Ref. Procedimento n. º:
0218550-03.2013.8.19.0001
DECISÃO
Trata-se de investigação
preliminar para apurar a prática dos crimes de dano (artigo 163 do Código
Penal) e de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, §4º,
incisos II e IV, também do Código Penal) de 198 aparelhos de telefonia celular, 44 chips e 5
modens, ocorrido no dia 20 de junho de
2013, por volta das 20h, na Avenida Presidente Vargas. Segundo o Registro de
Ocorrência de fl. 03, um grupo de manifestantes teria entrado em uma loja da
sociedade empresária “Claro”, destruído o local e furtado diversos
equipamentos.
A autoridade policial
representou por medida cautelar de busca e apreensão através da peça de fls.96/105.
O Ministério Público
manifestou-se pelo deferimento do pedido
de busca e apreensão, consoante revela a promoção de fl. 106.
É
o breve relatório. Passo, pois, a decidir.
Cumpre, desde o início,
deixar consignado que todo e qualquer ato da persecução penal (ou seja, da
atividade estatal voltada à imposição e uma resposta penal para uma conduta apontada como
delituosa) deve se dar dentro dos marcos do Estado
Democrático de Direito. Este se caracteriza: a) pela existência de limites ao
exercício do Poder (de qualquer poder); b) pela atuação do Poder Judiciário
como garante da normatividade constitucional.
São os limites impostos pelo
Estado Democrático de Direito que estão a impedir, por exemplo, a
instrumentalização/coisificação dos indivíduos e que o processo penal seja
utilizado para facilitar perseguições ou vinganças políticas. No Estado
Democrático de Direito, os direitos fundamentais aparecem, ao longo da
história, como trunfos contra maiorias de ocasião, governos autoritários e
agências estatais comprometidas ora com o poder político ora com o poder
econômico.
O pedido formulado pela
autoridade policial e corroborado pelo Ministério Público vem em uma quadra
histórica marcada por um movimento popular que ainda carece de uma melhor
compreensão. E, por ser um fenômeno novo, ainda gera medo e impõe reflexão de
todos, inclusive dos atores jurídicos, sempre a partir de uma racionalidade
ligada à realização dos direitos humanos e que parta daquilo que se
convencionou chamar de “desejo de democracia”.
Ao lado daqueles que
vislumbram nesse movimento de pessoas (de muitas pessoas) uma multidão,
radicalmente democrática, múltipla (múltiplos desejos, múltiplas culturas,
múltiplas visões de mundo, etc.), composta de diferenças internas, mas com uma
pauta comum, existem outros que passaram a apostar na existência de uma massa,
tendencialmente fascista, em que as diferenças estão submersas, caracterizada
tanto pela indiferença quanto pela tentativa de esmagamento das diferenças.
Ademais, não se pode, ainda, descartar a possibilidade de que um movimento
legítimo possa ser utilizado, por grupos de interesse, como uma arma política
contra governos, populares ou não, ou pessoas.
Tudo isso está a exigir
cuidado da Agência Judicial ao julgar no atual contexto. Cuidado que deve ser
redobrado em uma quadra histórica em que os meios de comunicação de massa
passam a reproduzir notícias de que agentes estatais estariam infiltrados em
meio aos manifestantes para provocar desordem e justificar o incremento da
repressão policial.
Diante desse quadro, e em razão
dos últimos acontecimentos, torno explícito, de início, por mais desnecessário
que isso possa parecer, a adesão aos postulados democráticos e republicanos,
dentre os quais se destaca o da legalidade estrita.
Compulsando a representação
da autoridade policial (fls.96/105) e a promoção do Ministério Público (fl.
106), verifica-se que não consta a individualização dos bens a serem
apreendidos.
Em se tratando de medida que
implica o afastamento de direito assegurado na Constituição da República, o
requerimento estatal, além de conter todos os requisitos enumerados no artigo
243, do Código de Processo Penal, deve necessariamente ser o mais certo e
determinado possível. Essa exigência, por evidente, deriva do dever de
motivação dos atos estatais (inclusive, os atos judiciais, esses por força do
artigo 93, inciso IX, da Constituição da República).
Como ensina LUCIANO DUTRA,
“a motivação da decisão judicial, com a perfeita identificação do que se busca,
é requisito essencial da medida, uma vez que torna possível aferir a existência
dos pressupostos de legitimação e validade do ato extremado”.[1]
No caso em exame, em razão da ausência desses elementos tanto na representação
policial quanto na promoção do Ministério Público, torna-se impossível
individualizar os bens no mandado judicial pretendido pelos órgãos da
persecução penal, o que impede a explicitação dos limites (sempre, e sempre,
estritos) desse tipo de decisão.
Mas, não é só.
Há também uma ilicitude no
início da investigação preliminar a contaminar a pretendida diligência de
investigação ora pretendida. Registre-se que isso só foi percebido em razão do
Ministério Público ter afirmado (fl. 106) que a autoridade judicial teria se
intrometido na seara da investigação. Como erros acontecem, foi-se verificar o
acerto, ou não, da crítica do parquet
e isso tornou possível identificar que a decisão de fls. 79/80 foi descumprida.
