sábado, 3 de agosto de 2013

O Pai é o limite: do autoritário à autoridade adequada à democracia


O Pai é o limite: do autoritário à autoridade adequada à democracia.
 
Palestra apresentada no Segundo Colóquio Internacional de Psicanálise do Corpo Freudiano
 na cidade de Fortaleza - Brasil 

Rubens R R Casara

                        A aproximação entre direito e psicanálise é uma exigência. Com o reconhecimento do inconsciente, e de que a razão não dá conta de todos os atos que são praticados em sociedade, ainda que travestidos de racionais, não se pode mais deixar de desvelar, ou ao menos colocar em questão, os efeitos do inconsciente na práxis e também nas formulações teóricas que justificam as práticas jurídicas.

            Para se abrir ao inconsciente e a seus efeitos na produção do direito é “essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente”(FREUD, 2001, p. 584)[1]. Não por acaso, Lacan chega a dizer que a “única função homogênea da consciência está na captura imaginária do eu por seu reflexo especular e na função de desconhecimento que lhe permanece ligada”.[2]

            Neste texto buscar-se-á articular o significante pai, presente desde o início da teoria freudiana (“o pai como o sedutor da histérica”), com as ideia de imposição de limites à liberdade ou à opressão, isto é, com concepções autoritárias e democráticas do Direito. Vale lembrar que, se o Estado de Direito caracteriza-se pela existência de limites, por outro lado, nem todo limite mostra-se adequado à democracia, certo que o Estado Fascista apresentava-se como uma espécie de Estado de Direito. Em Freud, dois mitos são construídos como fonte de reflexão e utilizados no preenchimento de lacunas e explicação de suas teorias sobre o funcionamento psíquico: mitos que tratam de mortes, poder e limites.

 O mito de Édipo, na formulação construída por Freud a partir da “carta 71” dirigida a Wilhelm Fliess, fornece o que pode ser tido como um dos mais cruciais conceitos psicanalíticos,[3] na medida em que se acredite que o adulto pode ser pensado a partir do conjunto de sentimentos que a criança, “absorvida por um desejo sexual incontrolável, tem de aprender a limitar seu impulso e ajustá-lo aos limites do seu corpo imaturo, aos limites de sua consciência, aos limites de seu medo e, finalmente, aos limites de uma Lei tácita que lhe ordena que pare de tomar seus pais por objetos sexuais”,[4] experimenta. Esse complexo, constituído por uma rede de relações marcadas por limites, desejo e identificação acabou retratado a partir de uma fábula simbólica que contém três personagens, a criança e seus pais, um o objeto do desejo, enquanto o outro corporifica a interdição a esse desejo.[5] Nesse quadro, o pai aparece com uma função simbólica, a de intervir sob a forma de lei, como aquele que introduz o “não” para a criança, que, a partir de então, internaliza que o gozo é sempre limitado. É o “não” de quem exerce essa função de apresentar limites que gera seres desejantes.

            O outro mito manejado por Freud, ligado à problemática jurídica, é o do assassinato do pai em Totem e Tabu (1913).[6] Pode-se afirmar que nessa obra Freud formula sua versão da teoria psicanalítica da lei. O relato do assassinato do pai tirano, que detinha o gozo ilimitado, objeto de amor e ódio, seguido da culpa e do culto ao pai através do Totem dá margem a diversas interpretações. A primeira, e mais famosa, aposta que o mito representa a constituição da cultura, a passagem à civilização, com a limitação/partilha do gozo. Para outros, o mito revela o laço fraterno que leva à constituição do contrato social, uma vez que, após matarem o pai, são os irmãos que instauram a lei democraticamente e criam uma sociedade de iguais, a partir da castração simbólica do pai opressor e todo-poderoso.[7] Há, ainda, quem interprete o assassinato do pai, o regaste e a importância da função do pai como uma forma de atualização do modelo patriarcal e tendencialmente violento de sociedade. Enfim, as histórias de Édipo e do Pai da Horda são história de limites, ou melhor, da consciência de limites: é “pela via da intervenção da função do pai que o homem é possuído pelo discurso da lei”.[8]

