culpa a ninguém. O fato é que, agentes do Estado
conduziram e detiveram uma pessoa por suspeita de envolvimento com o tráfico
local. O que aconteceu com Amarildo depois, não sabemos!
Dizer que Stuart Jones era comunista e subversivo e que
Amarildo e sua esposa colaboravam com o tráfico de drogas em sua comunidade não
legitima nenhuma atuação arbitrária do Estado.
Moradores de comunidades no Rio de Janeiro hoje, ou estão
sob o jugo do poder paralelo ou sob o Estado Policial. E por que isso? Pela
política proibicionista de guerra às drogas. Guerra esta que mata e destrói
mais que o próprio uso da substância.
Precisamos refletir sobre esta política criminal e
repensar novas estratégias. Pensamentos simples que inconscientemente temos,
por exemplo, quando nos conformarmos ao vermos notícias veiculadas pela mídia
que demonstram o resultado de uma operação policial e informa: “10 pessoas
morreram e todas tinham passagem criminal” (ufa....Como se esta explicação
tornasse aquele morto, sem nome e sem história... apenas um inimigo a ser
combatido.)
Acho que é extremamente relevante dizer para os senhores
que passei a defender a legalização e regulamentação das drogas arbitrariamente
selecionadas como ilícitas depois que entrei para a Polícia Civil. Dentro desta
casa pude viver e sofrer na pele toda a discriminação e seletividade que a
atual política de drogas provoca e busca.
Logo no meu primeiro trabalho na polícia me deparei com
um caso que fui designada a investigar sobre um possível esquema de venda de
drogas para alunos de uma determinada universidade. A primeira coisa que fiz foi me fingir de
aluna e ficar na porta da universidade para entender o tal “esquema”. Foi uma
investigação rápida e fácil, porém com um fim nada louvável. A venda da droga
era feita por um jovem que sem nenhuma violência ou ameaça descia a sua
comunidade de bicicleta e levava o “produto” que os universitários queriam
consumir. O resultado? Os universitários continuaram consumindo seu produto com
outro fornecedor... o garoto da bicicleta, que cabe lembrar, também era
estudante mas de uma escola pública, foi preso e condenado por tráfico de
drogas.
Ao me deparar com aquela realidade “nua e crua” percebi
que era meu dever como policial lutar por uma política criminal menos injusta e
seletiva.
Minha intenção aqui não é discutir se o uso de drogas
lícitas ou ilícitas faz bem ou mal. Existem diversos profissionais específicos
de cada área tratando destas questões com a devida importância e atenção. Minha
intenção aqui é (sim) discutir os impactos que essa política proibicionista de
Guerra às Drogas trazem para sociedade.
Diariamente presenciamos a evolução da violência em nosso
Estado. Há algumas poucas décadas atrás seria inconcebível um bandido portando
um fuzil ou uma granada. Hoje essa é uma realidade rotineira em nossa cidade. A
própria polícia andando pelas ruas portando armas que somente deveriam ser
usadas na guerra, se tornou uma realidade corriqueira. A maior parte das armas
usadas não foi desenvolvida para confronto urbano, mas sim para situações em
que é necessário ferir o inimigo a longa distância. Isso demonstra que este
cenário apresentado constitui uma cena dramática, porém real, de uma guerra
urbana, só que sem toque de recolher.
Então pergunto para os senhores... De onde saíram estas
armas usadas pelos “bandidos”? Há trinta anos atrás, quando a Política de
Guerra às Drogas ainda não havia sido declarada no Brasil, quando o inimigo
número 1 ainda era o comunista, criminosos que praticavam roubos, sequestros,
homicídios, entre outros crimes com violência e grave ameaça utilizavam
revólveres de calibre 38 enferrujados e muitas vezes sem funcionar.
O tempo passou, o socialismo dava sinais de falência,
assim como as ditaduras militares latino-americanas apoiadas pelos EUA e a
ideologia da Segurança Nacional estava ameaçada. Como justificar a intervenção
americana no plano internacional com o fim do comunismo? Assim, a política
criminal do governo brasileiro seguiu o exemplo americano e elegemos nosso novo
inimigo número 1... o vendedor de drogas! Depois disso, tenho certeza que
passou a ser bem pior o trabalho da polícia.
O vendedor dessas drogas, para poder se defender passou a
delimitar seu território e formar seu exército. Diferente dos crimes violentos
já citados, o tráfico era rentável e permanente. O dinheiro regular da venda das drogas
ilícitas poderia bancar a corrupção e a compra de armamentos pesados para
defesa de seu território. E assim foi crescendo a violência em nosso Estado.
Não são as drogas que causam violência. O que causa
violência é a proibição. A produção e o comércio de drogas não são atividades
violentas em si mesmas.
Estudos apontam que o aumento da repressão acaba por
aumentar também a violência, especialmente homicídios. Sem dúvida, a “guerra às
drogas” mata muito mais do que o uso da droga propriamente dita.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, nos últimos
anos, uma média de vinte por cento dos homicídios dolosos – ou seja, um em cada
cinco – tem sido resultado de execuções sumárias em operações policiais de
“combate” ao comércio varejista das drogas nas favelas. Nós policiais somos
autorizados formal ou informalmente e mesmo estimulados a praticar a violência
contra os “inimigos” personificados nos vendedores de drogas das favelas.
Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve
eliminá-lo. Mesmo assim, ainda há quem se espante com a violência policial!
Somos nós policiais que matamos e morremos em nome dessa Guerra falida. Do
outro lado, os ditos “inimigos” desempenham esse único papel que lhes foi
reservado. Que também matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela
ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham.
