Uma das características do pensamento autoritário é a negação da alteridade. O sujeito autoritário não compreende e rejeita as idéias com as quais não concorda. Pior do que isso: reage com agressividade sempre que suas convicções, ou mesmo sua visão de mundo, são submetidas à crítica. Por estar fundamentado em argumentos pouco sofisticados, o autoritarismo demoniza e ataca aqueles que pensam de maneira diferente. O debate, diante desse quadro, passa a ser visto como uma ameaça.
Curioso notar que, nos regimes autoritários, sempre que se tentou elaborar teorias capazes de justificar as práticas autoritárias empregadas, se optou por abandonar elaborações mais sofisticadas, tais como as de Schmitt e Heidegger, em favor de formulações grosseiras cunhadas a partir do senso comum. Como se sabe, os argumentos grosseiros se impõem porque há uma relação inversa entre o grau de irracionalidade e brutalidade dos atos e o nível de elaboração do discurso que procura legitimá-los, e também porque visões complexas dificultam as demandas publicitárias.
Atualmente, tornou-se comum o recurso ao Estado como forma de negar a alteridade e inviabilizar o debate. O Judiciário, nesse particular, assume papel fundamental.
Em importante artigo de Thierry Savatier, alerta-se para os danos que o recurso ao Judiciário, como forma de impedir que o pensamento diverso apareça, pode causar não só à pesquisa historiográfica como também ao desenvolvimento da sociedade. Como percebeu Lucia Valladares, responsável pela tradução do texto para o português, Savatier analisa com acuidade o processo por difamação movido por Judith Miller e que levou à condenação de Elisabeth Roudinesco e da editora Seuil, certo que “ao apontar os elementos em jogo nesse lamentável processo, ele faz uma bela defesa da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que mostra a proximidade de ações dessa natureza com as práticas sectárias de organizações totalitárias, onde o chefe manda e os súditos obedecem”.
Aproveito para agradecer a Lucia Valladares e Marco Antônio Coutinho Jorge por terem viabilizado a autorização para esta publicação.
Aproveito para agradecer a Lucia Valladares e Marco Antônio Coutinho Jorge por terem viabilizado a autorização para esta publicação.
Boa leitura!
Thierry Savatier
Nos dias de hoje, não é muito bom exercer a profissão de historiador. A adoção pela Assembleia Nacional [na França], em 22 de dezembro p.p., da proposição de lei “visando reprimir a contestação da existência de genocídios reconhecidos pela lei”, caso seja aprovada pelo Senado e promulgada como as leis memorias que a precederam, enquadrará, e até mesmo dificultará os trabalhos de pesquisa de pesquisadores de boa fé. Estes, de fato, poderão ser acusados, não de negar, mas simplesmente de “minimizar de forma ultrajante” os genocídios já reconhecidos e os que no futuro assim o serão. Essa terminologia voluntariamente difusa, da qual a lei se serve geralmente com a finalidade não confessa de deixar aos grupos de pressão uma grande margem para constituir-se em parte civil, se assemelha a uma espada de Dâmocles que intimidará muitos universitários. Porque a ameaça que pesa sobre as pesquisas não é da ordem do fantasma; em 2005, um historiador incontestavelmente sério, Olivier Pétré-Grenouilleau, foi o primeiro a pagar o preço. Uma associação memorial que o havia acusado de violar as disposições da lei Taubira [lei memorial francesa de 2001 que reconhece o trafico negreiro e a escravidão como crime contra a humanidade. N.t.] após a publicação de seu ensaio sobre o tráfico negreiro, não retirou sua queixa mesmo diante da legitima indignação que tal ato despertou no mundo acadêmico. Como assinalou o jurista Denis Touret, “a controvérsia revelou como é instável o campo enfrentado pela logica da história, envolta na procura de uma objetividade científica sobre o passado, e na das memórias das comunidades mortificadas, que buscam em suas heranças subsídios para reivindicar identidades vitimarias.”
