A JUSTIÇA QUE NÃO QUEREMOS
Juiz de
direito do TJRJ
O exercício da
judicatura coloca o magistrado em contato com momentos trágicos da condição e
miséria humana, e também (mais raramente) com momentos de rara beleza.
Um fato, singelo e
belo, que jamais esquecerei, ocorreu num processo criminal relativo a estupro,
quando era juiz titular da Vara Criminal de Nova Friburgo.
Em meio a uma
audiência extremamente tensa, e no momento da oitiva da vítima, que chorava copiosamente,
a defesa se pronuncia:
- Gostaria que V.Exa.
perguntasse à ofendida se ela sentiu prazer e alcançou o orgasmo no momento do fato.
Indeferi a pergunta,
ao que o ilustre advogado requereu que ficasse consignado o indeferimento.
Ditei:
- Que foi indeferida a
seguinte pergunta: “se a ofendida sentiu prazer e alcançou o orgasmo no momento
do fato”, posto que (diante das palavras da vítima até aqui) absolutamente desnecessária,
desrespeitosa e deselegante.
O indeferimento foi
consignado. A audiência prosseguiu. Em alegações finais (ou mesmo
posteriormente, na via recursal) a defesa não impugnou o indeferimento da
questão. O réu foi condenado. A sentença foi mantida pelo Tribunal.
Cerca de um ano depois,
com a sentença já transitada em julgado e o condenado cumprindo sua pena, saía
de meu gabinete em Nova Friburgo quando a vítima apareceu à minha frente, dentro
do Fórum, perguntando se eu me lembrava dela. Respondi que sim. E ela então
perguntou:
- O senhor permite que
eu lhe dê um abraço?
Antes que eu pudesse
articular alguma resposta (nem sei qual seria), ela se aproximou e me abraçou,
colocando a cabeça em meu peito, o que durou no máximo cinco segundos. Depois,
chorando muito, disse-me:
- Muito obrigado... Muito
obrigado...
E partiu.
Nunca mais a vi.
Logo a princípio,
tolamente, acreditei que ela me agradecia por ter condenado o acusado – mas não.
Hoje creio que o agradecimento se deve a tê-la tratado com humanidade e
sensibilidade num contexto tão dramático como o depoimento judicial de uma
vítima de estupro.
Poderia ser dito que
fiz estritamente o que era exigível para a situação. Também concordo. Porém,
antes de tornar-me juiz advoguei por sete anos, e estagiei ainda antes disso
por outros três. Tenho ao todo vinte e um anos de dedicação à prática do
direito, e sei que as coisas nem sempre ocorrem assim.
Isto porque são mais
comuns do que gostaríamos as práticas de uma
justiça que não queremos.
Não falo aqui dos
problemas de grande porte que acometem o Poder Judiciário: juízes assoberbados
de trabalho; magistrados envolvidos com vendas de sentenças e acórdãos; colegas
que consagram mais tempo a transitar por gabinetes visitando desembargadores e
visando uma rápida promoção na carreira, que a sentenciar e trabalhar
adequadamente; juízes que têm a judicatura como um “bico”, tal a profusão de
cursos e aulas a que se dedicam; desembargadores que acreditam integrar alguma
espécie de dinastia, e insistem em empregar parentes sem concurso público; concursos
para ingresso na carreira da magistratura impugnados por suspeição; ausência de
democratização interna do Poder Judiciário onde, segundo um nobre desembargador,
“soldado não vota em general”(sic); falta
de regras claras e objetivas para aferição de merecimento; convocações para
substituição em segundo grau e para turmas recursais sem qualquer critério;
edição de atos normativos inconstitucionais em desrespeito ao princípio do juiz
natural.
Não...
Falo de problemas mais
comezinhos – porém não menos relevantes.
Falo de exercer a
função de julgar com sensibilidade.
Não queremos juízes
inquisidores, que destratam os cidadãos na condição de réus em processos
criminais, desconsiderando a presunção constitucional de inocência e o direito
à não auto-incriminação, colhendo interrogatórios como se estivessem já na
frente de culpados (aliás, como se os próprios culpados merecessem aquele
tratamento...).
Não queremos juízes
insensíveis, que desconsideram a situação peculiar da vítima, o sofrimento, a
humilhação, a dor por que passaram, o pavor que sentem de se encontrarem
novamente a poucos metros de seu algoz, e colhem suas informações com descaso, descuido
ou desrespeito.
Não queremos
magistrados que tratam testemunhas e partes sem qualquer paciência, como se
estivessem ali tomando seu precioso tempo, exigindo que falem rápido e pouco
(de preferência nada), para que possam alcançar metas absurdas de produtividade
impostas por uma visão privatista do Judiciário – colocando-o no mesmo nível
que uma empresa de fast-food.
Não queremos
desembargadores que dispensam a juízes um tratamento ao mesmo tempo arrogante e
displicente – deixando a seguinte dúvida: se tratam assim a colegas de
profissão, como tratarão partes e advogados?
Não queremos
julgadores que não se apercebam da nobreza de seu mister e, sobretudo (seria um
truísmo?), que atrás de cada processo há ao menos uma vida, uma esperança, um
tormento, um sofrimento, e que aquela montanha de papéis merece atenção,
dedicação.
Não queremos
magistrados alheios à sociedade que os cerca, aos anseios e vicissitudes dos
cidadãos que em última análise arcam com seus salários, das minorias, dos
desvalidos, tratando-os desigualmente em face de magnatas, empresas globalizadas
ou conglomerados financeiros.
Não queremos um
judiciário que se entenda como um club-privé,
uma micro-sociedade auto-suficiente e indiferente ao que a cerca, não se
apercebendo, a cada momento, que existe para servir ao povo e não a si mesma.
Não queremos enfim uma
justiça desumana, fria, de olhos e ouvidos vendados ao sofrimento de quem a
procura por vezes como última alternativa – ou de quem a ela é apresentado por
não ter tido qualquer opção.
Enfim, não basta só discutir
a justiça que queremos. Temos sempre de atentar, também – para nunca perder de
vista e passar despercebida –, à justiça
que não queremos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário