Fevereiro de 2012/Tribuna do Advogado
O Pleno do Conselho Federal da OAB decidiu ingressar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a declaração da inconstitucionalidade da Lei Complementar 75/93, que garante aos membros do Ministério Público (MP) "sentarem-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes de órgãos judiciários perante os quais oficiem". Para o juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio, a ação é um importante passo para a democratização da Justiça Penal. “Há sobre o tema uma espécie de fetichismo: apresenta-se como natural a posição ocupada pelo MP e pela defesa nas salas de audiências, o que produz o velamento da violação aos princípios da isonomia e acusatório”, afirma Casara, que concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA.
O Pleno do Conselho Federal da OAB decidiu ingressar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a declaração da inconstitucionalidade da Lei Complementar 75/93, que garante aos membros do Ministério Público (MP) "sentarem-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes de órgãos judiciários perante os quais oficiem". Para o juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio, a ação é um importante passo para a democratização da Justiça Penal. “Há sobre o tema uma espécie de fetichismo: apresenta-se como natural a posição ocupada pelo MP e pela defesa nas salas de audiências, o que produz o velamento da violação aos princípios da isonomia e acusatório”, afirma Casara, que concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA.
MARCELO MOUTINHO
Como avalia a ação proposta pela OAB ?
Casara – A ação proposta pela OAB busca democratizar o espaço destinado à instrução e ao julgamento dos casos penais, adequando-o ao sistema acusatório e à ideia de um processo de partes eqüidistantes do órgão julgador. Trata-se, portanto, de um importante passo direcionado à democratização da justiça penal. Alcançar esse objetivo, porém, não será fácil, pois para alterar a concepção cênica das salas de audiências será necessário romper com uma tradição autoritária que não só condiciona a atuação dos diversos atores jurídicos como também naturaliza tanto a desigualdade de planos entre acusação e defesa quanto o estigmatizante “banco dos réus”.
Hoje, não existem muitas dúvidas de que esse modelo cênico, caracterizado por reservar ao Ministério Público posição de destaque nas salas de audiência, enquanto a defesa-técnica e o réu permanecem em plano inferior e afastados, atualmente adotado em pouquíssimos países, surgiu como uma experiência situada em uma quadra histórica marcada por uma visão de Estado que se apresentava em oposição ao indivíduo: um tempo em que o Estado-Juiz e o Ministério Público, sem uma distinção nítida entre as respectivas funções, investiam contra o indivíduo que figurava como réu, muitas vezes anulando-o. Em Portugal, por exemplo, esse modelo aparece associado ao Estado Novo. Não por acaso, os defensores da manutenção de um espaço privilegiado à acusação revelam uma atitude que se caracteriza por ignorar o contexto sociológico e histórico, apresentando argumentos que pressupõem a des-historicização.
O senhor defendeu, em recente artigo, que a "estrutura cênica" nos julgamentos criminais deve obedecer ao princípio da isonomia entre as partes. Qual a importância dos elementos simbólicos?
O artigo mencionado, em linhas gerais, reproduz os argumentos expostos em texto publicado em co-autoria com a jurista Maria Lúcia Karam em 1995. Feito esse esclarecimento, pode-se dizer, em apertada síntese, que cabe ao registro simbólico a função de atribuir significados. O simbólico é o que dá sentido a todos os fenômenos. A realidade, portanto, é constituída a partir de uma trama simbólico-imaginária, ou seja, é construída de palavras, de imagens e da percepção que se tem dessas palavras e imagens. A linguagem, isto é, o fato de termos sido lançados em uma ordem simbólica ao nascermos, é o que nos faz humanos. Pode-se, então, afirmar que os elementos simbólicos são condições de possibilidade de qualquer julgamento.
Assim, ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, a concepção cênica da sala de audiências não é um dado despido de interesse, uma vez que o simbólico que constitui os tribunais, inclusive a posição que cada um dos protagonistas da relação processual ocupa na sala de audiências, conspira à solução do caso penal. Em um tribunal, nada existe sem um sentido, sem uma funcionalidade concreta. A disposição cênica da sala de audiência se insere no registro simbólico e é recebida, consciente ou inconscientemente, pelas partes, pelo juiz e pela população, razão pela qual produz efeitos de sentido e afeta os julgamentos.
A tradição, em que está inserido o intérprete e que vai condicionar os seus julgamentos, também é forjada a partir do simbólico. A atual concepção cênica da sala de audiências criminais no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, revela e reforça uma tradição autoritária que parte de uma pré-compreensão na qual o réu figura como mero objeto da atividade persecutória estatal e o advogado é visto como óbice à realização dos anseios punitivos. Poder-se-ia falar, nesse caso, de uma verdadeira perversão inquisitorial que se caracteriza por negar a condição de sujeito ao réu.