A associação entre as drogas e grupos de pessoas consideradas
“perigosas” serviu e continua servindo para aprofundar o controle penal sobre
os pobres, os marginalizados, não brancos, num processo crescente de
criminalização da pobreza, de “limpeza urbana”.
Neste cenário, a
seletividade punitiva escolhe, através de estereótipos, alvos para as ações do
sistema penal. Assim, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, as
deficiências da estrutura familiar, o baixo nível de escolaridade, muito antes
de se constituírem como causas da criminalidade, aparecem como identificadores
do estereótipo do criminoso.
E a missão original da polícia de promover a paz, assim
se perde e sua imagem se deteriora. Naturalmente, não somos os únicos
corrompidos, nem os principais responsáveis pela violência produzida pelo sistema
penal na “guerra às drogas”, mas somos nós os preferencialmente alcançados por
um estigma semelhante ao que recai sobre os selecionados como criminosos. Mais
uma vez, policiais e traficantes se enfrentam em uma batalha em que os dois
lados saem perdendo.
O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior
população carcerária do mundo. Em dezembro de 2012, já eram mais de 500 mil
presos (548.003). Acusados e condenados por “tráfico” que, em dezembro de 2005,
eram 9,1% do total dos presos brasileiros, em dezembro de 2012, chegavam a
26,9%. Entre as mulheres, essa proporção alcança praticamente metade das presas
(47,35%).
A maioria dos condenados por tráfico de drogas no Rio de
Janeiro é réu primário, foi preso sozinho, com pouca quantidade de drogas, não
possui fortes vínculos com o crime organizado e acabou tendo a sua pena
aumentada por engrossar o tráfico de dentro da cadeia.
Este perfil do preso por tráfico no Estado foi traçado em
uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, feita a partir de
levantamentos do Departamento Penitenciário Nacional. O estudo, realizado em
conjunto pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade
de Brasília (UNB), foi feito a partir das condenações judiciais por tráfico de
drogas e porte de entorpecentes. Em 50% dos casos a quantidade apresentada foi
de até 22 gramas. Mais de 90% dos presos foi em flagrante, mas apenas 17% são
reincidentes. O documento também revela que prevalece, dentre as causas de
aumento de pena durante a prisão (27%), o uso de drogas dentro da cadeia.
Em razão disso, percebemos um aumento no número de
mulheres presas por tráfico, mas não que elas estejam entrando para o mercado
ilegal, mas sim, porque são presas quando tentam levar drogas para o consumo de
seus companheiros dentro da prisão.
Este é o Estado da Criminalização da Pobreza em que
vivemos, travestido por uma Política Criminal de Combate às Drogas.
Neste Estado, a falência do sistema de políticas
públicas, resulta na política intolerante de guerra. O fracasso ou a ausência
da diplomacia e do diálogo abrem espaço para o caminho da violência. Assim, o
Governo compensa suas deficiências através das forças policiais e do sistema
Penal, sem tratar dos reais problemas da sociedade. Desviando o foco da ausência
dos sistemas básicos de saúde e educação.
Não precisa fazer muito diferente de como já foi feito.
Políticas públicas educacionais e medidas administrativas provocam resultados
muito mais eficazes do que “saco na cabeça e choque”. Não foi preciso ninguém
desaparecer para que se conseguisse uma redução no consumo de tabaco, por
exemplo. Nos idos dos anos 90 uma criança poderia ir em uma banca de jornal e
comprar cigarros para o seu pai. Hoje isso seria impensável. Entretanto, uma
criança, hoje, tem livremente acesso ao crack ou a qualquer outra droga
ilícita. O Estado finge que não vê o problema social que leva uma pessoa a
buscar uma droga lícita ou ilícita, atribui culpa a quem a forneceu e impossibilita
qualquer política pública eficaz para tratar do caso.
Enquanto permanecerem na ilegalidade, não será possível
fazer um levantamento sobre o perfil do usuário, quais substâncias são
consumidas, quais estratégias devem ser tomadas para reduzir o consumo, enfim,
para atuar com responsabilidade e comprometimento com cada caso. Seja do
dependente químico, seja do usuário recreativo ou seja daquele que visualiza na
venda uma forma de trabalho.
Precisamos legalizar para diagnosticar e regulamentar de
forma eficaz para que seja possível, então, controlar.
Se deixássemos de fechar os olhos para os reais problemas
da sociedade e legalizássemos todas estas substâncias selecionadas
arbitrariamente como ilícitas, tenho certeza que os seis filhos de Amarildo não
teriam passado o dia dos pais sem sua presença.
Marina
Martins Lattavo é Inspetora de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho/ Os que não
trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho/ Quem não tem medo da fome, tem
medo da comida/ Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de
serem atropelados/ A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de
dizer/ Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de
armas, as armas têm medo da falta de guerras/ É o tempo
do medo/ Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem
medo/ Medo dos ladrões, medo da polícia/ Medo da porta sem fechaduras, do tempo
sem relógio, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para
dormir e do do dia sem comprimidos para despertar/ Medo da multidão, medo da
solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, MEDO DE VIVER”
(Eduardo Galeano – “De pernas pro ar”)
“OS PROBLEMAS DO MUNDO NÃO PODEM SER RESOLVIDOS POR CÉTICOS OU
CÍNICOS, CUJOS HORIZONTES SÃO LIMITADOS POR REALIDADES ÓBVIAS.
PRECISAMOS DE HOMENS E MULHERES QUE CONSIGAM SONHAR COM COISAS QUE
NUNCA EXISTIRAM”
(John F. Kennedy)