sábado, 10 de agosto de 2013

"Carta a mim mesmo": um texto de Eric Cwajgenbaum


 
Carta a mim mesmo
                                                                                                Eric Cwajgenbaum

 

Curioso como em diferentes momentos de nossas vidas, aquilo que nos era motivo de orgulho, pode passar a ser motivo de vergonha.

 

Bem, na verdade, nem tão vergonhoso assim, se for encarado como uma evolução através do amadurecimento, admissão de equívocos e autocrítica suficiente para olhar para dentro de si e, lá no fundo, entender o próprio contexto no qual suas convicções foram (de)formadas.

 

Atribuo a um evento realizado recentemente na Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, intitulado “Resistência Democrática: Diálogos entre Política e Justiça”, a gota d`água que faria transbordar o auto questionamento: sou de direita ou de esquerda?


Diante de um público nitidamente diminuto – apesar dos palestrantes de altíssima relevância, especialmente no meio jurídico – ao contrário do que foi dito algumas vezes pelos organizadores do evento, no sentido de que ali só estariam presentes os "convertidos", passei a me exigir uma resposta para este questionamento e, ali mesmo, cheguei, a uma simples conclusão: não sei se sou de esquerda, mas, hoje, tenho a certeza de que não sou mais de direita.


Na verdade, nunca fui, apenas nasci em um meio social de direita.


Quando entrei no curso de Direito, em 1996, talvez meu auge direitista e reacionário, queria ser Delegado da Polícia Civil para um dia atuar na Delegacia de Repressão a Entorpecentes.


Logo depois, em 1998, fui aprovado na Escola de Formação de Oficiais da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro, pois queria ser um oficial do BOPE, mas acabei não ficando.

 

Somente hoje compreendo a minha pulsão de combater as “forças do mau”.

 

É certo que entram aí inúmeras questões, sendo as mais evidentes, a rebeldia em ser diferente no meu meio social, auto afirmação pela “autoridade” do cargo, portar um arma…

Pontuar estas pulsões é simplório, quase filosofia de botequim, no entanto o que rompeu definitivamente os meus laços com a direita, foi a compreensão de que eu era um medroso.

 

Isso mesmo, fui amamentado nas tetas da mídia comezinha e como resultado, tinha medo, muito medo.

 

Tinha medo de negros mal vestidos que ousavam incomodar a paz e a estética da Zona Sul, de comunistas e socialistas fedidos, traficantes dos morros (do asfalto não…), até mesmo dos flanelinhas de Ipanema, com quem tive inúmeros e vergonhosos entreveros.

 

Medo, esse, que me levaria a “combater o tráfico de drogas”, seja como Delegado de Polícia, seja como Policial Militar.

 

"No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. O ordenamento introduzido pela escravidão na formação sócio-econômica sofre diversos abalos a qualquer ameaça de insurreição. O fim da escravidão e a implantação da República (fenômenos quase concomitantes) não romperam jamais aquele ordenamento. Nem do ponto de vista sócio-econômico, nem do cultural. Daí as consecutivas ondas de medo da rebelião negra, da descida dos morros. Elas são necessárias para a implantação de políticas de lei e ordem. A massa negra, escrava ou liberta, se transforma num gigantesco Zumbi que assombra a civilização; dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro - dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003."

 

Apesar de não ter dimensão disto no momento das minhas escolhas, atribuo ao fato de que já no início da Faculdade, li o livro Assassinatos em Nome da Lei, do então Juiz Sergio Verani, quem, viria a ser em 2012 o Diretor da EMERJ, espaço acadêmico que sediou o evento mencionado.

 

Apesar da vontade de discorrer sobre este livro e as consequências acadêmicas da obra para o seu autor, me limito a recomendar sua leitura e, aqui, resumir de forma simplória, seu ponto nodal: não há no ordenamento jurídico brasileiro, à exceção da legítima defesa, qualquer justificativa para que um policial retire a vida de qualquer pessoa – o que jamais impediu as agências do sistema penal de assim fazê-lo, desde o momento da execução dos “marginais”, passando pelo arquivamento do inquérito ou até absolvição em sede judicial.

 

Até então, nenhuma novidade para quem é do meio jurídico, mas, a minha pulsão de “prender e matar traficantes” começou a ficar confusa.