Note-se que essa decisão, com o fim de verificar a utilidade-necessidade do
pedido de quebra de sigilo de dados telefônicos, limitava-se a determinar que a
operadora CLARO esclarecesse se todos os aparelhos e chips furtados estariam
sendo utilizados.
Não obstante, a Operadora
CLARO acabou ultrapassando os limites da determinação judicial, o que levou,
inclusive, a autoridade policial a desistir do pedido anteriormente realizado
(fls. 27/28).
Mas, mais uma vez, não é só.
A investigação preliminar
tem por objeto os crimes de furto e de dano já mencionados. Todavia, as medidas
cautelares pretendidas se voltam contra pessoas que a própria autoridade
policial afirma não serem os autores da subtração. Registre-se,
como bem percebeu o diligente signatário da peça de fls. 96/105, que não é
possível afirmar que as várias pessoas indicadas pela autoridade policial foram
os autores da subtração investigada. Não há pertinência subjetiva entre a
investigação desenvolvida e os eventuais atingidos pela medida cautelar de
afastamento de uma garantia constitucional.
Note-se que a autoridade
policial afirma que “ao serem ouvidos, os receptores poderão indicar de quem
compraram os telefones, levando-nos à autoria do crime em apuração no presente
procedimento” (fl. 97). Ora, para apurar a autoria do crime de furto, com a
oitiva dos supostos “receptadores”, não se faz imprescindível, ao menos neste
momento, a busca e apreensão pretendida.
A medida pleiteada revela-se,
pois, desnecessária aos fins declarados pela autoridade policial. Vale lembrar
que apenas em Estados autoritários prefere-se o uso da força em detrimento de
medidas de cognição. Para ouvir as pessoas indicadas pela autoridade policial,
em princípio, basta intimá-las a depor, como funciona em todas as democracias
(ao menos, naquelas que são efetivamente democracias).
Em outras palavras: os
elementos trazidos aos autos não permitem identificar a existência de “fundadas
razões” (artigo 240, § 4º, do Código de Processo Penal) que justifiquem a
intromissão na casa dos indivíduos indicados e o afastamento de direitos e
garantias constitucionais.
Há também o fato de que os
autos não permitem concretizar o controle da legalidade do afastamento de
direitos constitucionais em relação ao polo passivo da medida cautelar. Isso
porque não foi realizada qualquer investigação prévia que permita afirmar que
os titulares dos dados (indevidamente) fornecidos pela operadora continuam a
deter os aparelhos e os chips a que foram vinculados pelos IMEI’s (fl. 27). Em
cognição sumária, ausente a probabilidade da autoria afirmada (fumus commissi delicti), impõe-se o
indeferimento da medida pleiteada (in
dubio pro direitos fundamentais).
Outrossim, há também séria dúvida acerca da
tipicidade material de eventuais condutas que, do ponto de vista
formal, poderiam se adequar, em tese, ao delito tipificado no artigo 180 do
Código Penal (e que não é objeto da investigação preliminar em questão).
Ter-se-ia, ao contrário, a atipicidade material diante da insignificância do
valor dos objetos em poder dos sujeitos passivos da medida cautelar pleiteada. Ressalte-se,
ainda, que, mesmo que se reconheça a tipicidade material dessas condutas, o
delito subsistente permite medidas despenalizadoras, o que torna
desproporcional o afastamento de liberdades públicas antes mesmo de instaurada
investigação em desfavor dos mesmos pelo crime de receptação. Neste sentido:
HC 96496 / MT - MATO
GROSSO
STJ HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. EROS GRAU
Julgamento: 10/02/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma
STJ HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. EROS GRAU
Julgamento: 10/02/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação: DJe-094 DIVULG 21-05-2009 PUBLIC 22-05-2009
PACTE.(S): CLEBER
RODRIGUES BONDESPACHO DA SILVA
IMPTE.(S):
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
COATOR(A/S)(ES):
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ementa
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO.1. A aplicação do princípio da insignificância
há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as
classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito
movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica,
para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse
modelo. 3. A
subtração de aparelho celular cujo valor é inexpressivo não justifica a
persecução penal. O Direito Penal, considerada a intervenção mínima do
Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões
significativas aos bens juridicamente tutelados. Aplicação do princípio da
insignificância, no caso, justificada. Ordem deferida.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO.
Por tudo isso, impossível o
acolhimento das medidas cautelares pleiteadas, razão pela qual indefiro o
pedido de fls. 96/105, corroborado à fl.106.
Intimem-se.
Rio de Janeiro, 23 de julho de 2013.
Rubens R R Casara
Juiz de Direito
[1]
DUTRA, Luciano. Busca e apreensão penal: da legalidade às ilegalidades
cotidianas. Florianópolis: Conceito, 2007, pp. 162-163.
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