No outro campo, o da difamação, o panorama também não é melhor. A condenação em primeira instancia, no ultimo 11 de janeiro, de Elisabeth Roudinesco pela 17ª Câmara do Tribunal de Grande Instancia (TGI) de Paris fornece o exemplo do confronto inevitável entre os pesquisadores e os herdeiros quando estes se mostram melindrosos da mesma maneira que os guardiães do templo. Eis os fatos: em seu interessante ensaio, Lacan a despeito de tudo e de todos [Rio de Janeiro: Zahar, 2011], a historiadora havia escrito (p.175) [do livro em francês], a seguinte frase: “embora tenha emitido o desejo de terminar seus dias na Itália, em Roma ou Veneza, e desejado funerais católicos, foi enterrado em uma cerimonia intima no cemitério de Guitrancourt”. Ora Judith Miller, filha de Jacques Lacan e de Sylvia Bataille, que confessa não ter lido o livro, mas ter tomado conhecimento dessa frase por telefone, se sentiu diretamente visada, embora seu nome não tenha sido citado. Um direito de resposta através da imprensa teria sido suficiente para tornar público o seu ponto de vista – por sinal uma prática usual.
Ela preferiu optar pelo Tribunal de Justiça, como a lei lhe permite, argumentando que Elisabeth Roudinesco sugeria em sua obra que ela (e apenas ela, a despeito do fato de que na morte de Lacan, Sylvia Bataille, seu meio-irmão Thibaut e sua meia-irmã Sibylle estavam presentes) não teria respeitado as ultimas vontades de seu pai. Essa interpretação é totalmente respeitável, ainda que significativa de uma abordagem particularmente processual e de um ponto de vista muito direcionado; contudo, essa mesma interpretação parece involuntariamente confirmar, ao menos em parte, outra proposição sobre os funerais do psicanalista – esta, porém, totalmente explícita – sustentada por Sibylle Lacan, autora de um emocionante relato, Um pai (Gallimard, Folio, 120 p. 4, 10 Euros) [Um Pai: puzzle. R.J., Bertrand Brasil,1996, 106 p.]; “O enterro de meu pai foi duplamente sinistro. Aproveitando meu estado de choque [...] Judith tomou sozinha a decisão do enterro “na intimidade” desse enterro-sequestro anunciado na imprensa après coup [...] Começava a apropriação post-mortem de Lacan nosso pai.” [tradução livre]. Ao escolher ocupar o lugar de vitima, Judith Miller, corria um risco, o de se ver confrontada ao texto de sua meia-irmã, o que corresponde mais ou menos a “se dar um tiro no pé”. Mas, curiosamente e para sua sorte, ainda que em diversas ocasiões o livro de Sibylle Lacan tenha sido citado pela defesa, o Tribunal, contra qualquer lógica, não reteve esse argumento. Presente na sala de audiências no dia da audiencia, Sibylle Lacan, particularmente emocionada, tentou se expressar, mas, por não ter sido arrolada como testemunha, não pôde intervir.
Condenar dessa maneira uma historiadora, cujos trabalhos são de reconhecida notoriedade, por difamação, sobre a interpretação única de uma frase de quatro linhas (em uma obra de 176 paginas) e na qual o nome da parte que se sente difamada sequer é citado, pode de bom grado alertar os outros historiadores para o risco que correm em termos de liberdade de expressão. Eis porque o julgamento da 17ª Câmara do Tribunal de Grande Instancia (TGI) Paris merece nossa atenção. É verdade que a lei de 29 de julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa se mostra particularmente vigilante, até mesmo extensiva, na sua definição de difamação. Seu artigo 29 diz: “Qualquer alegação ou imputação de um fato que compromete a honra ou a reputação da pessoa ou organismo ao qual é atribuído o ato é uma difamação. A publicação direta ou através de reprodução da alegação ou dessa imputação é punível, mesmo se ela é feita de forma dubitativa ou se ela visa uma pessoa ou organismo não expressamente nomeado, mas cuja identificação é possível pelos termos dos discursos, gritos, ameaças, escritos ou impressos, cartazes ou pôsteres incriminados. [...]”.
Condenar dessa maneira uma historiadora, cujos trabalhos são de reconhecida notoriedade, por difamação, sobre a interpretação única de uma frase de quatro linhas (em uma obra de 176 paginas) e na qual o nome da parte que se sente difamada sequer é citado, pode de bom grado alertar os outros historiadores para o risco que correm em termos de liberdade de expressão. Eis porque o julgamento da 17ª Câmara do Tribunal de Grande Instancia (TGI) Paris merece nossa atenção. É verdade que a lei de 29 de julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa se mostra particularmente vigilante, até mesmo extensiva, na sua definição de difamação. Seu artigo 29 diz: “Qualquer alegação ou imputação de um fato que compromete a honra ou a reputação da pessoa ou organismo ao qual é atribuído o ato é uma difamação. A publicação direta ou através de reprodução da alegação ou dessa imputação é punível, mesmo se ela é feita de forma dubitativa ou se ela visa uma pessoa ou organismo não expressamente nomeado, mas cuja identificação é possível pelos termos dos discursos, gritos, ameaças, escritos ou impressos, cartazes ou pôsteres incriminados. [...]”.