Também durante esse período, eu já fazia estágio jurídico no Departamento do Sistema Penitenciário (antigo DESIPE), que se prolongou por todo o meu curso universitário e, nas cadeias, ficava procurando os perigosíssimos traficantes de drogas que via no noticiário da Globo e só encontrava alguns negrinhos maltrapilhos, acinzentados pelo bolor do cárcere.


Nas cadeias, comemorei, natais com alguns deles e suas famílias e fui me decepcionando por não conseguir encontrar aqueles demônios que me eram vendidos.

 

Fiquei muito feliz, ao ler o livro “Acionistas do Nada”, do Delegado de Policia Civil, Orlando Zaccone, e encontrar uma experiência idêntica, vivida por ele, ao procurar e não encontrar estes grandes traficantes de drogas, nas Delegacias em que atuou.


Nestas ricas vivências nas cadeias, mais especificamente em Bangu 3, conheci o apenado William da Silva Lima, vulgo Professor, a quem a mídia atribui a responsabilidade pela fundação do Comando Vermelho.

 

Por já ter lido o livro “Quatrocentos Contra Um”, de sua autoria, pedi para conversar com ele, oportunidade na qual pedi seu autógrafo no exemplar que levara comigo.

 

Apenas para contextualizar o leitor, resumo que William e seus contemporâneos, educados pelos presos políticos, jamais tiveram a intenção em criar o Comando Vermelho como conhecemos hoje. A isto o autor atribui a capacidade de imaginação midiática para vender notícia.


Como resultado deste encontro autográfico, conheci os dentes afiados do sistema, pois além de me chamar em seu gabinete para inquirir o motivo do pedido de “autógrafo de vagabundo” e oficiar sobre a minha “conduta” ao departamento de estágio, o diretor de Bangu 3 mandou quebrar o vidro do meu carro, que estava estacionado do lado de fora e, provavelmente tinha algum outro plano sombrio para mim.


Após esperar na portaria do presídio por mais de uma hora, meu chefe naquele departamento jurídico (até então os assistente jurídicos eram Agentes Penitenciários, bacharéis em Direito, em desvio de função), chegou até a portaria e me pediu uma carona até a Av. Brasil.

 

Nervoso e com sua pistola sobre o colo, pediu para saltar do carro em um ponto de ônibus no final da estrada que liga o complexo penitenciário de Gericinó a Av. Brasil e mandou que eu não parasse para ninguém, até chegar em casa.

 

Uma pequena pausa para uma ironia a ser inserida exatamente aqui: qual não seria minha surpresa, ao ler na capa da edição de 2013, o nome William da Silva Lima, incluído entre os autores de “Discursos Sediciosos”, ao lado da elite intelectual da Criminologia?!


Retomando, já em 2013, estudando Criminologia Crítica, especialmente Vera Malaguti Batista, pude entender as raízes do medo e enxergar o produto que me tornaria, apto a ser consumido pelo sistema que, de uma forma ou de outra, devoraria aquele Delegado de Polícia ou Oficial da Polícia Militar que queria expurgar os próprios medos, caçando um inimigo imaginário.

 

Não conseguiria encontrar melhor exemplo para esta última reflexão, do que o caso gerado pela reportagem exibida pelo Fantástico, sobre as circunstâncias nas quais ocorreram a "morte" do traficante Matemático, frise-se, não a morte, per si, apenas suas circunstâncias.

 

Na reportagem foram profundamente analisados pelos “especialistas de plantão”, inúmeros aspectos: posição de tiro, calibre das armas, tipo de munição, manobras de helicóptero, guerrilha noturna, localidade do confronto, apoio terrestre, trajetória dos disparos, leis da física…

 

Enquanto alguns se preocuparam em ovacionar a morte do traficante e outros, em clamar pela punição dos policiais que participaram da operação policial, faltou o foco em alguns questionamento, dentre eles: qual era o verdadeiro objetivo da missão policial e das ações subsequentes?

 

"Estrito cumprimento do dever legal de matar?"

 

“São o que ele chama de massacres a conta-gotas que produzem também a brutalização das nossas polícias, que com níveis baixíssimos de qualidade de vida são atiradas à tarefa de massacrar seus próprios irmãos. O resultado são as prisões cheias de policiais como é o caso emblemático do Trovão, policial civil incensado pela mídia no primeiro massacre do Alemão, em que aprecia fumando um charuto sobre corpos negros e ensangüentados num beco daquela favela, trajando roupas de guerra. Hoje, é ele que se adapta ao conceito de vida nua de Agamben. A licença para matar produz um embotamento na capacidade de negociar melhorias trabalhistas, além de adoecer os agentes e suas famílias, jogados depois à própria sorte.” O Alemão é muito mais complexo. MALAGUTI BATISTA, Vera.

