quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Justiça que não queremos: um texto de Marcos Augusto Ramos Peixoto


A JUSTIÇA QUE NÃO QUEREMOS

Marcos Augusto Ramos Peixoto

Juiz de direito do TJRJ





O exercício da judicatura coloca o magistrado em contato com momentos trágicos da condição e miséria humana, e também (mais raramente) com momentos de rara beleza.

Um fato, singelo e belo, que jamais esquecerei, ocorreu num processo criminal relativo a estupro, quando era juiz titular da Vara Criminal de Nova Friburgo.

Em meio a uma audiência extremamente tensa, e no momento da oitiva da vítima, que chorava copiosamente, a defesa se pronuncia:

- Gostaria que V.Exa. perguntasse à ofendida se ela sentiu prazer e alcançou o orgasmo no momento do fato.

Indeferi a pergunta, ao que o ilustre advogado requereu que ficasse consignado o indeferimento. Ditei:

- Que foi indeferida a seguinte pergunta: “se a ofendida sentiu prazer e alcançou o orgasmo no momento do fato”, posto que (diante das palavras da vítima até aqui) absolutamente desnecessária, desrespeitosa e deselegante.

O indeferimento foi consignado. A audiência prosseguiu. Em alegações finais (ou mesmo posteriormente, na via recursal) a defesa não impugnou o indeferimento da questão. O réu foi condenado. A sentença foi mantida pelo Tribunal.

Cerca de um ano depois, com a sentença já transitada em julgado e o condenado cumprindo sua pena, saía de meu gabinete em Nova Friburgo quando a vítima apareceu à minha frente, dentro do Fórum, perguntando se eu me lembrava dela. Respondi que sim. E ela então perguntou:

- O senhor permite que eu lhe dê um abraço?

Antes que eu pudesse articular alguma resposta (nem sei qual seria), ela se aproximou e me abraçou, colocando a cabeça em meu peito, o que durou no máximo cinco segundos. Depois, chorando muito, disse-me:

- Muito obrigado... Muito obrigado...

E partiu.

Nunca mais a vi.

Logo a princípio, tolamente, acreditei que ela me agradecia por ter condenado o acusado – mas não. Hoje creio que o agradecimento se deve a tê-la tratado com humanidade e sensibilidade num contexto tão dramático como o depoimento judicial de uma vítima de estupro.

Poderia ser dito que fiz estritamente o que era exigível para a situação. Também concordo. Porém, antes de tornar-me juiz advoguei por sete anos, e estagiei ainda antes disso por outros três. Tenho ao todo vinte e um anos de dedicação à prática do direito, e sei que as coisas nem sempre ocorrem assim.

Isto porque são mais comuns do que gostaríamos as práticas de uma justiça que não queremos.

Não falo aqui dos problemas de grande porte que acometem o Poder Judiciário: juízes assoberbados de trabalho; magistrados envolvidos com vendas de sentenças e acórdãos; colegas que consagram mais tempo a transitar por gabinetes visitando desembargadores e visando uma rápida promoção na carreira, que a sentenciar e trabalhar adequadamente; juízes que têm a judicatura como um “bico”, tal a profusão de cursos e aulas a que se dedicam; desembargadores que acreditam integrar alguma espécie de dinastia, e insistem em empregar parentes sem concurso público; concursos para ingresso na carreira da magistratura impugnados por suspeição; ausência de democratização interna do Poder Judiciário onde, segundo um nobre desembargador, “soldado não vota em general”(sic); falta de regras claras e objetivas para aferição de merecimento; convocações para substituição em segundo grau e para turmas recursais sem qualquer critério; edição de atos normativos inconstitucionais em desrespeito ao princípio do juiz natural.

Não...

Falo de problemas mais comezinhos – porém não menos relevantes.

Falo de exercer a função de julgar com sensibilidade.

Não queremos juízes inquisidores, que destratam os cidadãos na condição de réus em processos criminais, desconsiderando a presunção constitucional de inocência e o direito à não auto-incriminação, colhendo interrogatórios como se estivessem já na frente de culpados (aliás, como se os próprios culpados merecessem aquele tratamento...).


Não queremos juízes insensíveis, que desconsideram a situação peculiar da vítima, o sofrimento, a humilhação, a dor por que passaram, o pavor que sentem de se encontrarem novamente a poucos metros de seu algoz, e colhem suas informações com descaso, descuido ou desrespeito.

Não queremos magistrados que tratam testemunhas e partes sem qualquer paciência, como se estivessem ali tomando seu precioso tempo, exigindo que falem rápido e pouco (de preferência nada), para que possam alcançar metas absurdas de produtividade impostas por uma visão privatista do Judiciário – colocando-o no mesmo nível que uma empresa de fast-food.

Não queremos desembargadores que dispensam a juízes um tratamento ao mesmo tempo arrogante e displicente – deixando a seguinte dúvida: se tratam assim a colegas de profissão, como tratarão partes e advogados?

Não queremos julgadores que não se apercebam da nobreza de seu mister e, sobretudo (seria um truísmo?), que atrás de cada processo há ao menos uma vida, uma esperança, um tormento, um sofrimento, e que aquela montanha de papéis merece atenção, dedicação.

Não queremos magistrados alheios à sociedade que os cerca, aos anseios e vicissitudes dos cidadãos que em última análise arcam com seus salários, das minorias, dos desvalidos, tratando-os desigualmente em face de magnatas, empresas globalizadas ou conglomerados financeiros.

Não queremos um judiciário que se entenda como um club-privé, uma micro-sociedade auto-suficiente e indiferente ao que a cerca, não se apercebendo, a cada momento, que existe para servir ao povo e não a si mesma.

Não queremos enfim uma justiça desumana, fria, de olhos e ouvidos vendados ao sofrimento de quem a procura por vezes como última alternativa – ou de quem a ela é apresentado por não ter tido qualquer opção.

Enfim, não basta só discutir a justiça que queremos. Temos sempre de atentar, também – para nunca perder de vista e passar despercebida –, à justiça que não queremos.

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