Os juízes, portanto adotaram a mesma interpretação da frase litigiosa que a demandante ao considerar que a identificação da pessoa visada havia sido “possível pelos termos do discurso”, o que, no entanto não é tão evidente assim, posto que Judith Miller não era o único membro da família do defunto no momento dos obséquios, alias, da mesma forma que continua não sendo. Sem dúvida, consciente da fragilidade desse argumento, os juízes em seguida se apoiaram em um documento, uma “carta de apoio” endereçada em 12 de setembro de 2011 à demandante pelos membros da redação da revista Le Diable probablement, acompanhada de 1398 assinaturas, na qual os cossignatários manifestavam sua “indignação” em relação à frase incriminada. Independentemente da qualidade desses consignatários, isso parece um pouco limitado, sobretudo na medida em que nem estes, nem Judith Miller, tampouco o Tribunal a priori consideraram o livro no seu conjunto limitando o seu julgamento apenas ao fragmento litigioso. Mais ainda, cabe notar que o TGI parece não ter levado em conta a recepção da obra (em particular pela imprensa), como é frequentemente no caso de julgamento contra um livro, e que esta, assinada por autores renomados, foi majoritariamente favorável.
Mais surpreendente ainda, os juízes do Tribunal não reconheceram o beneficio da boa fé, ao motivar sua decisão de maneira singularmente dura: “Ao se expressar da maneira como o fez, sem dispor de nenhum elemento serio vindo apoiar seus propósitos, tal qual está formulado na frase litigiosa, Elisabeth Roudinesco, profissional da escrita, autora de diversas obras sobre a vida e obra de Jacques Lacan, igualmente faltou com a prudência e o rigor na expressão e não poderia ser mais creditada legitimidade ao objetivo perseguido, que é apreciado, não em termos da obra litigiosa na sua totalidade, mas em relação aos propósitos perseguidos, que não eram de forma alguma legítimos, neste caso, levar ao conhecimento do publico na expressão, tão lapidar quanto carregada de significado, que é a dela e sem nenhum elemento que justifique tal formulação.”
Mais surpreendente ainda, os juízes do Tribunal não reconheceram o beneficio da boa fé, ao motivar sua decisão de maneira singularmente dura: “Ao se expressar da maneira como o fez, sem dispor de nenhum elemento serio vindo apoiar seus propósitos, tal qual está formulado na frase litigiosa, Elisabeth Roudinesco, profissional da escrita, autora de diversas obras sobre a vida e obra de Jacques Lacan, igualmente faltou com a prudência e o rigor na expressão e não poderia ser mais creditada legitimidade ao objetivo perseguido, que é apreciado, não em termos da obra litigiosa na sua totalidade, mas em relação aos propósitos perseguidos, que não eram de forma alguma legítimos, neste caso, levar ao conhecimento do publico na expressão, tão lapidar quanto carregada de significado, que é a dela e sem nenhum elemento que justifique tal formulação.”
O propósito surpreende mais ainda porque a acusada havia reunido diversos textos e testemunhos que, não podendo ser interpretados como elementos de prova irrefutável pelo Tribunal, não deixavam, contudo, de constituir uma gama de argumentos em seu favor. Mas os juízes não levaram em conta a sua relevância da mesma forma que não levaram em conta a citação de Sibylle Lacan reproduzida acima...
E uma pena que o conceito de opinião dissidente – texto através do qual um juiz manifesta seu desacordo em relação à decisão dos outros membros da sua jurisdição – não exista no direito francês; poderíamos ter uma dimensão do debate sem duvida ocorrido quando da deliberação. Porque essa decisão do TGI de Paris surpreende o leitor. Se ele condena sem ambiguidade a autora do livro e seu editor, ele na realidade rejeita a seguinte demanda de inserção na obra de Judith Miller: “Mme Elisabeth Roudinesco, M. Olivier Bétourné e as Editions du Seuil foram condenados por difamação publica contra Mme Judith Miller nos termos do paragrafo da página 175, onde alega-se que a vontade ultima de Jacques Lacan para os seus obséquios não teria sido respeitada.” Que o Tribunal tenha julgado irrealizável, materialmente, tal inserção nos exemplares atualmente dispersados pelas livrarias é possível conceber; mas que em contrapartida, não tenha decidido que esse texto devesse figurar na edições e reedições eventuais semeia a confusão. Uma confusão ainda mais legitima quando se percebe que em sua intimação a demandante havia omitido a solicitação de retirada da frase incriminada nas futuras impressões!