            O pai pode ser percebido a partir de três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Com Lacan, pode-se dizer que o Real é o que é estritamente impensável,[9]aquilo que não pode ser representado, nem apreendido. O saber do real é absoluto, inapreensível e tem um poder penetrante e traumático[10]. Assim, o registro real do pai não se confunde com o pai da realidade, da mesma forma que o real não se confunde com a realidade[11], sempre forjada através da linguagem, ou seja, pertencente ao registro simbólico. Assim, não assiste razão a Melman ao sustentar, com apoio em passagens da obra de Lacan, que o pai real “é aquele que está em casa”.[12] O pai que está presente em casa se sustenta em um emaranhado simbólico-imaginário. Note-se que o pai real seria uma possibilidade que não pode ser demonstrada e sequer chega a ser, pois o simples fato de se nomeá-lo “pai real” ou de tentar explicá-lo já o desloca para outro registro. O pai real não é; o “não” do real revela uma impossibilidade (um não-há-possibilidade). O real, embora resista à simbolização, acaba por comparecer tanto no simbólico, “sob a forma de falta de um significante”,[13] quanto no imaginário, como furo, como “ausência de um saber sobre a espécie”.[14] No pai real há o que falta ao significante “pai”, o que não se conhece sobre ele.

            O simbólico é o registro da linguagem. O pai simbólico é. Ou seja, possui sentido, pode ser representado. Nesse registro, o “significante Pai equivale ao significante Lei[15], assim, a “diluição da figura paterna, sua ausência ou degradação, apontam para o self-service normativo, inviabilizando a prática da democracia”[16]. O pai é a condição de possibilidade da contenção do arbítrio; porém, o pai é também a justificativa para a limitação da liberdade e das potencialidades do sujeito. No registro simbólico, o pai é o “não” inscrito na linguagem e que, ao mesmo tempo em que vincula, pode ser superado, o que dá origem aos três supereus descritos por Didier-Weill : o arcaico (“nem uma palavra”), o segundo (“não insista”) e o terceiro supereu (“você vai perseverar?”)[17]. Cabe ao pai a função de impor limites, articular sujeito e simbólico (“fazer laço entre o simbólico, o imaginário e o real, para que se estabeleça uma ligação entre eles”[18]), e, assim, permitir o acesso ao desejo. Note-se que sem a lei (ou seja, sem o pai) “a coisa estava morta”, isso porque a “relação dialética do desejo com a Lei faz o nosso desejo não arder senão numa relação com a Lei”.[19]

            O imaginário diz diretamente da imagem, mais precisamente de “uma relação dual com a imagem do semelhante”.[20] Trata-se de um conjunto de representações que independe da realidade. O imaginário é o locus da imagem que se tem. O pai imaginário é sempre terrível, pronto para fazer valer a lei. É no registro imaginário que se formam as diversas concepções da Lei e, em especial, a imago do pai como limite e como autoridade. Essa distinção, aliás, é que, no plano da teoria política, vai dar corpo a concepções diversas de Estado, algumas democráticas, marcadas pela existência de limites ao arbítrio, outras autoritárias, que se caracterizam tanto pela ampliação da força em detrimento do saber/conhecimento quanto pela restrição da liberdade e das potencialidades humanas.          

            Em suma, é possível encontrar na construção lacaniana do “Nomes-do-Pai” subsídios para um discurso e uma prática autoritária, que apostam no incremento da repressão e na legitimação do uso da força em nome do Pai, do Estado (ou de razões de Estado, em princípio, ilimitadas) como Pai. Nessa linha, ao demandar a restauração da “lei do pai”, da força e da autoridade, enfraquecida diante da crise do simbólico, reforça-se uma epistemologia autoritária/inquisitiva.

