DE VOLTA À RELAÇÃO ENTRE DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA
Juarez Tavares
Sempre houve uma preocupação doutrinária no direito penal de buscar uma racionalização para seus institutos. Muitas foram as propostas dessa racionalização. Podemos recordar algumas: o esquema positivista baseado na causalidade e na ação instrumental, a adoção do método como forma de criação do objeto no neokantismo da Escola de Baden, a pretensã...o ontológica do finalismo, com suas categorias lógico-objetivas, a sedimentação organizacional do funcionalismo e seus critérios de utilidade, a postura estratégica do sociologismo weberiano, as contribuições da filosofia analítica em torno das aparências da linguagem e dos atos de fala e a substância de uma teoria comunicativa como forma de exercício de um critério de verdade com base na pretensão de validade e no consenso. Embora cada uma dessas concepções possa padecer de defeitos, contradições ou controvérsias, têm todas elas uma grande qualidade: elevar a doutrina penal a um determinado nível científico, capaz de servir de apoio à compreensão de todos os cidadãos e, principalmente, da jurisprudência. Lamentavelmente, porém, o que vemos, hoje, no direito brasileiro (também no direito de outros países, mas fundamentalmente no brasileiro) é um retrocesso incomensurável: em vez de a doutrina influenciar a jurisprudência para dar às decisões judiciais um mínimo de racionalidade, faz-se da jurisprudência o compêndio da doutrina. Quando a jurisprudência se torna a única fonte de elaboração do direito, pode-se dizer que o direito está destruído. Nem se trata de um empirismo, conforme poderia resultar de uma concepção de Alf Ross, mas, sim, de um casuísmo. O que vale é o que consta dos informativos. Parece uma consideração pessimista, mas é a realidade: retrocedemos à fase da exegese, ou melhor, da exegese simplificada.
A legislação penal pode ser deficiente, em alguns aspectos, mas não induz à construção de um direito saído exclusivamente dos tribunais. Nem estou jogando pedra na jurisprudência, a qual, em certos casos, tem contribuído para democratizar a própria lei, como se dá com decisões do STF em matéria de crimes hediondos ou no tráfico de drogas. Essa forma de democratização é própria da jurisprudência e constitui sua função. O que ressalto é a submissão da doutrina à jurisprudência, que passou a constituir a única fonte de uma discussão racional do direito. Quando isso acontece, o direito corre o risco de se transformar numa simples técnica, sem conteúdo de validade universal, um amontoado de casuísmos. Veja-se, por exemplo, a confusão mental que a jurisprudência criou na consumação do crime de sonegação fiscal ou na aplicação do princípio da insignificância. A valer as considerações da jurisprudência, ter-se-á, pela primeira vez na história universal, a consumação de um crime dependendo da ação de outrem e não como desdobramento da própria conduta do agente, ou a violação do bem jurídico se subordinando a um critério de reprovação social da própria conduta. A decisão acerca da violação de bem jurídico deve estar orientada por outros critérios, principalmente, em face da intensidade da lesão aos valores de referência da conduta. Quando a violação do bem jurídico não pode mais servir para traçar com nitidez as zonas do lícito e do ilícito, tampouco poderá orientar a atividade de cada um. Aí reside a questão da insignificância, que é matéria do injusto penal, subordinada à decisão em torno do desvalor do resultado e do desvalor do ato. Pode até ser que a orientação da jurisprudência tenha perseguido uma fórmula para conter a expansão do direito penal, mas é uma fórmula errada. E os manuais de direito penal vêm repetindo essas ideias, só isso e nada mais, como sinal de progresso. A essa formulação doutrinária, com base nos informativos, chamo de ruptura de racionalidade. Não é à toa que os cientistas sociais e os psicólogos riem das construções jurídicas, que nada têm mais de científicas, são meras expressões da decisão do caso. O direito se transformou numa técnica igual à colocação de tijolos numa casa, e a doutrina se encarrega de apenas dizer como a argamassa está constituída.
Belo texto do Juarez Tavares iluminando a todos nós. Afinal, a jurisprudencialização do direito é o mesmo que o poste urinar no cachorro. O cachorro é a ciência jurídica.
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