E uma pena que o conceito de opinião dissidente – texto através do qual um juiz manifesta seu desacordo em relação à decisão dos outros membros da sua jurisdição – não exista no direito francês; poderíamos ter uma dimensão do debate sem duvida ocorrido quando da deliberação. Porque essa decisão do TGI de Paris surpreende o leitor. Se ele condena sem ambiguidade a autora do livro e seu editor, ele na realidade rejeita a seguinte demanda de inserção na obra de Judith Miller: “Mme Elisabeth Roudinesco, M. Olivier Bétourné e as Editions du Seuil foram condenados por difamação publica contra Mme Judith Miller nos termos do paragrafo da página 175, onde alega-se que a vontade ultima de Jacques Lacan para os seus obséquios não teria sido respeitada.” Que o Tribunal tenha julgado irrealizável, materialmente, tal inserção nos exemplares atualmente dispersados pelas livrarias é possível conceber; mas que em contrapartida, não tenha decidido que esse texto devesse figurar na edições e reedições eventuais semeia a confusão. Uma confusão ainda mais legitima quando se percebe que em sua intimação a demandante havia omitido a solicitação de retirada da frase incriminada nas futuras impressões!
Aqui há manifestadamente contraste entre a severidade dos motivos que levou à condenação, a ausência de obrigação de publicação do encarte e a não demanda de retirada do fragmento incriminado. Esse julgamento deixa, portanto uma impressão curiosa, ilógica, até mesmo grotesca. Quão grotesca é a importância atribuída a essa frase, onde alias está em questão, posto que cada palavra tem a sua importância, o verbo “souhaiter (desejar) (“desejar para si”, nos diz Littré) e não o “vouloir” (querer) (“ter vontade disso”, de acordo com a mesma fonte) cujo sentido, mais forte, se encontra na expressão “últimas vontades”. Quão é grotesco o fato de ter afastado a ideia do paradoxo em um que não tinha religião, mas que atribuía importância ao ritual. Quão é grotesco a linchagem midiática da qual a autora de Lacan a despeito de tudo e de todos foi vitima (difamação, contestação de seus diplomas, acusação de plágio, etc.) desde que a intimação foi publicada no site La Règle du jeu. A rubrica “discussão” da página Wikipédia que lhe é destinada ainda porta os estigmas. Esse método detestável lembra singularmente as práticas que outrora vigoraram nos Estados totalitários, cujo objetivo era descreditar os oponentes, os que incomodam. Quão é grotesco e inabitual enfim a publicação da intimação na revista dirigida por Bernard-Henri Lévy de 16 de setembro de 2011, ou seja antes mesmo que esta tenha sido entregue aos réus.
Contrariamente ao que a impressa amplamente indicou, nem Elisabeth Roudinesco, nem seu editor, até o momento recorreram da decisão de 11 de janeiro. Do ponto de vista jurídico, levando em conta, o que foi mencionado, eles teriam interesse nisso. E, com eles, a comunidade de historiadores que, hoje em dia, nesse mundo cada vez mais judicializado, se pergunta se suas obras, no futuro, serão submetidas ao nihil obstat das famílias e imprimatur dos herdeiros antes da publicação, como outrora eles deviam submetê-las aos censores episcopais, evitando ser entregues ao açougueiro judiciário e midiático.
Contrariamente ao que a impressa amplamente indicou, nem Elisabeth Roudinesco, nem seu editor, até o momento recorreram da decisão de 11 de janeiro. Do ponto de vista jurídico, levando em conta, o que foi mencionado, eles teriam interesse nisso. E, com eles, a comunidade de historiadores que, hoje em dia, nesse mundo cada vez mais judicializado, se pergunta se suas obras, no futuro, serão submetidas ao nihil obstat das famílias e imprimatur dos herdeiros antes da publicação, como outrora eles deviam submetê-las aos censores episcopais, evitando ser entregues ao açougueiro judiciário e midiático.
Publicado originalmente em: http://savatier.blog.lemonde.fr/
Muito bom! Uma possível interpretaçã": Por vezes, o discurso analítico também pode reproduzir o autoritarismo. No caso Roudinesco, me parece que o luto está em jogo. O autoritarismo como resposta á negação da castração.
ResponderExcluirPerfeito. O autoritarismo está inegavelmente ligado à figura do Pai e da castração.
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