           Em Lacan encontra-se os fundamentos teóricos do discurso sobre a crise do simbólico, um discurso que clama pelo retorno da “lei do pai”, o que acaba por legitimar o Estado Penal onipresente. Diante desse quadro, em que o Pai abre-se para diversas concepções, cabe problematizar o discurso sobre o mal-estar contemporâneo, que aposta no declínio da função paterna como causa do esgarçamento do tecido social. Não há dúvida de que “demandar a restauração da lei do pai, deixa no ar um pedido por mais ordem e mais limites, fazendo eco, desse modo, aos discursos repressivos provenientes de outros setores da sociedade”. [21]

            No Brasil, diante da crise do simbólico, da ausência de limites, como se dá a restauração da metáfora e do poder autocrático paterno? Através de respostas simbólicas que implicam no uso da força contra a população, mais precisamente através de políticas de extermínio e encarceramento em massa daqueles que não interessam à sociedade de consumo. As tentativas de converter o Estado em pai têm corporificado o aumento do poder punitivo exercido pela autoridade, tornando-a, não raro, autoritária. O Estado-pai passa a ser, ao mesmo tempo, o legislador que legitima o uso da força, o juiz que despreza garantias e o verdugo que executa quem não interessa ao status quo. O Estado mostra-se como o pai que castiga, impõe medo e cobra obediência.

            Diante desse quadro, caracterizado pela crença em uma “função mecanicistamente motivadora da lei, acreditar que o homem se comporta pavlovianamente segundo a proibição ou o mandado”,[22] o primeiro passo, caso se deseje superar a concepção de lei como interdição à liberdade, consiste em romper com uma tradição autoritária e despir o pai da função de impor sofrimento (do poder punitivo). A compreensão de que o limite imposto pelo “não” do pai direciona-se à opressão e não interdita a liberdade para realizar o desejo, funciona como condição de possibilidade para que a psicanálise e o direito passem a dialogar “mais facilmente em torno da oposição desejo-liberdade, que sinaliza um conflito juridicamente solucionável, do que aferrados à oposição desejo-interdição, que se chama poder punitivo”.[23]      

                       



[1] FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos; trad. Waldereto Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro:Imago, 2001, p. 584.
[2] LACAN,  Jacques. A posição do inconsciente no Congresso de Bonneval. In Escritos; trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 846.
[3] Nesse sentido: NASIO, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa; trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 12.
[4]NASIO, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa; trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 12.
[5] Cf. NASIO, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa; trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 16-17.
[6] FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira, vol. XIII ; trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[7] Nesse sentido: KEHL, Maria Rita. Função paterna. Rio de Janeiro: Relume Damará, 2000.
[8] MAURANO, Denise. A face oculta do amor: a tragédia à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Editora UFJF, 2001, p. 62.
[9] LACAN, Jacques. R.S.I.: le seminaire 1974/1975. Inédito. Aula de 10 de dezembro de 1974.
[10] DIDIER-WEIL, Alain. Pai no real: pai simbólico – pai real. In Littoral: do pai. Joseph Moingt... [et al]. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2002, p. 357.
[11] “A realidade é constituída por uma trama simbólico-imaginária” (COUTINHO JORGE, Marco Antonio; FERREIRA, Nádia Paulo. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Zahar: 2009, p.32.
[12] MELMAN, Charles. A neurose obsessiva. Trad. Inesita Machado. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 97.
[13] COUTINHO JORGE, Marco Antonio; FERREIRA, Nádia Paulo. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 31.
[14] COUTINHO JORGE, Marco Antonio; FERREIRA, Nádia Paulo. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 31.
[15]GUERRA FILHO, Willis Santiago. Sobre a origem metapsicológica da ordem jurídica. São Paulo: mimeo, 2009.
[16]CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Édipo e excesso: refelxão sobre lei e política. Porto Alegre: Safe, 2002, p. 59.
[17] Nesse sentido: DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Trad. Ana Maria de Alencar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[18] COUTINHO JORGE, Marco Antonio; FERREIRA, Nádia Paulo. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 31.
[19] LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 104
[20] RUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de psicanálise; trad. Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 371.
[21] NERI, Regina. Uma reflexão sobre a concepção de lei na psicanálise: o pai como lei e a lei como pai. In: Depois do grande encarceramento (Org. Pedro Abramovay e Vera Malaguti Batista). Rio de Janeiro: Revan, p. 159.
[22] BATISTA, Nilo. A lei como pai. In: Depois do grande encarceramento (Orgs. ABRAMOVAY, Pedro; BATISTA, Vera Malaguti). Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 158.
[23] BATISTA, Nilo. A lei como pai. In: Depois do grande encarceramento (Orgs. ABRAMOVAY, Pedro; BATISTA, Vera Malaguti). Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 158.

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