Ademais, a proximidade física de uma das partes com o juiz, ambos a exercer funções típicas do Estado, gera no imaginário popular a impressão de promiscuidade funcional, de contaminação da imparcialidade, não raro “confirmada” por conversas ao pé-do-ouvido entre o acusador e o julgador. Tal fenômeno é refletido em pesquisas nas quais resta demonstrado que as pessoas não conhecem as verdadeiras funções do Poder Judiciário e do Ministério Público na justiça criminal: isso faz com que frases como "o juiz me acusou" e o "promotor me julgou" sejam repetidas dia após dia.
Repito, aqui, uma questão que o próprio senhor formulou: "estar sentado ao lado do órgão judicante interfere no exercício das funções institucionais do MP"?
Parece evidente que a posição que o órgão de atuação do Ministério Público ocupa na sala de audiência não guarda relação com o exercício de suas funções constitucionais ou legais. Assim, não há como sustentar que a posição do assento insere-se dentre as prerrogativas do Ministério Público.
Há sobre esse tema uma espécie de fetichismo: apresenta-se como natural a posição ocupada pelo Ministério Púbico e pela defesa nas salas de audiências, o que acaba por produzir o velamento da violação aos princípios da isonomia e acusatório.
Para além de vaidades corporativas, deve-se aproveitar a possibilidade fornecida com a ação proposta pela OAB para se construir em todo país uma concepção cênica igualitária, forjada na convicção de que não há hierarquia entre aqueles que exercem as funções de julgar, acusar e defender. Um modelo adequado à ideia de um processo penal de partes, capaz de contribuir à criação de uma cultura constitucional na medida em que dificulta a confusão entre o Estado-juiz e o Estado-Acusador, formando-se uma significação social de efetiva separação das funções estatais, além de transformar o ambiente processual e transmitir à comunidade a ideia da igualdade de tratamento e paridade de armas que não se encontra no posicionamento tradicional.
Também recentemente, o senhor foi alvo de nota repúdio do MP, após ter indeferido a prisão temporária de envolvidos num suposto esquema de fraudes no Detran-RJ. Os advogados de defesa no caso reclamaram da recusa, por parte do MP, de acesso aos autos do processo. Essa não é uma prerrogativa dos advogados?
A decisão de indeferimento do pedido de prorrogação das prisões temporárias dos investigados teve por fundamento a percepção de que as medidas cautelares pretendidas pelo Ministério Público não eram imprescindíveis à investigação. Como se sabe, as prisões cautelares são medidas de exceção e não podem ser decretadas, ou mantidas, sem a demonstração concreta da presença de seus requisitos legais. Curioso notar que, apesar da “nota de repúdio”, não houve recurso dessa decisão. Em uma análise singela, poder-se-ia falar que foi um ato político e midiático. Há, por evidente, um forte componente ideológico por de trás do texto. Mas, não cabe aqui discutir as razões que levaram à elaboração da nota.
Nessa nota, o que mais preocupa é o tratamento dado à prerrogativa da defesa técnica de acesso aos autos da investigação. Vale observar que os investigados estavam presos e que todos os atos urgentes já haviam sido cumpridos, mesmo assim foi naturalizado o fato dos advogados afirmarem que lhes era negado o acesso aos autos do procedimento, em franca oposição à jurisprudência pacífica dos tribunais superiores. Não há razão constitucionalmente adequada para se desconfiar do advogado e negar-lhe a possibilidade de controlar a legitimidade dos atos estatais praticados pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo próprio Judiciário. Note-se que a matéria encontra-se, inclusive, sumulada. O teor da nota, nesse particular, acaba por reforçar uma tradição que enxerga o indivíduo submetido à persecução penal como um não-sujeito e os profissionais da defesa como óbices à eficiência punitiva.
Mais do que uma verdadeira prerrogativa do advogado, uma vez que existe e se justifica para assegurar o pleno exercício de uma função essencial à justiça, o direito de acessar os autos integra a garantia constitucional da ampla defesa e a própria idéia de acesso à justiça dos indiciados e réus. Sobre o tema, recomendo a leitura das decisões do Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal. Por evidente, no Estado Democrático de Direito, a efetividade dos procedimentos penais depende do respeito à normatividade constitucional, isto é, os fins da persecução penal não autorizam o desrespeito aos diretos e garantias fundamentais.
Meus cumprimentos pela Nota Públicada!!
ResponderExcluirNa mosca! Parabéns, Rubens!
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