 

Em um Estado Democrático de Direitos, como o que pretendemos pertencer, a Lei não deve ser respeitada por todos e aplicada para todos, sobretudo, as Garantias Fundamentais, prevista na Constituição da República?

 

Quando se verga isto para um lado, ignorando o Código Penal ou misturando seus institutos (Legítima Defesa e Estrito Cumprimento do Dever Legal), permite-se a verga para qualquer outro lado, abrindo-se as portas da aplicação da Lei de forma dirigida a determinados meios.

 

Afinal, os meios justificam os fins?

 

Se por um lado, em um momento de necessidade, podemos necessitar da ação policial, queremos uma Polícia cumpridora da Lei ou que a verga sob sua ótica do certo ou errado, do bem ou do mau?

 

Que Polícia querem os moradores daquela localidade onde os tiros foram disparados?

 

Para as vítimas inocentes, (como acontece na maioria dos casos) faz diferença se o tiro partiu das “forças do bem” ou das “forças do mau”?

 

Debater o heroísmo dos policiais é redundante, pois de fato são heróis e o quanto a "vagabundagem" é perigosa, também é redundante, pois qualquer um que porta um fuzil é perigoso (policial ou bandido), no entanto, há de se empregar imensa cautela para não deixar que as verdades fáceis e aparentes, travestidas de discursos maniqueístas, encubram os subjetivismos maliciosamente manipulados pelos mass midias.

 

O núcleo deste desvelamento de verdades fáceis nos afasta do mundo estritamente jurídico e nos redireciona à política, para que sejam feitas novos questionamentos, desta vez, mais depurados: A quem servem estas ações policiais? Ao combate ao narcotráfico? Alguém ainda considera esta luta como algo legítimo, a ponto de arriscar as vidas dos policiais e dos inocentes?

 

“O presente trabalho não se pretende imparcial na análise dos números e da realidade que envolve a chamada “guerra contra as drogas” na cidade do Rio de Janeiro. Muito pelo contrário, analisa as práticas punitivas na repressão ao tráfico de drogas ilícitas partindo da premissa de que esta política criminal é irracional ao produzir danos maiores do que aquilo que pretende proteger, ocultado sua verdadeira função de punir os pobres, ao segregar os estranhos da era do consumo.”

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

 

Sob o modelo atual, a Polícia de Império, nas mãos do Estado-político, executa a política de exclusão que, além de seletivo ao tratar o cidadão (o Estado-político), é igualmente seletivo ao tratar o policial como peça de reposição.

 

Fica então a última pergunta: quem se alista para esta polícia são heróis ou cínicos, enganados ou ideólogos, destemidos ou medrosos?

 

Entender a mecânica do medo é um tanto o quanto catártico...

 

Por outro lado, entender suas raízes históricas e sua função de controle, é absolutamente perturbador.

 

 

Um comentário:

  1. Do profícuo texto ouso lembrar ao seu autor que o livro "Quatrocentos Contra Um - Uma História do Comando Vermelho" é apologia a "Zé Bigode", bandido do CV que enfrentou 400 policiais na Ilha do Governador. O escopo do livro referido, no qual o "Professor" conta o seu drama particular de fugas para ganhar a liberdade, é endeusar o famigerado facínora Zé Bigode e, claro, enaltecer a sigla CV. Outra curiosidade: o livro do bandido William da Silva Lima foi prefaciado por Rubem Cesar Fernandes e editado pela VOZES, editora pertencente à Igreja Católica. Além, também, de ter sido copidescado por Cesar Benjamim, do "MR-8". Admitir em sã consciência que tudo isto ocorreu singelamente, ou seja, que este concerto de intenções entre o que seria o mundo formal e o submundo do crime não passa de romantismo sem importância, é tachar de estúpido quem assim crê. Por outro lado, não se pode negar valor histórico à obra, esta que deve ser acompanhada de outras declarações do "Professor" em entrevistas, uma delas referida por Carlos Amorim no seu livro-pesquisa "Comando Vermelho - A história secreta do crime organizado". Aí sim, se começa a sair do maniqueísmo para um contexto mais amplo e seguro de análise, até porque não se pode nem se deve negar qualidade histórico-literária à obra assinada pela bandido do CV William da Silva Lima.

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